terça-feira, 18 de julho de 2017

A ADVERSIDADE POR MADRASTA
 
Romance de José Alfredo Cerdeira




// continuação...

     Num lugar abrigado entre dois montes, ao fundo do qual corria um regato bordejado por algumas leiras cavadas em socalcos até onde a montanha o permitia, viviam uma mulher dos seus quarenta anos, um rapaz dos seus quinze e uma moçoila que rondaria as suas dez primaveras, se bem que a estação das flores se escusasse a aquecer aquelas paragens com os seus dias mornos e a perfumar o meio ambiente com o aroma das plantas floridas. Sucedia que nenhuma das crianças era filha da referida mulher. O rapaz era seu sobrinho e a rapariga, sua afilhada. Desde tenra idade, todavia, se encontravam sob sua tutela, por falecimento dos pais de ambos e não terem família que deles tomasse conta. Embora a casa onde moravam, os campos que amanhavam e o rebanho serem pertença do sobrinho, por herança de seus pais, ele ignorava tal facto, atendendo a que sua tia sempre se intitulara dona e senhora de todos esses bens. Habituara-se a administrar todos os pertences do sobrinho, desde que sua única irmã se finara, visto que o cunhado há muito falecera, não desejando perder essas prerrogativas, mesmo após a maioridade do rapaz. Os usos da terra favoreciam as suas pretensões, pois nem inventário houvera, aquando da morte dos progenitores do moço. Existindo tio ou tia tomava o lugar dos pais e tudo corria dentro da normalidade, obedecendo os rebentos do casal finado ao familiar, como se de seus próprios pais se tratasse.

        Rosa dos Carvalhos, assim se denominava a mulher, apelido pouco usual na zona, onde os mais vulgares eram os Esteves, os Domingues, os Rodrigues e os Afonso, nutria forte aversão contra o sobrinho, devido a, nos seus tempos de juventude, ter namorado com o pai do rapaz e, na altura em que o casamento estava apalavrado, ele a deixara, trocando-a pela irmã. Do ultraje jurou vingança e, decorridos todos aqueles anos, mantinha-se fiel ao seu juramento. Como ambos os protagonistas da sua desdita tinham entregue a alma ao Criador, descarregava todo o fel que lhe inundava a alma sobre o fruto daquele enlace que tamanhos padecimentos lhe acarretara. Com quarenta e tantos anos, para cúmulo assoberbados de trabalhos, de privações de toda a ordem, de amarguras sem conta, que haviam feito dela uma velha precoce, não alimentava ilusões de vir a ser feliz e, muito menos, arranjar marido. Naqueles tempos, mulher que fosse repudiada, jamais alguém olharia para ela. Para uma aldeã, vivendo em lugares recônditos, onde os usos e costumes se mantinham intactos desde há séculos, o casamento era o alvo a atingir, dele dependendo o seu futuro. Enquanto novas, as raparigas lançavam o olho ao rapaz que mais lhe enchesse a vaidade, havendo, já, as mais práticas e sabidas a escolherem aquele que melhores condições de vida lhe poderia proporcionar. À medida que os anos iam passando, tornavam-se menos exigentes, servindo-lhes aqueles que possuíssem umas leiras e umas cabeças de gado. Após os vinte e cinco, agarravam-se a qualquer um, como derradeira tábua de salvação, ao darem-se conta que a frescura dos verdes anos se esvaecia. Na eventualidade de nem essa tábua de salvação surgir, invejavam as que lograram alcançar a felicidade, as que arranjaram amparo para a velhice, as que arrastavam pesada cruz. Em seu entendimento, por se verem enjeitadas, todas usufruíam melhor sorte do que elas. Naturalmente que semelhante mentalidade tende a desaparecer com o decorrer dos anos e o evoluir dos tempos. A juventude já contacta com outras pessoas, já estuda, já se apercebe da transformação do modo de vida. Os pais emigrados mandaram seus filhos estudar, ambicionando tirá-los dos trabalhos árduos que eles padeceram.

        Nas longas noites de invernia, quando a nortada cortante silvava, afigurando-se levar tudo de escantilhão, amontoando a neve de encontro às portas, Rosa dos Carvalhos, embrulhada num xaile coçado, acocorada à lareira, sonhava com a ventura que usufruiria, acaso tivesse casado com o homem que amara apaixonadamente e a trocara por sua irmã, sem uma explicação, sem uma palavra, abandonando-a simplesmente, como peça usada. Ao meditar sobre essa hipotética felicidade que lhe escapara por entre os dedos, mais acirrava o ciúme enraizado no íntimo, ao longo daqueles anos e, consequentemente, mais detestava o fruto daquela união que a ferira profundamente. Com efeito, o ciúme recalcado poderá levar uma pessoa a desfechos imprevisíveis, nomeadamente se rebitado numa alma deficientemente formada. Em tais circunstâncias, induzirá a actos de consequências assustadoras. Dava-se precisamente o caso da referida mulher não possuir uma formação moral minimamente exigida a uma pessoa de bem. O nível cultural dela era nulo, contactos com o mundo jamais mantivera, vendo-se circunscrita ao meio onde viera ao mundo. Para cúmulo, os padecimentos, a solidão, haviam cavado profundo abismo na sua alma. Nunca frequentara a escola por, na altura, ser considerada desnecessária e a distância ser quase intransponível. A sua vida religiosa resumia-se a umas quantas orações ensinadas por sua defunta mãe, ainda em criança. Em contrapartida, acolhia todas as superstições que campeavam na região, transmitidas de pais para filhos, ao longo das gerações. Nas aldeias isoladas, os padres exercem enorme influência sobre o povo, cabendo-lhes, portanto, moldar os espíritos mal formados, rebeldes e irascíveis. Desafortunadamente, na grande maioria dessas aldeias, o pároco não se dava ao incómodo de moldar o carácter, de aconselhar os paroquianos, de os guiar, procurando antes incutir no seu espírito a imagem de um Deus implacável que, pela mínima falta, atira uma alma para o fogo eterno, sem remissão. Não será, eventualmente, a maneira mais ajustada de conduzir o rebanho que lhe foi confiado. Pela vida fora, as pessoas descobrem que foram ludibriadas, especialmente aquelas que se aventuram pelo mundo fora e então o juízo que farão de quem lhes incutiu tais preconceitos não será muito abonador. Insinuar no espírito de uma criança determinada dose de medo sobre a justiça Divina auxiliará a evitar umas quantas travessuras, pelas quais, aliás, não virá o mal ao mundo. Desde que a dose seja administrada adequadamente, ainda será de aceitar. Agora, por tudo e por nada ameaçar com a ira de Deus, penso tratar-se de erro crasso. Muitos dos sacerdotes que exercem o seu múnus nas aldeias mais recônditas possuem avançada idade, vivem isolados, não acompanhando, naturalmente, a evolução dos tempos, estagnando no desenvolvimento e nas ideias, arreigando-se a costumes que a própria igreja ultrapassou, há muito. A hierarquia abandona esses seus membros, como coisa inútil, acarinhando os mais novos que, por seu turno, recusam essas freguesias perdidas nos confins do país.

