sábado, 31 de outubro de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




UM ADEUS À GUARDA-FISCAL DE MELGAÇO


     Presumo que haja gente na nossa terra a ter motivos fortes para não gostar da Guarda-Fiscal; respeito esse sentimento. Eu gosto! Não só por ser afilhado de Agostinho Teixeira, 1.º cabo dessa guarda, recentemente falecido, como pelo apreço que sempre tive por essa corporação. A Guarda-Fiscal vai desaparecer como corpo autónomo, vai ser integrada na Guarda Nacional Republicana! Nós, melgacenses, nesta hora de despedida não poderíamos deixar de dizer adeus a esses homens abnegados que, durante tantos anos, percorreram «montes e vales» a fim de obrigarem os prevaricadores a cumprirem a lei das fronteiras. É provável que algumas vezes tenham fechado os olhos ao grande contrabandista, mas também o fizeram certamente ao pequeno; é quase certo que nem sempre foram isentos, mas ao longo de toda a sua existência merecem, sem favor, uma nota elevada. Melgaço vai ficar mais pobre com a sua ausência, embora a partir de agora as fronteiras passem a ser espaços de liberdade, através dos quais galegos e minhotos poderão manter um contacto mais assíduo e sem qualquer receio de serem olhados com desconfiança por parte daqueles a quem incumbia zelar pelos interesses das Finanças do Estado português. Algumas freguesias do concelho de Melgaço vão-se ressentir com a extinção da Guarda-Fiscal: quer pela segurança que davam às populações, quer pelo estatuto que imprimiam aos lugares aonde se instalavam. Cevide, por exemplo, quase desapareceu com a sua saída! São Gregório foi-se tornando cada vez mais importante graças à sua presença. Antes da guerra colonial, e por conseguinte antes dos jovens procurarem terras dessa Europa rica, o contrabando era uma das fontes de receita para muitas famílias melgacenses. À noite, os homens eram recrutados nos cafés e tabernas para transportarem às costas, monte abaixo, tabaco, sabão e pedras de isqueiro, bem assim como outros produtos, para uma embarcação que os aguardava junto ao rio Minho ou, então, atravessando o Trancoso, cujas águas nunca assustaram ninguém, a fim de irem entregar as mercadorias a determinada pessoa que na outra banda os esperava. De um lado a guarda-fiscal e do outro lado os carabineiros, tentavam suster essa azáfama noturna, mas tendo sempre em conta que dessa atividade dependia o pão nosso de cada dia de inúmeras pessoas, e o seu próprio emprego. Por outro lado, a guerra civil de Espanha (1936-1939) depauperara o país e a sua indústria estava, toda ela, ao serviço da guerra, pelo que precisavam de tudo que viesse do país irmão, mormente artigos que em Espanha não havia, ou existindo eram vendidos a preços proibitivos. Assim, através deste processo, os comerciantes compravam mais barato e não pagavam quaisquer direitos alfandegários. A fuga ao fisco é tão antiga como o próprio comércio! Seria ótimo que alguém se abalançasse a escrever a história do contrabando e contrabandistas em Melgaço nos últimos sessenta anos. Trata-se de um assunto interessante mas tabu, isto é, toda a gente tinha conhecimento desse negócio ilícito mas ninguém queria falar acerca dele! Com o desaparecimento de fronteiras controladas no seio da Comunidade Económica Europeia poder-se-á falar, sem qualquer espécie de medo, desse período rocambolesco e perigoso. Era eu pequeno e já ouvia contar algumas aventuras passadas com o lendário Artur Lascas, o Abílio Costa, o Armando Furão, e tantos, tantos outros, que preenchiam o nosso imaginário. Víamo-los fugir do senhor Zeca Carteiro e de outros guardas “mauzões”! O Artur a saltar muros de quinze metros de altura como se tratasse de um simples obstáculo sem importância; a atravessar o rio num pequeno barquinho, chamado batela, como se estivesse a bordo de um poderoso navio de guerra; a deitar-se na linha férrea galega esperando calmamente que o comboio, na sua lentidão carbónea, se dignasse passar. Tal como um super-homem, sobrevivia a todas as aventuras, ressurgindo cada vez mais forte e espetacular! Nós, os garotos de então, desejávamos um dia ser assim destemidos, ousados, vencedores. Mas a sombra negra também pairava por vezes sobre esse oásis de aventuras. A morte, por afogamento, de um jovem, filho do senhor Inocêncio Pereira (Caixa), morador nas Carvalhiças, aquando da travessia do rio Minho na pequena embarcação, morte misteriosa e jamais satisfatoriamente esclarecida, deixou toda a população estarrecida e desconfiada. Que se teria passado concretamente? O Fernando, como se chamava a vítima, nadava muito bem e tinha força suficiente e lucidez para resistir às correntes. Por outro lado, conhecia, como ninguém, o leito do rio: os sítios largos e mansos, e os estreitos, com impetuosas águas apressadas. Lembro-me de terem explicado na altura que a batela transportava carga a mais e por essa razão virou-se. O pequeno barco foi na corrente e os seus ocupantes tentaram atravessar o rio a nado. O moço, que teria na altura dezassete, dezoito anos de idade, não o conseguiu. Nunca se mencionou, que me lembre, a Guarda-Fiscal. É somente uma história do contrabando. Outras há. Esperemos que alguém as conte. A História de Melgaço não é apenas a tomada do castelo por D. João I e a incrível luta entre duas bravas mulheres: é, também, o dia-a-dia de uma comunidade que trabalha, que ama e sofre; é a luta pela vida, pela sobrevivência; é a emigração que tornou Melgaço materialmente rico e populacinalmente pobre; é a sua cultura, a sua índole lutadora e de fé inquebrantável.
     A Guarda-Fiscal, talvez por não ser uma força policial, tornou-se simpática às gentes do concelho, sabendo sempre misturar-se, sem beliscar suscetibilidades e costumes locais. Bem ao contrário: muitas vezes via-se o soldado sem farda, enxada na mão, trabalhando a sua horta, a sua courela, ajudando à vindima. Devemos louvar o progresso, a livre circulação de pessoas e bens, a abolição de fronteiras reais ou artificiais, porém, deixem-nos ter saudades do passado, daquilo que tivemos e já não temos. Somos melgacenses, somos europeus, mas somos também portugueses. E o português, como bem o frisou Teixeira de Pascoaes, é um saudosista, um amador do pretérito.



Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 977, de 1 e 15/1/1993.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha





TENDEIRO


Lá vou com a traquitana
pelas aldeias afora.
Vou cantando e vou vendendo,
vou petiscando e bebendo,
vou vendendo e fiando.
No regresso – ó espanto!
Fui vestido e vim de tanga!
Isto é uma vida fandanga…
Pra ser livre, não ter canga,
vende-se tudo ao desbarato;
com certa pompa e aparato,
ao mundo sujo, insensato…
Aos bichos desse outro mato,
de uma selva inda pequena,
toureando noutra arena,
touros mansos e ovelhas;
vacas magras e carneiros,
 bebendo copos inteiros,
vinho tinto e jeropiga;
apanhando a espiga,
a azeitona pequenina,
o espinafre e a nabiça,
e ao domingo… ir à missa!

Chiça!

domingo, 25 de outubro de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves


D. João VI e sua mulher Carlota Joaquina

... (continuação)

     Não apurei a causalidade, mas o Tomás das Quingostas foi preso para as cadeias da Relação do Porto e essa prisão só podia ter sido efectuada depois de 1828. Saído «das cadeias do Porto em 1832 pela entrada do Senhor D. Pedro naquela cidade» e, na verdade todos os historiadores daquele período da luta fratricida confirmam terem as forças – desembarcadas em Pampelido –, à sua chegada ao Porto aberto as prisões e soltado os presos (indultando-os assim), veio o Tomás para São Paio, sem aguardar para a escápula a caricata aventura de Carlos Napier.
          Sua mãe tinha no lugar de Baratas uma casinha onde fora feito, dizia-se, o património do primo do seu filho, o Padre Manuel António Pereira Codesso, morador no lugar do Cruzeiro, mas comprada pelo seu marido era ainda solteiro. O Tomás, ao chegar à terra, fora-se logo com machadas e verrumas, cravos e martelos à referida casa e, à valentona, lhe cravara as portas, ficando até, alegou o padre, dentro fechadas umas suas sobrinhas. Com este acto de violência parece ter atemorizado muita gente e especialmente aquele clérigo, pois sempre ele se disse receoso de perder a vida às mãos do parente. Perde-se-lhe a pista no resto daquele ano, mas não repugna a suposição de ter gasto esses meses na formação de uma guerrilha ou a reorganizar a malta de facinorosos e atrevidos ladrões, acusada como já existente nos tempos anteriores à prisão. // Perto das Baratas vivia o cirurgião de Real, Manuel José de Caldas, casado e com filhos, a prestar os seus serviços por aquelas redondezas em troca das avenças dos fregueses, quase todas em milho, e por isso havia bom passadio no seu lar. Ora em Janeiro de 1834, o Tomás das Quingostas exigiu do cirurgião quarenta e sete alqueires e meio de milho e em Julho do ano seguinte mais cinquenta alqueires e três quartos.
          Poucos dias antes desta última data a Prefeitura do Minho iniciara a caça ao homem, oficiando aos sub-inspectores de Melgaço e de Monção para lhe ser feita guerra de morte, com «a suspeita que sejam um fermento de guerrilha nutrindo relações com os facciosos do reino vizinho» e no princípio do último trimestre deste mesmo ano secundara a caça o Governo Civil de Viana, mas confessando, abertamente, haverem-se «tornado infrutíferas todas as medidas adoptadas para este fim, pelo auxílio que os mesmos povos dão a este chefe, fazendo-se por isso tão cúmplices como os referidos salteadores...»
          Tomás das Quingostas nem assim transferiu o seu quartel-general para outra região, mas os acontecimentos políticos desenrolados no país e sobretudo no distrito, dele distraíram as atenções dos diversos dirigentes da nação, durante o ano de 1836. À vontade portanto, o Tomás continuou, a campear, em Melgaço; e, em 7/5/1836, fez ao cirurgião Caldas a nova exigência de setenta e dois alqueires de milho e, como tantos não havia em casa, levou-lhe o rol das avenças e foi cobrar a maior parte do cereal à casa dos próprios fregueses.
          O Tomás das Quingostas foi então perseguido pela tropa e, desconfiando do cirurgião, considerando-o único espia dos seus actos, recebeu em Agosto como indemnização: um cavalo, levado das Baratas pelo seu companheiro bem conhecido pela alcunha «o Casal de Sante» e em Outubro um touro, tangido desde ali pelo João Ferreiro, de Barata. Dias antes perseguido outra vez pela tropa, fora ele encontrado no caminho de S. Bento do Cando, em 11 de Julho. Apanhada a guerrilha de surpresa, pôde ela, contudo, escapar-se das garras da força pública, mas deixou ficar no sítio vários objectos e um cavalo, que a tropa apreendeu. Este insucesso foi também imputado ao cirurgião e, para salvar a vida, remiu-o pagando uma segunda indemnização: 99$800 réis. Mas como a tal luta de morte não acabara ainda, nos primeiros dias de Fevereiro do ano seguinte o Comandante da 4.ª Divisão Militar, com o conhecimento e aplausos do Governo de Sua Majestade a Rainha, anunciou às autoridades locais que, brevemente, uma força militar sob o comando do Major de Caçadores 4, José de Figueiredo Frazão «vai ocupar esse concelho, o de Monção e Valadares, com o importante fim de conseguirem o extermínio ou dispersão da quadrilha de salteadores que tantos males têm causado aos seus infelizes habitantes, e de que é chefe o malvado Quingostas
          Poucos dias volvidos sobre este aviso, Paderne foi ocupado por trinta baionetas da Ordem - de propósito mandadas por autoridades superiores para efectuarem o extermínio da fera humana. Por este mesmo tempo, no monte de Montrigo, na própria freguesia de São Paio, casualmente vieram à fala Tomás Codeço e Manuel de Caldas e dessa conversa saiu o empréstimo de cinco libras em ouro, feito por aquele para este governar a sua vida. Em Março de 1838 «com muita violência e ameaças de vida» foram-lhe ainda exigidos mais sessenta alqueires de milho. Não contente com este canastro, segundo parece sempre aberto para fornecer de broa os guerrilheiros, em 26 de Agosto recebeu o Tomás das Quingostas cento e cinco mil réis por um cavalo, que lhe levara o Isidoro, alferes de voluntários e, em 17 de Outubro, uma clavina, entregue pelo Caldas na sua própria casa ao buscador Caetano Manuel Meleiro, da Granja.
          Como sempre, o Caldas de Real foi o bode expiatório: por aquele cavalo apreendido pelo alferes de voluntários tinha-lhe sido pedida a avultada indemnização de 207$800 réis e para tanto lhe não pagar «se valeu de alguns amigos que o compuseram pela quantia de cento e cinco mil réis e uma clavina de valor de cinco mil réis.» Roubado, perseguido, procurado de dia e de noite, o cirurgião Caldas resolveu sair de S. Paio e refugiou-se na vila, porque o Tomás era «homem destemido, ladrão e matador, que roubava de dia e de noite e quando se lhe não desse ou fizesse o que ele queria logo intimava à pena de vida e assim o executava» e «depois de indultado se fez mais temível cometendo mortes e vários roubos como foi na romaria da Senhora da Peneda em Setembro de 1838, Riba de Mouro, andando em todo monte temível, muito armado e com a comitiva da sua quadrilha que a todos ameaçavam e todos temiam pelas suas desordens».
          Mas se tudo isto assim se articulou no tribunal, nos mesmos autos se escreveu, que entre Tomás Codeço e cirurgião tinha havido toda a familiaridade e bom entendimento e, por vezes, dos dinheiros do Tomás se valeu o Caldas nas suas aflições e ainda hoje se pode ler num papel esta passagem: // (continua)...

