JÁ DECORRERAM DOIS ANOS
A morte é a coisa mais certa que os seres vivos têm, mas algumas mexem mais connosco do que outras. O Acácio era uma pessoa especial: bem-disposto, um humor refinado, mas educado, com uma anedota sempre na ponta da língua, que contava com prazer, contagiando o seu auditório, um coração de oiro. Jamais o ouvi dizer mal de quem quer que fosse. A sua terra, a sua família, os amigos, e a arte, a sua arte sublime, preenchiam-lhe na totalidade a vida. Do seu pai, Amadeu Maria Dias, herdara o espírito folgazão, mas inócuo, e o talento artístico; da sua mãe, Maria Fernandes da Silva, herdara a veia lutadora, a personalidade forte e aguerrida.
Acácio Caetano Dias nasceu na freguesia de
Prado, Melgaço, a 11/3/1935. Depois da 4.ª classe arranjou emprego no Grande
Hotel do Peso, mais conhecido por “Hotel Figueiroa”. Graças a um hóspede, que
viu nele o menino inteligente e perspicaz, dali seguiu para o Porto, para o
colégio Almeida Garrett, onde trabalhou como ajudante de despenseiro e
posteriormente como 2.º cozinheiro. Da cidade do Porto muda-se para Lisboa,
conseguindo colocação numa oficina do Martim Moniz e passados uns dias nos
Estaleiros da CUF, primeiro como apontador e mais tarde como caldeireiro de
cobre.
Casou a 18/9/1958, na igreja de Santiago, Lisboa, com Teresa da
Conceição Vilares, companheira de todos os momentos bons e menos bons, senhora
que o tratou com amor e carinho até ao seu último suspiro. Após o casamento, agora com novas responsabilidades, procura outro emprego, melhor remunerado. O Banco
Nacional Ultramarino, agência de Cascais, admite-o em 1959 como apontador,
passando depois a serralheiro. Trabalhou também na Biblioteca do Banco e no
Museu, não como bibliotecário ou museologista, mas sim a elaborar um inventário
de tudo aquilo que existia. A seguir foi colocado no Armazém de Móveis. Devido
à sua habilidade nata, à sua brilhante sagacidade, todos o procuravam para
resolver este ou aquele problema mecânico que ia surgindo. Depois de longos anos
de responsável labor, aposentou-se por volta de 1995.
Ao
longo da sua existência foi aparecendo paulatinamente a sua obra de escultor,
apresentando-se em diversas exposições, conquistando prémios, vendendo muitas
peças, quer a portugueses quer a estrangeiros, ofertando outras a parentes e
amigos, conservando algumas na sua casa da Parede, concelho de Cascais, onde
tinha a sua oficina. Conviveu com os seus pares, que sempre o trataram com
respeito e admiração, apesar da sua humilde origem. «Na arte somos todos iguais», dizia ele. Não frequentara escolas
superiores, é certo, mas os seus conhecimentos adquirira-os ele na maior
universidade que existe: a vida, o trabalho intenso, a observação atenta, a
curiosidade insaciável. De que vale ter diplomas académicos se depois se
adormece à sua sombra e nada se faz? O Acácio foi um autodidata no bom sentido
da palavra; claro que a autodidaxia não está ao alcance de todos, pois exige
disciplina, imensa vontade, e aquele dom que nasce com a pessoa, que alguns não
aproveitam apenas por preguiça crónica. Outros bons exemplos, só falando de
melgacenses, são Manuel Igrejas, que desde criança começou a revelar a sua
apetência pela arte, criando ao longo dos anos uma obra admirável, e o saudoso,
e tão esquecido, Óscar Marinho, cujas miniaturas em metal nos deslumbram, as
quais deviam figurar num museu para todos nós as podermos apreciar.
Em
Melgaço há poucas obras artísticas do Acácio: somente, que eu saiba, a
escultura o “Bombeiro”, em tamanho natural, à entrada do quartel dos Bombeiros
Voluntários, que ali está, desafiando o tempo (*). Eu sempre esperei que a Câmara
Municipal, através da Casa da Cultura, o convidasse para expor algumas das suas
peças, mas isso nunca aconteceu. Ainda há dias, em Braga, um conterrâneo me
dizia: «na nossa terra natal não se liga
muito aos naturais, mas sim ao de fora», e deu-me uma lista de exemplos que
me deixou a meditar sobre o assunto. Claro que ele se referia às autoridades
administrativas. Eu respondi-lhe que provavelmente isso acontecerá em todos os
concelhos do país, não deve ser exclusivo de Melgaço. Por outro lado, disse-lhe
eu, os artistas não buscam a fama, apenas desejam que a sua obra seja admirada
e sobretudo compreendida. Quantos indivíduos, continuei eu, estão à altura de
criticar técnica e cientificamente as obras de arte no âmbito da escultura,
pintura, desenho, literatura, cinema, fotografia, etc.? Certamente poucos. A
maior parte dos seres humanos gosta mais de desporto e de música popular,
entretenimentos menos exigentes do ponto de vista intelectual. Tudo bem, mas quanto
a mim, devia-se diversificar os gostos, alterar alguns hábitos, mas isso já
depende de cada um de nós. Há uma definição de cultura assaz curiosa: «A cultura é tudo aquilo que resta depois de
esquecermos o que tínhamos aprendido antes.» Talvez seja assim, talvez não
seja. O certo é que cada vez há mais oportunidades nesta área, e poucos as
aproveitam.
O
Acácio, que nunca foi um Hércules fisicamente, a partir de certa altura começou
a ser visitado por doenças, que ele ia recebendo com cortesia, sem nunca dar
parte de fraco. Submeteu-se a algumas cirurgias, a tratamentos mais ou menos dolorosos,
ingeriu “toneladas” de medicamentos. Em Novembro de 2012 foi internado de
urgência no hospital dos SAMS, em Lisboa, devido a problemas de coração, e com
uma terrível pneumonia. Ligaram-no a uma máquina. Médicos e enfermeiros tudo
fizeram para que o doente voltasse a ser o grande contador de histórias, o
brincalhão que fora, o Acácio sorridente e feliz. A esposa, a filha Clementina,
o genro, as netas, Inês e Rita, sempre que podiam estavam ali, a seu lado,
esperando o milagre que não surgiu. A uma quinta-feira, 7/3/2013, a cruel parca
veio buscá-lo; o seu corpo foi sepultado no cemitério de Trajouce, São Domingos
de Rana. Lembrá-lo-emos sempre com saudade e consideração.
Nota: este texto foi publicado em
«A Voz de Melgaço» alguns dias depois da sua morte.
Joaquim Rocha
Sem comentários:
Enviar um comentário