 // continua...

sexta-feira, 14 de julho de 2017

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha




Macróbios
 
 
 
     Embora já não seja uma grande novidade viver até aos noventa e tal ou cem anos de idade, mesmo assim nem toda a gente consegue atingir esse patamar. Por outro lado, chegar a velho é por si só uma coisa boa, sobretudo quando a saúde não nos abandona e temos alguém que nos ajuda a suportar a velhice. No concelho de Melgaço existem muitos idosos, apesar da população ser pequena. O clima ali é favorável ao ser humano: tem rios, montes, ar puro; os alimentos ali produzidos são de grande qualidade. O vinho, a fruta, os legumes, são de primeira. 


DOMINGUES, Manuel José. // Lavrador. Nasceu na freguesia de Penso, concelho de Melgaço, por volta de 1764. // Morreu a 9 de Maio de 1864, em sua casa, sita no lugar  de Felgueiras, com mais de cem anos de idade, no estado de viúvo de Maria Ventura Vaz, e foi sepultado na igreja paroquial. // Fizera testamento. // Deixou filhos.

 *

DOMINGUES, Maria. Filha de Rosa Domingues, moradora no lugar das Lages. Neta materna de Manuel Domingues e de Maria Joaquina Vaz. Nasceu na freguesia de Penso a 7 de Julho de 1909 e no dia seguinte foi batizada na igreja da paróquia. Padrinhos: António Esteves Cordeiro e Rosa Clara Domingues, casados, proprietários. // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 26/12/1932 com José Domingues, de vinte e dois anos de idade, natural da freguesia da Bela, concelho de Monção, filho de Sebastião Domingues e de Ludovina Maria Rodrigues. // Enviuvou a 7/9/1987. // Faleceu na freguesia da Pena, concelho de Lisboa, a 20/7/2004, com noventa e cinco anos de idade.     

 *

ESTEVES, Rosa. Filha de Francisco Esteves e de Bebiana Esteves, lavradores, residentes no lugar de Paranhão. Neta paterna de José Esteves e de Maria Luísa Gonçalves; neta materna de Manuel José Esteves e de Clara Joaquina de Caldas. Nasceu na freguesia de Penso a 31/3/1884 e foi batizada nesse mesmo dia. Padrinhos: José Xavier de Castro e sua esposa, Mariana Esteves, rurais, do sobredito lugar. // Casou na igreja de Penso a 6/2/1910 com o seu conterrâneo José Esteves Reguengo, de vinte e quatro anos de idade, solteiro. // Ambos os cônjuges faleceram em Penso: o marido a 30/10/1925 e ela a 14/1/1981, com noventa e seis anos de idade. 

 

segunda-feira, 10 de julho de 2017

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha


quadro de Malhoa



Tenho alma de herói e de poeta,

Trago Camões metido no meu bojo;

Por ele ainda hoje ando de nojo,

Na sua obra tracei a minha meta.

 
Cupido alvejou-me com sua seta,

Comi carqueja, feno, muito tojo;

Por ele andei de cócaras, de rojo,

Segui às curvas numa longa reta.

 
Tudo isto que escrevi era mentira

Se eu vivesse em pura ilusão,

Chamasse pechisbeque à safira...

 
À urtiga rainha do sertão.