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Escritores melgacenses


3 - Padre Aníbal Bernardo Vasconcelos Mourão Rodrigues Passos. Nasceu na Vila de Melgaço a 23/12/1866. Foi sacerdote, diretor de jornal, diretor de um Colégio, e escritor. Além dos artigos de jornal e dos sermões, escreveu «A Tragédia de Lisboa e A Política Portuguesa», livro publicado em 1908 pela Empresa Literária e Tipográfica Editora; tem trezentas e vinte e duas páginas e trata do regicídio ocorrido em Lisboa nesse mesmo ano. Esta obra está à venda nos alfarrabistas, mas devido ao seu elevado preço não é fácil adquiri-la.




4 - Dr. Augusto César Esteves. Nasceu na Vila de Melgaço a 19/9/1889 e faleceu a 26/3/1964. Obras: «Melgaço e as Invasões Francesas». // «Organização Judicial de Melgaço» - edição do autor, ano de 1955. // «Santa Casa de Melgaço» - edição do autor, 1957. // «Melgaço, Sentinela do Alto Minho.» A 1.ª parte – 1.º volume (das origens ao liberalismo) foi publicada em 1957; a 2.ª parte – 1.º volume (Melgaço e as Lutas Civis, 1820-1910), foi editada em 1959; a 2.ª parte – 2.º volume (Melgaço e as lutas civis, 1820-1910), foi editada em 1960. // «O Meu Livro das Gerações Melgacenses», 1.º e 2.º volume; editado pelo arquiteto Luís de Magalhães Fernandes Pinto e Dr. Armando Barreiros Malheiro da Silva em 1989 e 1991. // «Obras Completas» volume I, tomo I e II (artigos de jornal; recolha e introdução de Armando Malheiro da Silva e Joaquim A. Rocha), edição póstuma, Câmara Municipal de Melgaço, 2002.       



terça-feira, 20 de outubro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance

Por Joaquim A. Rocha 






...(continuação)


IV

As recordações são como os venenos: matam, ou purificam!

         Neste momento encontro-me com o irmão a seguir a mim, não sei se já vos disse que eu sou o mais novo, conversando sobre a nossa meninice, sobre os nove e seis anos respetivamente que ambos vivemos em Cendre, numa casinha de pedra, junto ao regato que serve de fronteira entre Portugal e a Espanha, muito velhinha, apenas com uma divisória, cerca de vinte metros quadrados, por baixo o porco e as galinhas, mas que para nós simbolizava o ninho, a nossa cabana perdida na terra prometida, o cantinho da felicidade, e da ilusão perene. Se quiserem vão lá vê-la um dia, mas o melhor mesmo é escutar:

