MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
Rien n’est plus loin de mes pensées
que l’ambition de savoir tout ou de le savoir mieux q’autres ([1]).
De certa carta de Emile Hubner
a F. Martins Sarmento
Oferecimento
Esmeralda
Porque nem tu receias a linda rival; nem eu temo se aniche no teu peito
o ciúme provocado por esta amante, para mim tão cara e tão feiticeira, avalia
tu própria os meus novos amores, lendo com atenção estas páginas ligeiras,
escritas quase todas a teu lado. Para isso tas ofereço e, confiadamente, as
deponho no teu regaço, beijando-te a mão.
Teu Augusto
Conversemos leitor:
Imperfeito e incompleto, sem dúvida, é o trabalho apresentado hoje à
crítica do público. Composto de pequenos factos históricos, enfeixados sem arte
e enredados com ténues fios tecidos de fantasia, mais parecerá relato a pedir
encurtamento por tesoura do que descrição a largos traços da terra, da época, e
das principais figuras melgacenses da revolta bairrista e patriótica de 1808. Mas
como o autor não aspira à imortalidade apetecida pelo historiador ou pelo
purista da língua, pois se contenta com as honras de pequeno cabouqueiro da
história local, votado a carrear elementos, para outros, mais tarde,
encontrarem desbravado terreno por ele achado, há muitos anos, sáfaro e ingrato,
inicia-se mesmo assim a publicação de Melgaço
e as Invasões Francesas. // Desaparecido do arquivo da Câmara o Livro de
Actas onde fora anotado o movimento, ficou aos melgacenses um pequeno relato do
feito, na História Geral da Invasão dos
Franceses, escrita pelo seu contemporâneo, Dr. José Acúrsio das Neves. É
ela a fonte deste trabalho. Escrita a pensar em Melgaço, serão os melgacenses
quem mais facilmente pode apreender o fim desta obra e descobrir e apreciar o
intento do autor. E embora o seu fundo seja exacto, por ter sido cuidadosamente
alicerçado em muitas centenas de documentos, só porque versa história local,
com prazer e com propósito se trasladou para antes deste prefácio aquela
advertência feita por Emile Hübner a Francisco Martins Sarmento, não vão os
leitores, apressadamente e de ânimo leve, julgar ouro de lei ao vulgar latão e
despender muito incenso, erguendo às alturas de mestre consagrado, quem não
passa de aprendiz curioso.
SOB
A PATA DO CORSO
Napoleão
guerreava a Grã-Bretanha numa luta de vida ou morte; ao seu carro de guerra
quis jungir Portugal, tal qual tinha jungido outras nações da Europa. Como
éramos uma pluma de asa de carriça a voejar sem rumo no seio das chancelarias,
a incompetência e a fraqueza do Governo atraíram a Lisboa as divisões
aguerridas da França. // Em 18/10/1807 o exército francês, sob o comando de
Junot, atravessou a fronteira franco espanhola e em 20 de Novembro a nossa. No
couce, como reforço, vieram algumas tropas espanholas. Eram aliadas. Entrou
pela Beira; passou por Castelo Branco; descansou em Abrantes e, a marchas forçadas,
atingiu a capital no derradeiro do mês. // Se não disparou um só tiro pelo
caminho, também em parte alguma do trajecto mostrou a marcialidade das suas
tropas: rotas, descalças, cansadas e famintas. Não andaram, então, émulas da
Padeira de Aljubarrota à cata de franceses, embora em grande número desgarrados
pelos caminhos; nem tampouco patriotas transformados em guerrilheiros
abalizaram com cadáveres a trilha seguida pelos invasores. // A rapidez da
marcha dos veteranos do Sargento
Tempestade não causou admiração alguma à Europa em armas. O povo estava
amnésico do seu glorioso passado e alheio ao dia a dia decorrente.
A
Corte, para garantir a independência do país, quando não para conservar no
galarim a dinastia de Bragança, fugira para o Brasil horas antes do último
arranco da coluna avançada a caminho da capital. / Faltava armamento e não
havia massa eficiente de tropas em Portugal; mas como no mundo existia um Corso[2],
cheio de prestígio político e guerreiro, a avassalar a Europa, isso bastou
para, numa Lisboa sossegada e indiferente, Junot se instalar como um bom
protector do povo português, transformado, poucos dias volvidos, no anho
tosquiado pelo vilão, a quem meteram a vara na mão. Pôs e dispôs a seu belo
talante do país sem chefia, desprezando a possibilidade de germinarem uma
atmosfera de revolta os seus actos despóticos e a actuação insolente dos seus
generais.