Eu não confundo cores com olfato,

Em tudo tem de haver luz e recato. 

sexta-feira, 7 de julho de 2017

PROVÁVEL ORIGEM DO TOPÓNIMO PADERNE
 
Por Joaquim A. Rocha






      Quanto a mim, Paderne, em questão de nome, tem menos uns anos do que Melgaço. Vou tentar explicar porquê. Tal como fiz para o primeiro caso, também vou transcrever alguns documentos, a fim de conseguir o meu objectivo, que é veicular uma explicação aceitável para estes topónimos. Comecemos então por Aldomar Rodrigues Soares “Mário de Prado” (1913-1962):
      [«Muito se tem dito e escrito sobre o famoso cipo funerário (outros chamam-lhe estela de Paderne), chegando mesmo alguns autores de antiguidades a tomar alhos por bugalhos e a confundi-lo com o túmulo da abadessa D. Paterna e de seu marido, quem quer que este tenha sido: conde ou plebeu, Hermenegildo ou não… / Ora eu, que estou devida e iconograficamente documentado, e sei do paradeiro de todos eles, posso já garantir que são coisas muito diferentes. E quem não quiser acreditar que vá ver o tal cipo no Museu Etnológico de Belém e as duas tampas tumulares no Museu Nacional Soares dos Reis, do Porto, para onde estas foram levadas do Museu Arqueológico do Carmo, e onde figuram com os números 28 e 29 na respectiva Secção Lapidar. / De resto, podia também dizer agora de como e quando as três peças foram desenterradas na sacristia do velho Convento; de como e quando o Dr. José Leite de Vasconcelos, fundador e director do Museu Etnológico de Belém veio a Paderne, as viu no adro do dito Convento, as cobiçou, e diligenciou para removê-las para aquele Museu; dos óbices e peias que o solicitador Manuel José Nóvoas, do Outeiro, então vogal da Junta de Freguesia de Paderne, bairristicamente teceu e forjou para que as faladas peças não saíssem dali, etc., etc., pois tudo isso anda escrito em letra de forma. Hoje, porém, apenas desejo arquivar nestas colunas a gravura do tal cipo funerário, na esperança de que surja algum estudioso que, com olhos de lince e sólidos conhecimentos nestes assuntos, consiga reconstituir a sua inscrição e dela dar-nos uma versão convincente, pois o que sobre a mesma corre… não convence. Mas até lá nada me impede de fazer o seu estudo e consignar aqui as minhas conclusões. / Ora esta pedra, que é de forma irregular e mede aproximadamente 1,60 metros, 0,15 metros e 0,50 metros, respectivamente, de altura, espessura e largura, pode dividir-se em quatro segmentos, no segundo dos quais, num nicho superiormente recurvado, vemos duas figuras em pé que, a julgar pelas feições e pelo vestuário, são homem e mulher. Cada uma delas segura um vaso na mão direita e dá a esquerda à outra; e, porque a figura mutilada do primeiro segmento é provavelmente um sacerdote* que também segura um vaso…, é de admitir, pois, que esta cena nos represente a cerimónia dum casamento pagão, estando, ou preparando-se, assim, sacerdote e nubentes, para fazer as libações do ritual. / No terceiro segmento, transbordando para o quarto, vê-se a famigerada inscrição que tantas dores de cabeça tem causado a todos quantos dela se têm ocupado, cuja leitura, apesar dos meus conhecimentos de latim irem pouco mais além do que os que tenho de chinês, desdobradas as respectivas abreviaturas e depois do começo usual destes epitáfios, que geralmente abriam com um «Diis manibus sacrum», ou com outra fórmula semelhante, quero vê-la assim: / …Ennjus Filius Annorum C et Compar Valerivs Compar Ard/e Annorum L Hic Situs Sunt Pentvs Compar Fecit Caelamem (?). / Isto para vernáculo talvez se pudesse verter deste modo: «… (fulano), filho de Énio, de cem anos, e seu companheiro Valério, esposo de Arda, de cinquenta anos, estão aqui sepultados; seu companheiro Pento fez (ou cinzelou) esta obra». / Será assim…? Não será…? Discutam os cabos o assunto e digam da sua justiça, que eu, nisto, como aliás em tudo, continuo a ser praça rasa, e não vejo jeitos de vir a ser promovido a… entendido.»]
     (Este artigo, publicado primeiramente em “A Voz de Melgaço” foi inserido no livro “Padre Júlio Vaz apresenta Mário”, de 1996, páginas 61 e 62).   
 