- Eu é que te safei da morte, a ti e à filha do meu padrinho Telmo. Estavam os dois na lareira, no quentinho, e de repente pegou-vos fogo na roupa, pediram socorro, fui logo a correr e levei-vos para a represa da água, foi por pouco, que grande susto vós apanhastes.
- Que idade tinha eu nessa altura?
- Três, ou quatro anos; eu tinha sete. A Mela deve ser da tua idade.
 - E estávamos os dois, duas criancinhas, sozinhos na lareira?  
- Eu tinha ficado convosco, mas apeteceu-me ir aos pássaros e deixei-vos sós, não me passava pela cabeça que se podiam queimar, mas também não andava por longe, de outra maneira não vos teria ouvido gritar.
- E os adultos, onde estavam?
- A mamã andava a vender peixe pelas aldeias, saía de manhã e só voltava à noite, às vezes, quase sempre, com uma grande torcida; os pais da Mela andavam na labuta dos campos, eram caseiros, não tinham descanso, só não trabalhavam aos domingos de manhã para poderem ir à missa, eu era o responsável por todos!
- Chegaste a conhecer o nosso pai?
- Não me lembro absolutamente nada dele, tinhas tu três meses, diz a mamã, quando ele se amigou ou casou com uma rapariga galega; nem nos chegou a perfilhar, é como se não tivéssemos pai, também não precisamos dele para nada, olha que nem sequer nos veio ver alguma vez, é como se não existíssemos para ele!
- Não gostavas de o conhecer?
- Eu? Para quê, só porque nos gerou? Quero lá saber dele, a mim não me é nada, nem o apelido dele nos deu!
- Está bem, não falemos mais dele. Conta-me coisas de quando éramos pequenos, quando estávamos em Cendre.
- Quando tu nasceste já eu tinha quase três anos de idade, para mim foi bom porque os dois irmãos mais velhos mal os conhecia, tinham sido criados com os avós maternos, e posteriormente foram para Lisboa, o Ambrósio depois da tropa embarcou para a Venezuela, para junto do pai, diziam que estava milionário, não sei. Quando tinhas dois anos caíste pelas escadas de pedra abaixo, vês aí essa cicatriz junto ao olho esquerdo? Foi o resultado dessa terrível queda. Levaram-te para o hospital da Vila, não sei quem te levou, devem ter sido os guardas-fiscais, no jeep; havia ali à beira da nossa casa um posto, o mais certo é terem sido eles, o teu padrinho era na altura soldado da guarda-fiscal ali. Nem sei como não morreste! Nós vivíamos por cima, na corte tínhamos um porco, a mamã vendia-o na feira logo que ele ficava grande, não o podíamos matar, porque não tínhamos condições para tal, além disso precisávamos do dinheiro, a casa era muito pequenina, só tinha uma divisão, eu e tu dormíamos com a mamã, por isso é que mamaste até aos quatro anos de idade. Um dia, estava eu a fazer o caldo, caiu-me um pedaço de telha no pote, tirei-a e comemos, não se podia ser esquisito. Quem nos ensinou a nadar, quando tu nasceste já eu nadava, foi o Dário, o filho do moleiro, no regato; na altura não sabia que nome tinha, só lhe chamávamos regato, agora dizem que se chama rio Trancoso, não sei. Tu sempre tiveste medo da água, assustavas-te, mas eu atirava-te para o meio do poço, era uma paródia, choravas, querias fugir, mas eu e o Dário não deixávamos, ele punha-te às cavalitas e tu davas aos braços e às pernas, foi assim que aprendeste. Aos sete anos tive de ir para a escola, ainda ficava quase a dois quilómetros de distância, tudo a subir, para baixo não custava nada, todos os santos ajudam, mas para cima via-me aflito, tinha de descansar pelo caminho, e eu, que naquele tempo tinha a asma, aquela doença que não me deixava respirar, fazia uma chiadeira horrível, a professora tinha muita pena de mim, no inverno era pior, chegava à escola todo molhado, descalço, e tinha de secar a roupinha no corpo, isso ainda me agravava a doença, acabei por desistir.
- Calçado nunca tivemos!
- O teu padrinho ainda te ofereceu umas alpercatas, depois foi transferido para a Vila e nunca mais te deu nada, eu é que nem isso, o meu padrinho era tão pelintra como nós, a mamã não ganhava quase nada e o que ganhava perdia-o pelo caminho, vinha sempre com uma grande borracheira, depois dizia que eram os espíritos malignos que lhe atiravam com o cesto, os espíritos era a vinhaça.
- Coitada, também sozinha, com dois filhos pequenos…
- Tu sempre a defendeste, mas olha que ela nunca teve cabeça, viveu ali tantos anos, junto à raia, era só passar o regato e já se estava na Espanha; nunca arranjou dinheiro do contrabando, muitos enriqueceram à custa dela, guardavam os sacos de café e outras coisas na nossa casa, nunca teve cabeça o raio da mulher.
- Era analfabeta.
- E os outros não o eram? Naquele tempo a maioria das pessoas não sabia ler nem escrever, quem tivesse a quarta classe era um doutor, arranjava um emprego no Estado, embora não ganhassem muito, mas também não faziam quase nada e eram respeitados e temidos pelo povo rural. Olha o Getúlio, tinha uma loja de material para a construção e era analfabeto, nem sequer podia conduzir os carros por causa da carta, depois lá a conseguiu, nem sei como; e o Tendeiro, não tinha negócios?! Sem conhecer uma letra do tamanho de um camião! O que estragava a tua mãe era a bebida, não a deixava pensar, vivia com o cérebro atrofiado, afogado em álcool.
- Estivemos em Cendre até 1950; tinha eu seis anos, e tu, mais três.
- Já os nossos avós maternos, a Isaura e o Gaspar, tinham morrido: ela em 1947 e ele em 1949, pouco me lembro deles, tu se calhar nada.
- Moravam na Vila e nós em Cendre, a nove quilómetros de distância; provavelmente poucas vezes nos viram, nem nos deviam ter muito amor «longe da vista, longe do coração.»           

- Eles iam a Cendre algumas vezes, mas poucas. Parece que nos levavam comida e roupinha, eles também eram pobres e tinham muitos netos, os filhos da tia Marília, do tio Aurélio, e esses estavam junto deles, nós não. A tua mãe sempre lhes deu desgostos, coitados, não tiveram nenhuma sorte com esta filha. 
// (continua)...

sábado, 17 de outubro de 2015


OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha 




17

Tinha na minha mente castigar
Os sanguessugas desta linda pátria
Os vis parasitas, sempre a louvar,
A comer à lauta da teta mátria.
Mas as pernas dobram, falta o ar,
A longa energia foi pra a via láctea.
 Porém farei das tripas coração,
Para que não criem falsa ilusão.