Tratou-nos, por isso, como escravos, pedindo-nos logo de entrada, como
qualquer salteador de caminhos escuros, a bolsa ou a vida. Outra coisa não
disse na proclamação de 17 de Novembro o antigo embaixador napoleónico em
Lisboa, porque ele só respondia pelo seu bom procedimento se encontrasse, por
toda a parte, o agasalho que lhe era devido, os víveres de que necessitasse e o
habitante dos campos ficasse sossegado em casa. // Partindo do princípio – a
palavra foi dada ao homem para esconder o pensamento, o antigo diplomata mascarou
com as necessidades sentidas pelo país as medidas de precaução nele ditadas só
pelo militar. // Decretos sucederam a decretos e editais a outros editais e,
assim, foram substituídas autoridades portuguesas, atropeladas as nossas leis e
desprezados os nossos costumes. Desdenhoso do nosso brio, não dando apreço ao
nosso patriotismo, mandou picar ou retirar dos edifícios os escudos com as
armas nacionais e recolher em depósitos as nossas bandeiras; licenciou, pouco a
pouco, a maior parte das nossas tropas e fez recolher em Lisboa as suas armas.
// Começando por exigir de comerciantes um empréstimo forçado de 800 contos,
acabou por extorquir-nos, em nome do seu Imperador e como indemnização de guerra,
o tributo de cem milhões de francos, ou seja, o de quarenta milhões de
cruzados. Os seus oficiais, seguindo-lhe as pisadas, tudo nos requisitavam e os
soldados, imitando a rapacidade dos chefes, iam ensacando tudo quanto de valor
encontravam à mão de semear. // Os espanhóis comparsavam bem com os franceses;
onde estavam não se distinguiam da gente de além-Pirinéus, porque eram o seu
vivo retrato, retocado, no entanto, para apresentar uma que outra vez aspectos
de gentileza. O general Tarranco, entrando por Valença, correu a ocupar o Porto
militarmente.
Fê-lo em 13/12/1807 e, nesse mesmo dia, mandou afixar uma proclamação,
em que havia rosas e espinhos. Pelo fim do ano guarneceu com destacamentos das
suas tropas algumas praças de Entre-Douro e Minho; mas a de Melgaço não recebeu
qualquer guarnição militar. Se alguma aqui esteve, passou como a sombra, sem
ficar na terra o mais pequeno sinal: nem um morto, nem um casamento, nem um
filho e ainda bem. // Tarranco era inteligente, militar brioso e político atilado,
e tudo isso mostrou não espezinhando o norte de Portugal; não se imiscuindo na
actuação das autoridades nortenhas, nem tão pouco fazendo tábua rasa das velhas
leis e dos antigos costumes vigentes na região ocupada pelo seu exército. Isso
deveu concorrer para que as armas nacionais esculpidas nos edifícios públicos
de Melgaço não fossem picadas, porque as autoridades locais limitaram o
cumprimento da ordem ao seu escondimento passageiro, por meio de uma camada de
barro amassado com cal. Mas a maioria das escopetas das ordenanças lá se foi
para o Porto e, atrás delas, as rendas públicas do concelho.
Salvou-se apenas a bandeira do Senado, certamente por mostrar só as
armas de domínio de Melgaço. // Por morte de Tarranco, em 26/1/1808, ficou a ocupar
o norte Carrafo e quando este, em 9 de Abril, marchou para Lisboa com as suas
tropas, substituiu-o Ballestá. Como, porém, a Espanha de aliada de Napoleão se
ia transformando em vítima, Abril chegou à península prenhe de ameaças para as
armas francesas. Em Portugal protestava-se; e se do protesto se não passava à
violência era por falta de cabeças dirigentes. E Maio trouxe manifestações
populares hostis em Espanha e em Portugal: em Madrid, abafadas em sangue; e no
Porto, impunes, felizmente.