     A. Freixinho diz que se trata de um guerreiro. A ser Júpiter, de facto era apresentado por vezes como um deus guerreiro, a grande potência tutelar do Império, em Roma como no estrangeiro.
      Este cipo em pedra dá-nos uma pista para explicar Paderne como local sagrado. Muito antes de ter sido construído o mosteiro cristão, existiu ali certamente um monumento dedicado a um deus, talvez Júpiter (Paterni, o pai), ao qual se fariam sacrifícios de animais e se ofereceriam diversos produtos, sobretudo dos campos. Lê-se em “Portugal – das Origens à Romanização”, na página 374, obra dirigida por Joel Serrão e Oliveira Marques: «Na área da Idanha, um certo Tibério Cláudio Rufo (século I d.C.) ofereceu uma ara a Júpiter em agradecimento por 120 libras de ouro que recolheu. Esta quantidade de ouro equivaleria à soma necessária para construir um teatro e um templo
       E em “Religiões da Lusitânia”, volume III, páginas 567 e 568, citando São Martinho de Dume (século VI): «E levou os rústicos a erigirem-lhe templos com estátuas e aras, onde se derrama sangue, não só de animais mas [também] de seres humanos.» E prossegue: «… até deram aos dias da semana denominações diabólicas – Marte, Mercúrio, Jove (Júpiter), Vénus, Saturno».
     Os monges e freiras cristãos não ousaram destruir todos esses vestígios ou testemunhos do passado longínquo, mas encobriram-nos, para que ninguém soubesse, além deles, que antes do cristianismo existiram outras religiões, outros deuses, venerados por imensa gente. A ignorância passou a ser um factor de dominação.
     O nome do sítio já era muito antigo e ninguém conseguiu modificá-lo; no entanto, pouco a pouco, a sua origem foi sendo apagada, e em nossos dias não passa pela cabeça de nenhuma pessoa relacionar Paderne com o deus Júpiter, a quem chamavam Paterni (pai dos deuses).
     Com o advento da nacionalidade, no século XII, houve necessidade de administrar o território, sobretudo militarmente, pois os riscos de invasão por parte do inimigo eram muitos. Assim, Afonso Henriques, transformou, em 1141, o território de Paderne num couto, anexando-lhe Cousso e Cubalhão, e excluindo São Paio, que inseriu no recém-criado concelho de Melgaço, e talvez Alvaredo, que passou para o concelho de Valadares.
     O couto tinha a obrigação de defender parte da fronteira, que se tornou perigosa (talvez seja essa a razão principal das freiras terem saído de Paderne), conjugando esforços com outras forças, daí os seus habitantes estarem isentos de cumprir o fossado e outros deveres, aparentemente na forma de privilégios.
     Se queremos então relacionar Paderne com Júpiter, precisamos saber o que esse deus representava no panteão romano:
           «Pai e soberano dos deuses, deus do céu, do raio e do trovão, que reinava no Capitólio (cidadela e templo no monte Capitolino, uma das sete colinas da Antiga Roma), onde os triunfadores eram coroados. / Era filho de Saturno (equivalente ao Cronos grego), primitivo soberano dos deuses, e de Reia, mãe dos deuses, do céu e da terra. / Nasceu numa gruta em Creta, tendo sido confiado a duas ninfas, que o alimentaram com o leite da cabra Amalteia e o mel do monte Ida. Da pele dessa cabra fez Júpiter o broquel que usava sobre os ombros. / A sua consorte era Juno, a mãe dos deuses    
     Sobre o Monte do Capitólio, num planalto junto da cidadela, os etruscos projectaram e construíram em pedra o maior templo da Itália, dedicado a Júpiter, que eles consideravam «o melhor e o maior». (Tudo isto, e muito mais, se pode ler em “Os Romanos”, de Michael Grant e Don Pottinger, Moraes Editores). 
          Existem várias abordagens para explicar o nome Paderne. Vejamos:
1.ª - {«Paderne era nome comum a toda a região, incluindo a actual freguesia, e as de São Paio e Alvaredo. Parece que o topónimo quer significar Saturno (da palavra celta Padern). É tradição que na Cividade houve um templo pagão dedicado a esse deus, protector da vinha e ligado à agricultura; em abono desta tradição temos o facto de naquela povoação terem aparecido alguns capitéis e outros ornatos, e uma estela funerária que depois de ter sido levada para o adro do convento, onde esteve como lájea, o Dr. José Leite de Vasconcelos levou-a em 1903 para o Museu Etnológico de Belém; esta estela apresenta num nicho recurvado duas figuras, homem e mulher, e é rematada por um busto decapitado segurando um vaso e a inscrição:…» (Ver mais acima o texto de “Mário de Prado”; o autor deste naco de prosa é-me, para já, estranho). 
  
2.ª - «A origem do nome Paderne tem sido objecto de atenção da parte de alguns escritores, atribuindo a sua origem a Dona Paterna, fundadora do mosteiro do Salvador de Paderne. / Como o nome de Paderne seja mais antigo do que o mosteiro do Salvador, alguns (…) – para fazerem prevalecer esta etimologia – têm chegado a negar a existência de Dona Paterna, dando ao mesmo tempo como hipótese sua filha Dona Elvira, atribuindo então a sua origem a qualquer homem poderoso, de nome Paterno, e de preferência uma Paterna. / Esta etimologia torna-se um tanto forçada e ao mesmo tempo repugnante. Existem em Portugal – pelo menos – mais três terras com o nome de Paderne, e então seríamos obrigados a dar para cada uma delas um homem poderoso com o nome de Paterno – ou, de preferência, uma Paterna – a fim de encontrarmos a sua origem. / O nosso “Notícias” (…) julga-se com todo o direito de reagir, apresentando a sua opinião aos seus estimados leitores, quanto à origem do nome Paderne – nome comum às duas freguesias de São Paio e Salvador, do concelho de Melgaço. / Os principais lugares de habitação das tribus proto-históricas no nosso país eram nos altos das montanhas, das quais nos restam ainda muitos vestígios que hoje se chamam Castros, Crastos, Castrelos (…), cuja origem é pré-romana e puramente lusitana. (Consultar “Religiões da Lusitânia”, volume II, página 79). / Perto destes Crastos passam ordinariamente correntes de água, mais ou menos caudalosas. Depois de percorrer todo o território pelas duas freguesias de Paderne – examinando os seus outeiros cónicos, onde não faltam todas as características de castros pré-romanos – ninguém pode duvidar que estes se tornassem invencíveis por grande espaço de tempo, e que deles tirassem o nome de Paderne. / Paderne – que devia ser Paderna – é palavra antiga; vem do antigo lusitano; significa lugar alto, rude, duro e invencível. / Esta etimologia torna-se mais associável e portanto mais digna de crédito. Frei Agostinho de Santa Maria, descrevendo a freguesia de Paderne no concelho de Albufeira, Algarve, diz o seguinte: «Para a parte do ocidente, em distância de duas léguas, se vê o lugar de Paderna, a que outros erradamente chamam Paderne, por outro título semelhante que tem um lugar entre Douro e Minho, no arcebispado de Braga.» / Tornando à origem do nome Paderne, concluímos que este era comum ao território ocupado pelas duas freguesias, e portanto muitíssimo anterior aos seus mosteiros – ainda mesmo ao de São Paio – e que estes tomavam o seu nome da terra onde foram construídos. / Quanto à existência de Dona Paterna e sua filha Dona Elvira, fundadoras do mosteiro do Salvador de Paderne – [tese] impugnada por alguns – torna-se um facto acreditável, pois tudo quanto nos dizem as histórias do mundo nos vem pela boa-fé que lhes damos. / (…) / As pedras do venerando mosteiro (…) são outras tantas páginas que nos falam da sua nobre fundadora. / Pinho Leal fala das pedras da sepultura dos dois cônjuges – o conde Hermenegildo e sua esposa Dona Paterna – mencionando duas sepulturas com tampa de pedra, uma com uma estátua de um guerreiro em baixo relevo e outra com a figura de uma mulher, também em baixo relevo, cujos restos arqueológicos desapareceram do mosteiro de Paderne para irem figurar nos museus de Lisboa. / Ainda alguns escritores, ingratos para com o paladino de Tui – negando a sua existência – chegaram a confundir este com outro conde Hermenegildo (*), vencedor do conde Witiza, no tempo de Afonso III, o Magno «sic transit gloria mundi».} / (A. Freixinho, in “Notícias de Melgaço” n.º 894, de 3/4/1949).        
(*) O vencedor de Witiza chamava-se Ruderico (Roderico, Rodrigo) e não Hermenegildo (ver “História da Civilização Ibérica”, de Oliveira Martins, página 111).
 