18

Esquece, velho e digno Camões,
As nereidas e as lindas ninfas do Tejo.
Os grandes feitos, as vãs ilusões,
Que tudo isso eu hoje já não vejo.
Dos céus mandam-nos enormes tufões
  Pragas de mosquitos e percevejo.
E pra que eu possa cantar o país
Devo arrancar o mal pela raiz.  



quinta-feira, 15 de outubro de 2015

     LINA, FILHA DE PÃ

romance


Por Joaquim A. Rocha


... (continuação)

     Leopoldo voltou para dentro. Aqueles rostos já se vislumbravam mais calmos. A catraia já chorara, bom sinal, e agora ali estava a mamar tranquilamente nas grandes tetas da progenitora.

- O Senhor Doutor não nos cobrou um vintém! É um santo homem. Que Deus o ajude sempre, para ele nos poder também ajudar.
- Ó homem! Não o convidaste para beber?
- Ainda o pensei, mas o vinho não está grande coisa. A trovoada deu cabo dele. Broa ainda temos alguma, embora a masseira esteja à espera que a encham de novo, mas presunto e salpicão já se foram. O que lhe ia oferecer, mulher?!
- Pois é! Casa de gente humilde está sempre com carências – quase tudo falta. Esperemos melhores tempos. Lá diz o povo: «a esperança é a última a morrer.»                      
- Daqui a uns dias já se mata o porco, o capador anda por perto; nessa altura leva-se-lhe um pratinho de fêveras a casa.
- Bem merece, esse médico santo. Que Deus o abençoe.

     A conversa prolongou-se por mais uns minutos e depois todos se dirigiram para a mesa, a fim de comerem uma malga de caldo de couves e farinha, com umas batatas e uns quantos feijões lá dentro. A senhora Clotilde costumava botar na panela de ferro um grande pedaço de toucinho, mas agora até esse estava a rarear, por isso punha lá dentro apenas um pedacito, mais uns couratos, que era divido por todos. Contudo, eles já se resignavam com essa escassez, e iam dizendo: «Não há mal que sempre dure….» E a seguir atiravam-se sofregamente às couves e às batatas, que essas duravam todo o ano.

- Temos que pensar no nome da cachopa – disse a avó paterna, Ambrósia, antes de se retirar para sua casa, ali perto; vivia com uma filha solteira, pois o marido já tinha morrido.
- Eu por mim punha-lhe Lina, em homenagem à bisavó – aventou Gertrudes, sempre pronta a meter a colherada nos assuntos alheios.
- Não está mal pensado – observou Clotilde.
- Será a Lininha – corroboraram os tios.

     E assim aconteceu. Batizaram-na primeiro em casa, sem quaisquer rituais, por ser frágil, por correr risco de vida, e passados uns dias levaram a criaturazinha à igreja, a fim de receber a água benta, tornar-se cristã, e ficar registada no livro dos assentos de batismo; além disso, da boca do velho pároco ouvir-se-ia pronunciar o nome «Lina», que acompanharia aquele ser até ao seu último suspiro.
     O acto religioso, na igreja da freguesia, foi muito simples. Os padrinhos da miúda foram os avós maternos, gente da lavoura, que para a cerimónia vestiram a sua roupinha domingueira. Ainda pensaram pedir a alguém importante, talvez da Casa e Quinta da Formosa, para assumir essa responsabilidade, mas desistiram, pois não estavam em condições financeiras de fazerem uma festa, por mais modesta que fosse.       
     No dia seguinte dirigiram-se à Conservatória do Registo Civil a fim de registarem a neófita. A lei assim o impunha, e eles eram pessoas cumpridoras.   

**

    A criança, por mais incrível que isso nos pareça, vingou! Nas redondezas quase todas as bocas sussurravam que ali tinha havido um milagre. A minoria, gente menos crente, malévola, pensava que fora o demo a protegê-la. Diziam:

- Não! Não pode ser! Aquela criança não tinha o mínimo de hipóteses para hoje estar viva. Nasceu com pouco mais de um quilo, se tanto, com cara de esfomeada, com pêlo por todo o lado, e ei-la aí a saltar como uma cabrita! Uma verdadeira traquina; uma Maria Rapaz! Ali anda mão de Belzebu! – vociferou o Pinelo.
- Lá estás tu com as tuas coisas! – lamentou-se o Tónio Vesgo, cheio de compaixão pela rapariga. Por que não dizes que foi um santo, ou uma santa, que lhe valeu?  
- Ó meu amigo! Eu não acredito em milagres, mas sei que o demónio se apodera dos seres fracos, para mais tarde os usar contra as almas puras.
- Isso são blasfémias, insultos à divindade – atreveu-se a dizer o Zé dos Pipos, apesar de temer o grandalhão do Pinelo.
- Só faltavas cá tu! Qualquer dia corto-te a língua, para deixares de dizeres tantas asneiras. Vai limpar as botas ao presbítero, que as sujou na lama, quando saiu da casa da Francisca. Andas sempre a bajulá-lo, a ajudar à missa, mas ele não te liga nenhuma.
- Veja lá como fala! Eu ajudo o senhor abade porque quero, ninguém me obriga. Acredito em Deus, na Santíssima Trindade, na Mãe do Céu e nos Santos e Arcanjos. Vossemecê não acredita em nada! É um descrente, um ímpio. Quando morrer vai para o inferno, para a fogueira. Vai-se transformar numa alma penada.
- Tu já és uma alma penada, desgraçado. És um beato, um patamaz, nem as raparigas da aldeia se interessam por ti. És um papa-hóstias.

