LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Prólogo
romance
Prólogo
Olá! Eu sou o Cândido da Matilde. Já tenho
alguma idade, cabelos brancos, algumas rugas. Todos os idosos, salvo raras
exceções, têm uma história para contar. Eu também vou contar uma: – a minha.
Como quase todas as estórias de gente humilde, é triste, muito triste, por
vezes atingindo o limiar do trágico; descreve a minha vida, enquanto jovem,
antes de ingressar no serviço militar – e tudo isso aconteceu entre os anos
quarenta e setenta do século XX. Tive a desdita de nascer onde nasci, num
lugar recôndito do Alto Minho, lugar fronteiriço com a vizinha Galiza, na cova
do lobo, onde o contrabando era dono e senhor, e onde a lei era diariamente
driblada; tive também a desdita de não ter pai legítimo, isto é, ser filho de
pai incógnito, e ter, por minha desgraça, uma mãe alcoólica, uma seguidora fiel
de Baco, grande consumidora do vinho de Noé, o primeiro a fabricá-lo e a
bebê-lo em excesso, por conseguinte o primeiro bêbado da história da
humanidade, segundo o antigo testamento.
Padeci muitíssimo: tive
em nossa casa um bruxo, amante da minha mãe, autoritário, um homem que falava o
dialeto dos ciganos, pois segundo parece com eles tinha percorrido a Península
Ibérica. A minha progenitora aderiu ao espiritismo e frequentava todas as casas
onde houvesse velórios para ali falar de mortos e de almas de outro mundo.
Apoderou-se de mim o terror, dominou-me por completo, os traumas foram
crescendo comigo, mas às tantas resignei-me à minha pouca sorte, aceitei os
desígnios dos céus e dos deuses. A minha infelicidade foi tão grande, os astros
tão desfavoráveis me foram, que a própria namorada me abandonou para casar com
um emigrante muito mais velho do que ela.
Situo a narrativa no
espaço de vinte anos, sem obedecer a regras muito precisas, ou a preciosismos
desnecessários; deambulo pelo tempo de duas décadas ao sabor da memória, minha
testemunha e confidente, e minha arca de recordações. A partir desse marco
cronológico revivo as minhas lembranças amargas, extasio-me com a vida, apesar
de ela me ser adversa, ziguezagueio por aqui e por ali. Por estranho que isso
vos pareça, eu não me sentia magoado com ninguém; achava que cada um de nós
surgia no mundo já com o seu destino traçado, tudo estaria escrito no “Grande
Livro das Datas”, não poderia fugir-lhe, e pensava, ingenuamente, que a revolta levaria ao
caos. Era nessa altura um filósofo do ruralismo, um pobre diabo que ninguém
levava a sério. Em 1967 ingressei na vida militar. A partir dessa data nada
mais vos contarei; talvez noutra ocasião.
Não quero abusar da
vossa paciência e amabilidade, do vosso precioso tempo, por isso vou
imediatamente pôr-vos em contacto com as odiosas e simpáticas personagens,
levar-vos ao encontro de situações que vos parecerão familiares, como se as
tivessem vivido, ou pelo menos presenciado a curta distância, mas que da vossa
realidade pouco mais têm do que a roupagem, pois embora a maior parte dos
factos narrados possam ter acontecido, para mim aconteceram sem dúvida, muito
daquilo que vão ler a seguir é produto da minha imaginação e da prodigiosa
fantasia, à mistura com a minha, e apenas minha, realidade, como se eu recuasse
no tempo, dentro da tal máquina ainda não usada, mas já inventada, e
engendrasse toda uma trama rocambolesca e absurda para depois pegar na pena e a
descrever para os meus leitores. Ninguém se iluda: a realidade, tal como ela
foi, jamais se submeterá à ficção, não é passível de descrição, seja de que
tipo for, porque escapam sempre os pormenores.
E a prova do que afirmo
é visível na chamada história ciência: cada historiador escreve e reescreve a
sua versão da época em estudo. Se a realidade fosse descritível, só poderia
haver uma única versão – não é verdade? Mas aqui, nesta novela, ou pequeno
romance, trata-se de ficção virtual, quase todas as personagens foram criadas,
a fim de servirem a minha história, e se confrontarem com as autênticas e
genuínas. Todas as situações, todo o enredo, as intrigas, as infidelidades e as
traições foram tecnicamente – mal ou bem - elaboradas. O ambiente natural e
psicológico é apenas o cenário onde decorre todo o espetáculo da vida, a feira
de todas as vaidades mundanas. Costuma-se avisar: «qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.» Aqui não:
o verdadeiro e o possível passeiam juntos, não de braço dado, mas quase sempre
de costas voltadas, como se a vida e a não vida pudessem coexistir no mesmo
mundo de ideias e ideais, e não de ossos e sangue.
Percorram então comigo
os carreiros sinuosos e agrestes da minha narrativa:
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