  
 
 3.ª - «Chama-se de Paderne conforme um manuscrito antigo de Dona Paterna, mulher de Dom Ramiro, rei de Leão, primeira Senhora desta terra, ou conforme alguns de Dona Paterna, mulher de Dom Hermenegildo, conde de Tui; antigamente se chamava Paterna esta terra e agora com alguma corrupção do nome se chama Paderne
     Nota: Quem isto escreveu foi o pároco da freguesia, em 1758, em resposta a um inquérito nacional, que tinha por objectivo elaborar um dicionário geográfico do país. (Ver “As Freguesias do Concelho de Melgaço Nas Memórias Paroquiais de 1758”, página 166).
4.ª - «Houve aqui um mosteiro de cónegos regrantes de Santo Agostinho, fundado pela condessa Dona Paterna, viúva de Dom Hermenegildo, conde de Tui, numa sua grandiosa quinta, que possuía nestes sítios, com outras propriedades e aldeias. Fundou o mosteiro para nele se recolher com suas quatro filhas, e outras nobres senhoras de Tui, que as quiseram acompanhar. / Em 6/8/1130, estando as obras concluídas, foi sagrada a igreja do mosteiro pelo bispo de Tui, Dom Paio, que também nesse dia o dedicou ao Salvador, e lançou à condessa, suas filhas e mais companheiras, o hábito das cónegas de Santo Agostinho. Mandou para confessores e capelães sete clérigos que em 1138 se fizeram regulares da mesma ordem, vivendo em comunidade. A condessa lhes mandou fazer claustros, dormitórios, celas e mais oficinas, do lado do sul da igreja, que os dividia das freiras, que ficavam ao norte. (*) A fundadora foi a primeira prioreza das freiras, e Dom Ramiro Pais o primeiro prior dos religiosos. / A povoação tomou o nome de Paterna, que depois se corrompeu em Paderne, porque ao mosteiro se dava o nome de mosteiro de Paterna. Não se sabe quando deixaram de existir aqui freiras, mas sabe-se que em 1248 só havia frades, tendo por prior Dom João Pires, grande partidário de Dom Afonso III, pelo que este monarca fez grandes doações ao mosteiro, concedendo-lhe muitos privilégios. O mesmo prior, sendo a igreja muito pequena e antiga, a mandou demolir em 1264, construindo-se outra, que foi sagrada em 6 de Agosto deste ano, pelo bispo de Tui Dom Emígdio.» (“Dicionário Histórico, Biográfico, Bibliográfico, Heráldico, Corográfico, Numismático e Artístico.” / João Romano Torres – Editor. 1903).     
 