     Os presentes riram com agrado. As gargalhadas ouviam-se a muitos metros de distância. Zé dos Pipos retirou-se, humilhado. Era a sua sina. Tentava defender os fracos, mas a ele todos o atacavam. A sua bondade natural transformara-se no seu calcanhar de Aquiles: por ser bom, todos abusavam dele. Até o reitor: «vai aqui; vai acolá», sempre a dar ordens, e ele sempre pronto a obedecer. As moças não lhe ligavam patavina: achavam-no ridículo e riam-se na sua cara. E ele estava apaixonado pela Rita, aquela pastora formosa, mas ela afastava-se dele ou então dizia-lhe: «Zé dos Pipos, achas-me com cara de tola? Vai namorar com uma beata, das que andam sempre na igreja, talvez uma delas te queira.» Ele retirava-se, cabisbaixo, quase a chorar, e lamentava-se: «eu, que lhe quero tanto, sou tratado assim; o Manuel das Várzeas, que mal a olha, é tudo para ela!» // (continua)...


terça-feira, 13 de outubro de 2015

Havemos de ir a Viana

Entre sombras misteriosas,
em rompendo ao longe estrelas,
trocaremos nossas rosas,
para depois esquecê-las.

Se o meu sangue não me engana,
como engana a fantasia,
havemos de ir a Viana,
ó meu amor de algum dia.

Ó meu amor de algum dia,
havemos de ir a Viana,
se o meu sangue não me engana,
havemos de ir a Viana.

Partamos de flor ao peito,
que o amor é como o vento;
quem para perde-lhe o jeito,
e morre a todo o momento.

Se o meu sangue não me engana,
como engana a fantasia,
havemos de ir a Viana,
ó meu amor de algum dia.

Ó meu amor de algum dia,
havemos de ir a Viana,
se o meu sangue não me engana,
havemos de ir a Viana.

Ciganos, verdes ciganos,
deixai-me com esta crença;
os pecados têm cem anos,
os remorsos têm oitenta!


Pedro Homem de Melo



Caramuru 

     Quando eu andava por Viana do Castelo, nas minhas investigações no Arquivo Distrital, numa das praças principais da cidade vi uma estátua em bronze, representando um homem, alto, forte, e uma mulher jovem e bonita. Curioso como sou, li o que ali se escrevera, indaguei, colhi mais elementos sobre essas duas figuras enigmáticas. Vim a saber que se tratava de Diogo Álvares Correia, nascido em Viana por volta de 1475, o qual, ainda novo, embarcara para o Brasil, tendo o barco onde seguia naufragado já em terras brasileiras. Alguns dos que seguiam a bordo provavelmente morreram, mas ele não; salvou-se graças a uns índios. Gostaram tanto dele que acabou por casar com uma moça da tribo, a qual, anos depois, numa visita que ambos fizeram a França, paga por comerciantes de madeira, franceses, foi nesse país batizada na igreja católica e recebeu o nome de Catarina. Ele era conhecido entre os índios por “Caramuru”. Ajudou imenso os primeiros colonos e missionários, e até o rei de Portugal, D. João III, através de uma carta, lhe pediu essa colaboração. Faleceu em Tatuapara, Salvador, Baía, a 5 de Outubro de 1557, com 82 anos de idade. Segundo consta, deixou muitos filhos.     


domingo, 11 de outubro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




Cartas de um castrejo

10.ª - «Senhor Redactor: soa, ao longe, um clarim que tanto pode ser o da vitória como o da ruína, segundo o conto a seguir, e que prova que os homens ouvem conforme têm o coração e a inclinação. Um santo e um guerreiro ouviam o mesmo som. Aquele dizia: parece que oiço tocar a coros. Este respondia: será tumulto de guerra? Pois era o mesmo som e era a mesma distância – logo, ouviram “conforme tinham o coração e a inclinação”. Nós, que temos o máximo desejo de ver o equilíbrio económico desta querida terra, que nos foi berço e… quem sabe? nos será cobertura quando a morte nos paralise a energia, queríamos vê-la enfileirar na cruzada que encetou. “Um desconhecido”, no “Correio”, e que trata das mutuais bovinas – sociedades tendentes a indemnizar os sócios dos prejuízos a haver por morte ou desgraça do seu gado bovino. Leiam aqueles simples artiguelhos, onde transparece a boa vontade sã, à míngua de engenho, e verão os altos benefícios que uma freguesia como a nossa pode auferir da associação para garantia de gado bovino, por morte súbita ou outro acidente, quer sejam o santo ou o guerreiro, aquele toque deve soar-lhe ao ouvido, sem discrepância de ideais ou distâncias. Ouviram, meus queridos conterrâneos? // O digno encarregado do registo civil desta freguesia escreve-nos, com data de 30, p.p., justificando a sua abnegação, interesseira naquele lugar. Fala-nos da «falta de instrução» (isso conhecêmo-lo nós de mais e é um dos nossos mais graves males); diz-nos que a carência de selos produz, muitas vezes, demoras alheias à sua vontade; assevera-nos que a repartição é em sua casa e, por fim, que desempenha aquele lugar como castrejo amigo dos que lhe compartilham a sorte. Nem por um momento duvidamos das suas afirmativas e cremo-lo piamente. Se a sua carta de 30 chegara a horas já no número passado do “Correio” haveríamos pedido a publicação das suas razões, porém, permita-nos que lhe ponderemos: à distância do posto do Registo Civil, há lugares nesta freguesia de 5 a 10 kms – não é verdade? Pois vir do Ribeiro, por exemplo (lugar mais distante), ao posto e ter de continuar a Melgaço em busca de uma estampilha, para o registo ser lançado e o respectivo bilhete legal, isto é incrível e desumano…! Cinco léguas (25 km) para conseguir uma estampilha, por não a haver na repartição competente! Isso chega na Vila de Melgaço, onde o notário – para o mais pequeno reconhecimento nos manda, ali, à tesouraria, buscar uma estampilha, até de centavo! Mas as distâncias centuplicam-se e as ruas calçadas de Melgaço não se equiparam aos caminhos intransitáveis de Castro Laboreiro e, de mais a mais, vendo a cada passo um precipício! A neve que ainda enche as ravinas dos regatos caudalosos, os barrancos que buscam despenhar-se a cada momento, os buracos que nos convidam a esconder-nos nas suas guelas negras…, tudo isto deve lembrar ao bom amigo Rodrigues, ou melhor, ao Oficial do Registo Civil deste concelho. E mais: que este posto em Castro Laboreiro precisa ter: 1.º - casa própria para repartição, pois esta freguesia já foi um concelho e a sua população tem direito a muitas regalias que lhe são cerceadas. 2.º - selos, papel e instruções especiais, que são requeridas pelo meio em que vivemos e que em quadras do ano nos afasta da convivência universal. 3.º e último: a melhor boa vontade do encarregado, virtude que lhe não falta, sem dúvida, mas que é indispensável pôr à prova em todas as ocasiões e, muito mais, nas mais difíceis. Sabemos que não tem obrigação de ter selos, que não tem nem o mais ínfimo dever de emprestar casa para a repartição, etc., mas também sabemos que, com um pequenino esforço, pode ter selos; e casa já a dá, o esforço não falta e temos tudo regularizado. Não é verdade? E se alguma coisa faltar, agarre-se ao seu bispo, que é o nosso dilecto amigo Dr. José Joaquim Abreu (*), para este deixar o veículo e caminhar às mil maravilhas. Se nos queixarmos ambos, a ambos absolve e remedeia, aconselhando, pois sabe e não lhe falha a vontade de nos ser útil. // (…) // Mais uma proeza da Guarda-Fiscal desta freguesia é a partida pregada ao nosso bom amigo José Joaquim Alves (**), apreendendo-lhe – ilegal e inconcientemente – uma porção considerável de chocolate! Nós temos aconselhado à Guarda Fiscal, aqui onde, diga-se de passagem, uma ou outra vez aparecem empregados zelosos e cumpridores dos seus deveres, que não nos julgue país conquistado, para não nos incomodar seriamente. Nada. Julgam-se senhores absolutos e parece que refinam à medida que os aconselhamos – pelo que, aliás, lhes não levamos cheta! Vale-nos, porém, que o Chefe da Guarda Fiscal, neste concelho, alia a um carácter primoroso, uma rectidão inabalável, e fará entrar no cumprimento estrito do dever os que, não querendo ouvir-nos, falseiam a sua missão. Valeu, camaradinhas? E, se Deus me der forças, para o dia 9, irei expor a S. Ex.ª muitas coisinhas bonitas! // Castro Laboreiro, 6/4/1916.»                

