terça-feira, 20 de outubro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance

Por Joaquim A. Rocha 






...(continuação)


IV

As recordações são como os venenos: matam, ou purificam!

         Neste momento encontro-me com o irmão a seguir a mim, não sei se já vos disse que eu sou o mais novo, conversando sobre a nossa meninice, sobre os nove e seis anos respetivamente que ambos vivemos em Cendre, numa casinha de pedra, junto ao regato que serve de fronteira entre Portugal e a Espanha, muito velhinha, apenas com uma divisória, cerca de vinte metros quadrados, por baixo o porco e as galinhas, mas que para nós simbolizava o ninho, a nossa cabana perdida na terra prometida, o cantinho da felicidade, e da ilusão perene. Se quiserem vão lá vê-la um dia, mas o melhor mesmo é escutar:

- Eu é que te safei da morte, a ti e à filha do meu padrinho Telmo. Estavam os dois na lareira, no quentinho, e de repente pegou-vos fogo na roupa, pediram socorro, fui logo a correr e levei-vos para a represa da água, foi por pouco, que grande susto vós apanhastes.
- Que idade tinha eu nessa altura?
- Três, ou quatro anos; eu tinha sete. A Mela deve ser da tua idade.
 - E estávamos os dois, duas criancinhas, sozinhos na lareira?  
- Eu tinha ficado convosco, mas apeteceu-me ir aos pássaros e deixei-vos sós, não me passava pela cabeça que se podiam queimar, mas também não andava por longe, de outra maneira não vos teria ouvido gritar.
- E os adultos, onde estavam?
- A mamã andava a vender peixe pelas aldeias, saía de manhã e só voltava à noite, às vezes, quase sempre, com uma grande torcida; os pais da Mela andavam na labuta dos campos, eram caseiros, não tinham descanso, só não trabalhavam aos domingos de manhã para poderem ir à missa, eu era o responsável por todos!
- Chegaste a conhecer o nosso pai?
- Não me lembro absolutamente nada dele, tinhas tu três meses, diz a mamã, quando ele se amigou ou casou com uma rapariga galega; nem nos chegou a perfilhar, é como se não tivéssemos pai, também não precisamos dele para nada, olha que nem sequer nos veio ver alguma vez, é como se não existíssemos para ele!
- Não gostavas de o conhecer?
- Eu? Para quê, só porque nos gerou? Quero lá saber dele, a mim não me é nada, nem o apelido dele nos deu!
- Está bem, não falemos mais dele. Conta-me coisas de quando éramos pequenos, quando estávamos em Cendre.
- Quando tu nasceste já eu tinha quase três anos de idade, para mim foi bom porque os dois irmãos mais velhos mal os conhecia, tinham sido criados com os avós maternos, e posteriormente foram para Lisboa, o Ambrósio depois da tropa embarcou para a Venezuela, para junto do pai, diziam que estava milionário, não sei. Quando tinhas dois anos caíste pelas escadas de pedra abaixo, vês aí essa cicatriz junto ao olho esquerdo? Foi o resultado dessa terrível queda. Levaram-te para o hospital da Vila, não sei quem te levou, devem ter sido os guardas-fiscais, no jeep; havia ali à beira da nossa casa um posto, o mais certo é terem sido eles, o teu padrinho era na altura soldado da guarda-fiscal ali. Nem sei como não morreste! Nós vivíamos por cima, na corte tínhamos um porco, a mamã vendia-o na feira logo que ele ficava grande, não o podíamos matar, porque não tínhamos condições para tal, além disso precisávamos do dinheiro, a casa era muito pequenina, só tinha uma divisão, eu e tu dormíamos com a mamã, por isso é que mamaste até aos quatro anos de idade. Um dia, estava eu a fazer o caldo, caiu-me um pedaço de telha no pote, tirei-a e comemos, não se podia ser esquisito. Quem nos ensinou a nadar, quando tu nasceste já eu nadava, foi o Dário, o filho do moleiro, no regato; na altura não sabia que nome tinha, só lhe chamávamos regato, agora dizem que se chama rio Trancoso, não sei. Tu sempre tiveste medo da água, assustavas-te, mas eu atirava-te para o meio do poço, era uma paródia, choravas, querias fugir, mas eu e o Dário não deixávamos, ele punha-te às cavalitas e tu davas aos braços e às pernas, foi assim que aprendeste. Aos sete anos tive de ir para a escola, ainda ficava quase a dois quilómetros de distância, tudo a subir, para baixo não custava nada, todos os santos ajudam, mas para cima via-me aflito, tinha de descansar pelo caminho, e eu, que naquele tempo tinha a asma, aquela doença que não me deixava respirar, fazia uma chiadeira horrível, a professora tinha muita pena de mim, no inverno era pior, chegava à escola todo molhado, descalço, e tinha de secar a roupinha no corpo, isso ainda me agravava a doença, acabei por desistir.
- Calçado nunca tivemos!
- O teu padrinho ainda te ofereceu umas alpercatas, depois foi transferido para a Vila e nunca mais te deu nada, eu é que nem isso, o meu padrinho era tão pelintra como nós, a mamã não ganhava quase nada e o que ganhava perdia-o pelo caminho, vinha sempre com uma grande borracheira, depois dizia que eram os espíritos malignos que lhe atiravam com o cesto, os espíritos era a vinhaça.
- Coitada, também sozinha, com dois filhos pequenos…
- Tu sempre a defendeste, mas olha que ela nunca teve cabeça, viveu ali tantos anos, junto à raia, era só passar o regato e já se estava na Espanha; nunca arranjou dinheiro do contrabando, muitos enriqueceram à custa dela, guardavam os sacos de café e outras coisas na nossa casa, nunca teve cabeça o raio da mulher.
- Era analfabeta.
- E os outros não o eram? Naquele tempo a maioria das pessoas não sabia ler nem escrever, quem tivesse a quarta classe era um doutor, arranjava um emprego no Estado, embora não ganhassem muito, mas também não faziam quase nada e eram respeitados e temidos pelo povo rural. Olha o Getúlio, tinha uma loja de material para a construção e era analfabeto, nem sequer podia conduzir os carros por causa da carta, depois lá a conseguiu, nem sei como; e o Tendeiro, não tinha negócios?! Sem conhecer uma letra do tamanho de um camião! O que estragava a tua mãe era a bebida, não a deixava pensar, vivia com o cérebro atrofiado, afogado em álcool.
- Estivemos em Cendre até 1950; tinha eu seis anos, e tu, mais três.
- Já os nossos avós maternos, a Isaura e o Gaspar, tinham morrido: ela em 1947 e ele em 1949, pouco me lembro deles, tu se calhar nada.
- Moravam na Vila e nós em Cendre, a nove quilómetros de distância; provavelmente poucas vezes nos viram, nem nos deviam ter muito amor «longe da vista, longe do coração.»           

- Eles iam a Cendre algumas vezes, mas poucas. Parece que nos levavam comida e roupinha, eles também eram pobres e tinham muitos netos, os filhos da tia Marília, do tio Aurélio, e esses estavam junto deles, nós não. A tua mãe sempre lhes deu desgostos, coitados, não tiveram nenhuma sorte com esta filha. 
// (continua)...

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