     (*) {«… A nostalgia devia ser, porém, natural em anos tão verdes e por isso o bispo mandou logo para confessores e capelães, do piedoso redil das cónegas, sete clérigos, que a crónica diz serem de boa vida; e tanto de boa vida ali se deram que oito anos depois se faziam regulares sob a mesma regra de Santo Agostinho, vivendo em santa comunidade – entre si, entenda-se – que não vá a malícia do leitor supor que era em comunidade com as cónegas gentis. // (…) Em 1140 faleceu a prioreza e foi sepultada numa capela-mor, ao lado do Evangelho, tendo em meio relevo a sua figura sobre a tampa do sarcófago. Junto a ela, em meio relevo também, está a figura dum guerreiro, que se supõe ser o conde Dom Hermenegildo. A inscrição deste túmulo está ilegível, por muito gasta. / No priorado sucedeu-lhe sua filha, Dona Elvira, à qual Dom Afonso Henriques doou o couto de Paderne em 1141, dizendo nessa doação: «lh’a fazia pelos bons serviços que lhe fizera quando ele estava sobre o castelo de Castro Laboreiro, a quem tinha cercado, mandando-lhe mantimentos e alguns cavalos, entre eles um muito formoso e jaezado ricamente para a sua pessoa.»} (ver “O Minho Pitoresco”, páginas 33 e 34).  
5.ª - {«Assim, deixou claro (o padre Bernardo Pintor) que o nome de Paderne deriva do patronímico Paterni e que a origem deste mosteiro nada tem a ver com Dona Paterna, viúva do conde de Tui, Dom Hermenegildo, por alguns considerado também conde do Porto, e que a identificação da abadessa, Dona Elvira Sarrazins, como filha de Dom Hermenegildo e de Dona Paterna não passa de uma confusão e transferência abusiva, que a própria distância cronológica não consente, com os dois nobres fundadores do mosteiro do Sobrado, da diocese de Iria, próximo de Santiago de Compostela, nos meados do século X ou, mais concretamente, em 952. Vejamos as suas próprias palavras (do padre Bernardo Pintor): «De também o mosteiro de Paderne ser dúplice [freiras e monges] nos seus princípios, ser dedicado ao Divino Salvador e ter à sua frente em 1141 a abadessa Dona Elvira, deveu surgir, em época posterior, a confusão de fazer esta dita abadessa filha de Dom Hermenegildo e de Dona Paterna.»} (Ver Professor Dr. José Marques, “O Cartório e a Livraria do Mosteiro de Paderne em 1770”, Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço, número 1, páginas 11, 13 e 19). 
     6. ª - {«Parece tratar-se de topónimo do norte, pois (…) encontra-se com muita frequência na Galiza: Corunha, Lugo (vários casos), Ourense, Pontevedra. Também está na província de Oviedo, aqui, ao lado de Paderni; na Corunha também temos Paderno; Padierno em Salamanca; nesta e em Ávila há Padiernos; Paderna na Galiza (Lugo) e Paterna na província de Valência; Trespaderne, em Burgos; o carácter setentrional do topónimo algarvio talvez se possa também verificar pela presença de p-; este é Paterna em 1267 (Portel, p. 40); no Algarve aparece sempre Paderna (II, 3; VII, 2, 3, 11), mas Paderne no «De Itinere Navali», etc., na Relação da Derrota Naval, façanhas, e sucessos dos cruzados que partiram do Escalda… (Lisboa, 1844), página 43. Em Clarimundo está Paderne (III, p. 97). Notar agora o (casal de) Paderni em texto de 1258 (Inquirições, página 361). Notar em 1125: «ecclesiam Sancti Pelagij de Paterni integram in ripa Minei…» (D.M.P., I, p. 89). Tratar-se-á de Paterni (villa), genitivo do antropónimo masculino Paternu-; no caso de Albufeira podemos ter uma transplantação toponímica ou mais um exemplo do e, final, devido à articulação meridional. O antropónimo Paterno tinha algum uso, devido talvez ao célebre santo do mesmo nome (séculos IV e V), o mesmo que, por ser orago de templo, deu origem ao santo Paderno, em Melgaço. Como se verifica, na toponímia também há vestígios do respectivo feminino, como o próprio nominativo Paternus.»} (José Pedro Machado, “Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa”, páginas 1114 e 1115).    
     O mesmo autor lembra, no dito Dicionário, página 1114, o Monte da Paderna, sito em Odemira. Acha que é uma adaptação de Paderne «tratando-se, como parece, de alusão a mulher do local, oriunda de Paderne…»
     No “Dicionário de Santos”, de Jorge Campos Tavares, fala-se do santo Paderno, o qual terá nascido cerca de 480 e foi bispo de Avranches, cidade da Normandia; fez apostolado no Cotentin e fundou, perto de Granville, o mosteiro de Saint-Pair-sur-Mer. / Como as mordeduras de serpente não o afectavam, é evocado quando alguém é atacado por cobras.
 
*
      Depois do que ficou acima escrito, muitos leitores perguntarão: «Mas como é que os romanos, ou pessoas romanizadas, vieram parar ao território do nosso Alto Minho?» A explicação é relativamente simples e tem a ver com a história do Império Romano. Os fenícios vieram até aqui por motivos comerciais; os legionários vieram para a Península Ibérica a fim de lutar contra os cartagineses que ameaçavam Roma. Os soldados, depois de anos de lutas intensas e desgastantes, passavam à situação de reformados e era-lhes oferecido pelos generais terras que iam conquistando no seu percurso. Os romanos, segundo nos ensina a História, sempre gostaram da agricultura. A guerra era somente um episódio nas suas vidas. Como tinham as armas, a força, podiam escolher para si as melhores quintas. E de facto escolheram: os terrenos perto do rio Minho, férteis e adubados pela natureza, com temperaturas amenas, com chuvas abundantes. Em Cristóval, Paços, Chaviães, vila de Melgaço, Prado, Remoães, Alvaredo, Penso, São Paio e Paderne, tudo lhes pertenceu em determinada altura. Quanto às terras mais altas: Fiães, Castro Laboreiro, Lamas de Mouro, Gave, Parada do Monte, etc., não sei, julgo que não lhes deve ter interessado por aí além.
     Quanto a mim, alguns desses antigos legionários fixaram-se no sítio que é hoje Paderne e aí construíram as suas casas e quintas, as famosas «villa». Com eles trouxeram a sua religião, como todos os emigrantes fazem. O culto ao deus Júpiter estava generalizado, era quase como os cristãos em relação a Jesus Cristo. Rapidamente lhe devem ter construído um templo e esse local, e arredores, ficou a ser conhecido por Paterni, em homenagem ao pai dos deuses, tal como acontecera com Melgaço séculos atrás. Tinham trazido também a sua língua, o latim, que se espalhou por toda a península, salvo raras excepções, apagando do mapa quase todos os outros idiomas. Dialectos com mais de oitenta mil anos pura e simplesmente desapareceram! Restou o vasconço, língua ainda hoje falada. 
   Depois, no século V, chegaram à Península Ibérica os chamados povos bárbaros: vândalos, do norte da Jutlândia; suevos, também germanos, da bacia do Elba, os quais fundaram o reino da Galécia, que durou até 585, cuja capital era Braga, tendo-se convertido à fé católica; alanos, vindos do Cáucaso e do nordeste da Rússia; visigodos, ramo ocidental dos godos, vindos das planícies do Dniepre, rio da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, de religião ariana, aceitando o catolicismo no século VI, os quais foram derrotados pelos muçulmanos no ano de 711, na famosa batalha de Guadalete, todos eles se espalhando por toda a parte, misturando-se alguns deles com os autóctones, e a religião dos romanos, e não só, pouco a pouco, sumiu-se! Deles, romanos, ficou a língua, as suas leis, os seus métodos administrativos, as suas técnicas agrícolas. O nome Paderne conservou-se, felizmente, até nossos dias. Ali perto os cristãos criaram a freguesia de São Paio, em homenagem ao santo Pelágio, e construíram imensas igrejas e capelas, esquecendo-se tudo que para trás ficara. Só graças à arqueologia é que se vai descobrindo, aqui e ali, vestígios, as ruínas do passado.
     E por falar nisso, agora, que se fala tanto em turismo cultural, por que é que não se investe mais em escavações, Governo e Câmaras Municipais, a fim de se trazer à luz do dia esses legados de civilizações antigas? Quase todo o velho concelho de Melgaço esconde, disso tenho a certeza, imensas riquezas arqueológicas. Quem se esqueceu já do que se encontrou, por mero acaso, quando se construía, há uns anos atrás, a estrada nova? Praticamente está tudo por fazer neste pedacinho de Portugal. Na minha perspectiva, um povo que ignora o seu verdadeiro passado é um povo inculto. É necessário dar à lenda o que é da lenda; e à História o que lhe pertence por direito.             