(*) // Foi o primeiro Conservador da Conservatória do Registo Civil de Melgaço; era natural do lugar de São Gregório, freguesia de Cristóval.

(**) // Sócio de uma pequena fábrica de chocolate em Castro Laboreiro. Os guardas por vezes fechavam os olhos, mas as chefias exigiam-lhes serviço, por isso tinham que aplicar algumas multas.  

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

MELGACENSES NA GUERRA CIVIL DE ESPANHA


     Lê-se na Cronologia Enciclopédica do Mundo Moderno: «A vitória eleitoral da Frente Popular encabeçada por Manuel Azaña não foi bem aceite pelas forças conservadoras espanholas, sobretudo pelo exército. O general Francisco Franco, comandante militar no Marrocos espanhol, inicia a revolta. Durante três anos (1936-1939) republicanos e nacionalistas vão travar uma das mais violentas guerras civis da História. A União Soviética, o México e, sobretudo, voluntários de esquerda (leia-se democratas, defensores da democracia) provindos de todo o mundo apoiam as forças governamentais. A Alemanha (de Hitler), a Itália (de Mussolini), e Portugal (de Salazar), apoiam os rebeldes (de Franco). Quando os nacionalistas entram em Madrid em 1939 a Espanha era um país arrasado por uma guerra sem tréguas, em que morreram cerca de um milhão de espanhóis, e que fez partir centenas de milhares para o exílio.»            

    De Melgaço saíram alguns jovens a fim de entrarem na luta, uns ao lado das tropas de Franco e outros contra elas. Aqueles que estiveram ao lado do caudilho foram na sua maioria recrutados pelo Dr. João Durães, dono da farmácia, entre outros, ligados à legião portuguesa. Hoje vou falar de dois irmãos que se puseram ao lado dos republicanos. As razões que os levaram a entrar nessa maldita guerra civil eu as desconheço, mas suponho que seriam de ordem ideológica.  Eis os dois manos:


DOMINGUES, Abílio Augusto. Filho de José Roque Domingues, tamanqueiro, e de Maria Joaquina Dias, doméstica, naturais de São Paio, moradores no sítio do Regueiro da Ponte, Fiães. Neto paterno de Manuel Caetano Domingues e de Maria Joaquina Figueiredo; neto materno de Manuel Caetano Dias e de Rosa Emília Domingues. Nasceu em Fiães a 17/1/1906 e foi batizado na igreja católica local a 21 desse mês e ano. Padrinhos: Vitorino Domingues e Ludovina Domingues, solteiros, camponeses. // Casou na igreja católica de Desteriz, Padrenda, a 6/6/1929, com Emília, de 21 anos de idade, natural de Rouças, filha de Vitorino Dias e de Ana Cardoso. // Segundo me informou António Augusto de Melo, nascido em Cavaleiros, Rouças, em 1928, o Abílio Augusto (e também o seu irmão Manuel Albano, nascido em Fiães a 6/9/1910) lutou na guerra civil de Espanha contra as tropas de Franco; como foi derrotado, teve de fugir para França.  // Nada mais sei sobre ele. Não esquecer que logo a seguir à guerra civil de Espanha começou a segunda guerra mundial.   