Nesta cidade, em 25, fez-se o primeiro pagamento da contribuição de
guerra. Se, por qualquer capricho da Fortuna, não ficou no Porto para os
espanhóis, naqueles primeiros carros, como lembrança de Melgaço lá ia também
alguma coisa, a fim de ser conduzida para França, no fim da campanha, graças à
malfadada Convenção de Sintra. E isto se escreve apesar de ninguém saber onde
param os termos de entrega das pratas das igrejas, capelas, confrarias e
irmandades do nosso concelho, termos lavrados na primeira quinzena do mês de Março,
ao abrigo das instruções publicadas no dia 27 do mês anterior, na casa do
tesoureiro da décima, onde os culturais[3]
foram obrigados a levar aqueles bens igrejários confiados à sua guarda, para
serem relacionados e pesados na frente do Juiz de Fora da comarca, e isto se
escreve e isto se afirma, porque na falta de tais documentos, guarda-se na
minha casa memória de outra espécie. Com toda a simplicidade, mas a rescender
tanto limpeza de mãos como receio das consequências susceptíveis de surgirem
num futuro incerto, ainda e sempre possível naqueles tempos de invasão estrangeira,
se acaso não representa somente o simples protesto contra a forçada entrega ao
invasor das coisas de Deus di-lo um velho Livro de Actas duma velha confraria
da Vila – a do Espírito Santo, fundada aí por 1578 e há muito desaparecida para
os actos do culto.
Ouçamos
a voz longínqua: «Aos seis dias do mês de Março de mil oitocentos e oito anos
por ordem do Governo deste nosso reino se remeteu para a cabeça da comarca a
prata desta confraria que foi a cruz com sua haste, o caldeiro com seu hissope,
umas galhetas com seu prato, um turíbulo com sua naveta, e a vara do reverendo Prior, que tudo pesou doze arráteis e meio e
meia quarta, digo e meio, e uma quarta. E determinamos que para o transporte da
dita prata visto as ordens determinarem ser à custa da confraria, o tesoureiro
desta satisfará o importe do seu transporte que se lhe levará em conta. E, para
constar, - se fez este termo, que assinamos. Em Mesa do dia, mês, ano ut supra.
O Prior Pedro da Ribeira Araújo Castro
O Padre Francisco António da Cunha
O Eleito o Padre João Manuel Durães
O Promotor o Padre Manuel Álvares Torres
O Procurador o Padre José Lopes.»
E isto sabia-se aqui na
terra, era público e era notório. Comentava-se. Havia más vontades, porque o
conhecimento da exigência francesa chegara a todos os eidos. Mais: a cada canto
ouviam-se ameaças e se houvesse uma distracção, se a pata do Corso, por
qualquer circunstância fortuita, aliviasse a pressão esmagadora, o povo de
Melgaço imitaria o Porto e faria a sua manifestação hostil. // Portugal inteiro
era um molosso acorrentado por uma guita. Se a guita rebentasse, mordia. Rebentou-a
no Porto a Espanha, proporcionando ao continente português o ensejo de um
levantamento em massa. Em Melgaço foi ainda um espanhol quem veio comunicar o
sucesso e não precisou de encarecer a oportunidade oferecida pela Providência à
Vila mais setentrional do país, sedenta de ressegurar nas suas mãos as guias do
seu destino.
Se houvesse vindo a incitar à
revolta, talvez tivesse deixado tristonha sombra a empanar o brilho da jornada.
No Porto, capital do norte e cabeça de metade do país, representando Junot
estava o general Quesnel, a guardar, feito cão de fila, o general Ballestá. Este,
recebendo ordem da Junta Revolucionária da Galiza, reuniu as suas tropas e no
dia 6/6/1808, prendeu o general francês e o seu Estado-Maior, aprisionou a
pequena guarnição francesa do Porto e enquadrando esta entre as baionetas dos
seus soldados, entregou Quesnel aos portugueses. Confiando na sua boa sorte,
abalou depois para a grande aventura de Espanha.
O Senado da capital do
norte, forçado pelos patriotas, marcou para o dia seguinte as cerimónias da
revolta; mas o receio da vingança de Junot, avolumando-se nas sombras da noite,
fez esfriar o entusiasmo e abortar a revolta. Havia de estalar alguns dias
depois do levantamento de Melgaço.
[1] Tradução dos Coordenadores da Edição das
Obras Completas: «Nada está mais longe de meus pensamentos do que a ambição de
tudo saber, ou sabê-lo melhor do que os outros.»
[2]
Napoleão Bonaparte. Imperador dos franceses. Nasceu em Ajácio, Córsega, a 15/8/1769
e faleceu na ilha de Santa Helena (Atlântico sul) em 5/5/1821. Sobre ele
poder-se-iam escrever milhares de páginas, mas a sua vida e feitos andam espalhados
por centenas de livros e filmes, por isso não vale a pena estar aqui a
desenvolver a sua biografia.
[3] Leia-se cultuais — aqueles que tratam do
culto.
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