quarta-feira, 5 de julho de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha




14.º capítulo (continuação)...

- Como vocês sofreram! – diz Henrique, com voz plangente.

- É verdade. E na flor da idade, meu amigo. Mas, para que não penses que quero calar tudo aquilo que vi e assisti, dir-te-ei apenas que o combate do Cantanhez teve uma face dura, cruel, inumana. Os piores instintos do homem vieram à tona. Não se encontravam ali humanos a lutar, mas sim feras indomáveis, tigres rasgando as entranhas da presa capturada! A raiva superou sempre a lucidez; o medo não conseguiu paralisar o dedo colado ao gatilho; a fúria imperou sobre a prudência e o bom-senso!

- A mocidade, sangue na guelra!...

- Sem dúvida. E também interesses de vária ordem estavam em jogo. As grandes potências capitalistas estavam com o olho em África. Há ali muita riqueza para ser explorada. Portugal não se aproveitava, nem deixava os outros fazê-lo! Daí os movimentos de libertação terem apoios impensados há alguns anos atrás. Mas continuando a narrativa:

     Embora se ouvissem ainda tiros e gritos aqui e ali, retirámos, já ao entardecer, não sem cautelas, e lentamente aproximámo-nos do rio, a fim de embarcarmos. Mal avistámos os barcos da marinha o nosso estado de espírito melhorou um pouco, o nosso coração deixou de bater tão apressadamente.

- Era quase como sair do inferno!

- A viagem de retorno, como deves calcular, não teve alegria, mas sim abatimento, tristeza. Os nossos camaradas evacuados para o hospital e o quase esgotamento não o consentiam. Queríamos dormir, mas as embarcações, demasiado exíguas para tanta farda, não o permitiam. Encostados uns aos outros, suportando a custo aquele cheiro desagradável a catinga, a bodum, de corpos sem higiene, semicerrávamos os olhos e logo imagens terríficas, assustadoras, surgiam na nossa mente algo perturbada. O pânico apoderava-se de nós. Só espíritos muito fortes, sãos, conseguiriam ultrapassar este mau momento. E não seria o único! Outras escaramuças, acirradas pelejas, brigas mil, já se desenhavam no horizonte próximo.

- Nem é bom pensar nisso! – exclama Henrique, como se ele próprio fosse viver aqueles momentos aflitivos.

- Como eu gostaria que os portugueses de Quatrocentos não tivessem pisado o funesto solo africano. Agora estávamos nós ali, naquele bosque letal, sofrendo as consequências, os efeitos e infortúnios, desse acto aventureiro e irracional. Por que é que D. João I e os reis seguintes não procuraram desenvolver o Portugal ibérico, deixando a quente África aos africanos? Quiseram dar ao mundo “novos mundos” e aos filhos da nação, a partir daí, deram atroz sofrimento e a morte!

- Graças a essas aventuras, temos «Os Lusíadas», de Camões, e outras obras importantes da literatura portuguesa – contrapõe Henrique.

- Não sei se a “troca” compensa. A vida e a felicidade são os bens mais preciosos que há. Ainda dizem que de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos! Eu diria: «De África só desgraça e carraça!» Quantos portugueses morreram por causa das designadas possessões ultramarinas? Terão conta, ao longo destes séculos? E acredita: os que mais defenderam a sua manutenção não puseram, jamais, lá os seus macios pés nem pegaram numa arma para as defender. Limitaram-se a produzir verborreia sem sentido.                            

- Mas a História é a História, e reis e chefes de Estado ambiciosos e tolos sempre houve, há e haverá – sentenciou Henrique, depois de ter bebido duas imperiais e uma caneca. Não era hábito, porém, naquele dia, precisava de mais álcool, aquela batalha do Cantanhez mexera com ele, botara-o abaixo.

 
     Mais calmo, Cândido condescendeu:

- Talvez tenhas razão: hoje sabe-se que os portugueses e castelhanos nada descobriram – esses lugares longínquos já tinham sido descobertos há muito tempo! Contactar, seria o verbo correcto. Os portugueses contactaram esses povos, não os acharam. Os asiáticos estavam no continente americano (peles vermelhas e esquimós), e o continente africano, todo ele, era conhecido e habitado.