    




quarta-feira, 7 de outubro de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



O NOSSO RIO


     No livro de Geografia para a terceira e quarta classes, de 1950, pode ler-se: «o rio Minho nasce nos Montes Cantábricos, em Espanha, e tem a sua foz em Caminha. Passa pelas vilas de Melgaço, Monção e Valença, servindo de fronteira entre Portugal e Espanha desde Melgaço a Caminha. Pela margem esquerda tem como afluente o Coura
     Para os rapazes do meu tempo o rio foi um amigo, um confidente – a nossa Bracalândia. Nele nadávamos, pescávamos, atravessávamo-lo para irmos às festas que se realizavam nas aldeias galegas vizinhas. Foi talvez pelos inícios dos anos quarenta que o senhor Mário Trancoso teve de o atravessar rapidamente devido a uma briga entre galegos e portugueses. A frase «adiós Cresciente, nunca mais verás a Mário Tenente» ficou famosa. Foi sobre o seu leito que o senhor Alfredo Lourenço, por essa mesma altura, repousou da gorda refeição comida à borla e com direito a troco! A história é curta e vou contá-la sem grandes floreados. O senhor Alfredo foi, talvez num sábado à tarde, a uma dessas festas galegas com os seus amigos melgacenses. Depois de passearem, de dançarem, os seus estômagos começaram a exigir-lhes o respetivo alimento. O amigo Alfredo, líder do grupo, virou-se para os seus companheiros de farra e disse-lhes: «vamos comer à taberna do Pablo; quanto ao pagamento, não se preocupem, eu pago tudo!» Os amigos entreolharam-se, interrogando-se com o olhar. Não queriam crer que ele tivesse assim tanto dinheiro, e fosse tão magnânimo, para lhes pagar a ceia. No entanto, a fome era tanta que não dava para ficarem ali parados a especular sobre essa súbita riqueza onassiana. Correram para a conhecida tasca, comeram e beberam até ficarem satisfeitos. Agora é que iriam ser elas. E se o Alfredo, às vezes tão fanfarrão, não tivesse dinheiro? Diz um deles ao ouvido do que lhe estava mais próximo: «reza». O Alfredo, impávido e sereno, no seu jeito de grande senhor, grita para o dono da taberna: «Eh, Pablo! O meu troco?» O homem, não tendo braços, nem pernas, para atender a todos os clientes, responde-lhe: - «Quanto me deste, hombre?» O Alfredo, sem hesitar, arrisca: - «quinhentas pesetas». O taberneiro pergunta-lhe: - «E quanto pagas?». «Trezentas pesetas.» O galego dá-lhe de troco duzentas pesetas! Comeu, bebeu, ele e os amigos, e ainda meteu dinheiro ao bolso! Coisas do Alfredo. Há quem diga que o tal senhor, logo que soube da marosca, lhe chegou a roupa ao pêlo. Não acredito, mas é possível.
     Foi também por ter ido ao rio, sem autorização, que o Valdemar ouviu de sua mãe, a senhora Nunes, a seguinte admoestação: «Vai, vai, mas olha que se afogas levas uma tareia que recordarás para o resto da tua vida!» Felizmente, para ele e para todos nós, não lhe aconteceu nada de grave. O Joaquim Augusto de Magalhães Fernandes (Angola,1937-Vila de Melgaço,1977) ia tendo menos sorte. No Peso o rio tem correntes traiçoeiras e o Joaquim esteve quase, quase, a afogar-se. Salvaram-no in extremis. Outros, sucumbiram mesmo: por ousadia, por excesso de confiança, por ignorância ou azar, ou por qualquer outra coisa, deixando assim todo o nosso concelho de luto. O rio é um amigo, mas temos de respeitar a sua força, a sua magia, o seu abraço mortal.
     Um dia, há uns bons trinta anos atrás, assisti a um acontecimento inesperado. Estava no monte de Prado, a olhar embevecido essa paisagem deslumbrante e única, quando ouço tiros de espingarda. Um jovem corria pela margem espanhola e, de repente, atira-se ao rio para o atravessar. Este levava pouca água, mas as correntes aí são perigosas. Atrás dele corriam dois carabineiros, disparando para o ar. O rapaz, qual campeão de natação, atravessa o rio com uma rapidez incrível. Penetra no monte do senhor António “Lareiro”, perdendo-se, assim, de vista. Que teria feito para se expor desse modo às balas da autoridade? Contrabando? Roubo? Nunca o soube. Nesse tempo a curiosidade não era aconselhável – a ignorância protegia-nos! A notícia, muito deturpada, apareceu no jornal «Notícias de Melgaço». O informador, ou informadores, fantasiaram, tendo chegado ao ridículo de atribuírem nome ao rapaz! Isso só seria possível se o tivessem visto de perto, o que não aconteceu.
     Outra lembrança do rio tem a ver com os namoricos. As raparigas galegas, mais ousadas, menos tímidas, do que as portuguesas, deslocavam-se todos os domingos para a margem e nós, os que sabiam nadar (aqueles que não sabiam muito, era o meu caso, nadavam com a ajuda de uma boia) íamos ter com elas e conversávamos, num galego-português medievo, sobre assuntos diversos. Antes de ir para a tropa despedi-me delas e de seus olhos rolou uma esquiva lágrima. Para o rio escrevi o soneto:   


Lindo rio, quantas boas lembranças
Eu tenho de ti, meu bom rio Minho;
Trataste-me com amor, com carinho,
Embalaste ténues, vãs esp’ranças.

Naquelas nunca esquecidas andanças,
Subindo e descendo por mau caminho,
Sussurrei-te ao ouvido, tão baixinho!
Palavras doces, chorosas e mansas.

Sei que continuas à minha espera…
Aí, nesse lugar belo e deleitoso;
E eu aqui, nesta suja atmosfera!...

Lembrando ainda aquele antigo gozo,
Aquele fetiche feito quimera…
Quem roubou a esta alma seu esposo?


              

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 975, de 1/12/1992.