- Até há quem afirme que foi em África que apareceram os primeiros seres humanos – lembra Henrique, já a bocejar.

- É bem possível, mas nessa área do conhecimento ainda há muito a investigar. Darwin não sugeria, no século passado, que o Homem descende do macaco?! Mas olha que não sei: penso que o ser humano veio de um planeta distante, aqui teve de descer por motivos que ora desconhecemos e por aqui foi ficando. Como eram só machos, procriaram com macacas, e daí alguns de nós parecermos símios! Doutro modo não se compreenderia a diferença existente entre nós e os restantes animais.

- Acha que há assim uma tão acentuada diferença?!

- Haver, há – salta à vista! Nós falamos, lemos, escrevemos, fundamos cidades, museus, bibliotecas; criámos a História e outras ciências; temos infinita curiosidade; vamos por esse espaço à procura de outros seres… Enfim, somos mesmo diferentes. Mas com tudo isto já perdi o fio à meada.

- Estava a dizer-me…

- Ah! Já sei:       

                    … e porque os meios de transporte tornavam as viagens prenhes de inesperados perigos, onerosas e demoradas, aí sim, os nautas lusos tiveram um papel de certa monta, de relevo, na aproximação dos povos. Por outro lado, o intercâmbio de conhecimentos, de ideias, de culturas, torna-se sempre vantajoso para ambas as partes. Porém, os portugueses jamais deveriam passar disso. Comércio, amizade, deveria ter sido o bastante, o suficiente. Ter-se-iam poupado vidas e haveres, e o nosso Portugal teria crescido economicamente, como outros territórios se desenvolveram por essa Europa fora. Nós, que fomos uma potência mundial, somos hoje um país pobre e atrasado!

- Está a pôr em causa todo o pensamento de uma época!... – observa Henrique, preocupado.

- Sem dúvida, meu caro amigo. E por que não? Relativamente à posse da terra, à escravatura (batem palmas ao infante D. Henrique), à conquista pelas armas, à imposição de ideias, ideologias, religião, costumes, língua, cometeu-se, quanto a mim, um erro crasso que nos custou, e está a custar, muito caro.

- Não aos poderosos, Cândido; nem aos ambiciosos. E a Igreja Católica expandiu-se… - contra ataca o jovem.

- Nos nossos dias já nada resta desse antigo império…

- A língua portuguesa, essa ficou…

- À custa de muita seiva humana, muito sofrimento, sangue derramado. Teria valido a pena? É certo que o poeta Fernando Pessoa escreveu: «tudo vale a pena quando a alma não é pequena…»

   Seria a alma dos portugueses assim tão grande que um minúsculo rincão não lhes bastava, só o mundo os satisfazia? Que me interessa a mim que se fale português no Brasil? Que ganho eu com isso? Que ganha Portugal com isso? Vendemos-lhes dicionários de língua portuguesa? Não! Vendemos-lhes livros dos nossos escritores? Meia dúzia! Vendemos-lhes telenovelas? Pelo contrário, são eles que nos invadem com as suas. Vêem o nosso cinema? Duvido.

     Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, têm como língua oficial o português. O nosso país ganhará com isso?                   

- Acho que sim – diz Henrique, num tom calmo, imparcial, para não magoar o amigo – mas só o futuro o dirá.

- Amigo Rique: se ganhássemos algo com isso não estaríamos tão atrasados e não pediríamos tanto aos demais países europeus. Que nos deu o Brasil a partir da sua independência? Que nos vai dar Angola, São Tomé…? Nada! Os seus governos, à excepção do brasileiro, verdade seja dita, estão constantemente a estender a mão a Portugal. A nós, que não temos onde cair depois de mortos!

     Aqui Henrique empertigou-se:

- O meu amigo é impiedoso! Essa ajuda, ou solidariedade, melhor dito, cooperação, como a queira designar, é temporária, só enquanto não se modernizam, não criam as suas próprias infra-estruturas. Depois pagarão com juros as suas dívidas. Esquece-se, porventura, que Angola tem imensas riquezas: petróleo, diamantes, madeiras de grande qualidade, um terreno agrícola extraordinário, pesca abundante… tudo! Moçambique, se for bem administrado, também se tornará num dos países mais ricos de África.

     Cândido, num tom mais moderado, responde-lhe:

- Quando já não precisarem de nós, viram-nos as costas. A língua inglesa espalha-se pelo planeta pela via erudita, não pelas armas. Não deve haver nenhum estudante por esse mundo fora que não a estude, tornando-se um potencial consumidor dos produtos ingleses e americanos. Mas nós, que temos nós para exportar? Só se for malandrice, a lusa manha! A nossa indústria, e a nossa agricultura, são o que são. E depois de termos perdido tudo, herdamos obrigações – morais e materiais – que perduram e perdurarão por muitos e muitos séculos.  // continua... 

domingo, 2 de julho de 2017

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha








Por que me chamas, loucura,

Mesmo contra meu desejo?

Não vês que seria tortura

Dar-te na boca um beijo!

 *

Não ando muito contente,

Nada há que me alegre;

Eu sou como aquela gente

Que só canta quando bebe.

 
*
 
Pela prenda que me deu,

Obrigadinho ó Barata;

Agora vou-lhe dar eu

Uma prendinha de lata.
 
*
 
Ser artista é ter bem mais

Do que um talento disperso;

É sonho, quimera, arrais,

Da nau chamada universo.