A ADVERSIDADE POR MADRASTA
Romance de José Alfredo Cerdeira
// continuação...
Num
lugar abrigado entre dois montes, ao fundo do qual corria um regato bordejado
por algumas leiras cavadas em socalcos até onde a montanha o permitia, viviam
uma mulher dos seus quarenta anos, um rapaz dos seus quinze e uma moçoila que
rondaria as suas dez primaveras, se bem que a estação das flores se escusasse a
aquecer aquelas paragens com os seus dias mornos e a perfumar o meio ambiente
com o aroma das plantas floridas. Sucedia que nenhuma das crianças era filha da
referida mulher. O rapaz era seu sobrinho e a rapariga, sua afilhada. Desde
tenra idade, todavia, se encontravam sob sua tutela, por falecimento dos pais
de ambos e não terem família que deles tomasse conta. Embora a casa onde
moravam, os campos que amanhavam e o rebanho serem pertença do sobrinho, por
herança de seus pais, ele ignorava tal facto, atendendo a que sua tia sempre se
intitulara dona e senhora de todos esses bens. Habituara-se a administrar todos
os pertences do sobrinho, desde que sua única irmã se finara, visto que o
cunhado há muito falecera, não desejando perder essas prerrogativas, mesmo após
a maioridade do rapaz. Os usos da terra favoreciam as suas pretensões, pois nem
inventário houvera, aquando da morte dos progenitores do moço. Existindo tio ou
tia tomava o lugar dos pais e tudo corria dentro da normalidade, obedecendo os
rebentos do casal finado ao familiar, como se de seus próprios pais se
tratasse.
Rosa dos Carvalhos, assim se denominava
a mulher, apelido pouco usual na zona, onde os mais vulgares eram os Esteves,
os Domingues, os Rodrigues e os Afonso, nutria forte aversão contra o sobrinho,
devido a, nos seus tempos de juventude, ter namorado com o pai do rapaz e, na
altura em que o casamento estava apalavrado, ele a deixara, trocando-a pela
irmã. Do ultraje jurou vingança e, decorridos todos aqueles anos, mantinha-se
fiel ao seu juramento. Como ambos os protagonistas da sua desdita tinham
entregue a alma ao Criador, descarregava todo o fel que lhe inundava a alma sobre
o fruto daquele enlace que tamanhos padecimentos lhe acarretara. Com quarenta e
tantos anos, para cúmulo assoberbados de trabalhos, de privações de toda a
ordem, de amarguras sem conta, que haviam feito dela uma velha precoce, não
alimentava ilusões de vir a ser feliz e, muito menos, arranjar marido. Naqueles
tempos, mulher que fosse repudiada, jamais alguém olharia para ela. Para uma
aldeã, vivendo em lugares recônditos, onde os usos e costumes se mantinham
intactos desde há séculos, o casamento era o alvo a atingir, dele dependendo o
seu futuro. Enquanto novas, as raparigas lançavam o olho ao rapaz que mais lhe
enchesse a vaidade, havendo, já, as mais práticas e sabidas a escolherem aquele
que melhores condições de vida lhe poderia proporcionar. À medida que os anos
iam passando, tornavam-se menos exigentes, servindo-lhes aqueles que possuíssem
umas leiras e umas cabeças de gado. Após os vinte e cinco, agarravam-se a
qualquer um, como derradeira tábua de salvação, ao darem-se conta que a
frescura dos verdes anos se esvaecia. Na eventualidade de nem essa tábua de
salvação surgir, invejavam as que lograram alcançar a felicidade, as que
arranjaram amparo para a velhice, as que arrastavam pesada cruz. Em seu
entendimento, por se verem enjeitadas, todas usufruíam melhor sorte do que
elas. Naturalmente que semelhante mentalidade tende a desaparecer com o
decorrer dos anos e o evoluir dos tempos. A juventude já contacta com outras
pessoas, já estuda, já se apercebe da transformação do modo de vida. Os pais
emigrados mandaram seus filhos estudar, ambicionando tirá-los dos trabalhos
árduos que eles padeceram.
Nas longas noites de invernia, quando a
nortada cortante silvava, afigurando-se levar tudo de escantilhão, amontoando a
neve de encontro às portas, Rosa dos Carvalhos, embrulhada num xaile coçado,
acocorada à lareira, sonhava com a ventura que usufruiria, acaso tivesse casado
com o homem que amara apaixonadamente e a trocara por sua irmã, sem uma
explicação, sem uma palavra, abandonando-a simplesmente, como peça usada. Ao
meditar sobre essa hipotética felicidade que lhe escapara por entre os dedos,
mais acirrava o ciúme enraizado no íntimo, ao longo daqueles anos e,
consequentemente, mais detestava o fruto daquela união que a ferira
profundamente. Com efeito, o ciúme recalcado poderá levar uma pessoa a
desfechos imprevisíveis, nomeadamente se rebitado numa alma deficientemente
formada. Em tais circunstâncias, induzirá a actos de consequências
assustadoras. Dava-se precisamente o caso da referida mulher não possuir uma
formação moral minimamente exigida a uma pessoa de bem. O nível cultural dela
era nulo, contactos com o mundo jamais mantivera, vendo-se circunscrita ao meio
onde viera ao mundo. Para cúmulo, os padecimentos, a solidão, haviam cavado
profundo abismo na sua alma. Nunca frequentara a escola por, na altura, ser
considerada desnecessária e a distância ser quase intransponível. A sua vida
religiosa resumia-se a umas quantas orações ensinadas por sua defunta mãe,
ainda em criança. Em contrapartida, acolhia todas as superstições que campeavam
na região, transmitidas de pais para filhos, ao longo das gerações. Nas aldeias
isoladas, os padres exercem enorme influência sobre o povo, cabendo-lhes,
portanto, moldar os espíritos mal formados, rebeldes e irascíveis.
Desafortunadamente, na grande maioria dessas aldeias, o pároco não se dava ao
incómodo de moldar o carácter, de aconselhar os paroquianos, de os guiar,
procurando antes incutir no seu espírito a imagem de um Deus implacável que,
pela mínima falta, atira uma alma para o fogo eterno, sem remissão. Não será,
eventualmente, a maneira mais ajustada de conduzir o rebanho que lhe foi
confiado. Pela vida fora, as pessoas descobrem que foram ludibriadas,
especialmente aquelas que se aventuram pelo mundo fora e então o juízo que
farão de quem lhes incutiu tais preconceitos não será muito abonador. Insinuar
no espírito de uma criança determinada dose de medo sobre a justiça Divina
auxiliará a evitar umas quantas travessuras, pelas quais, aliás, não virá o mal
ao mundo. Desde que a dose seja administrada adequadamente, ainda será de
aceitar. Agora, por tudo e por nada ameaçar com a ira de Deus, penso tratar-se
de erro crasso. Muitos dos sacerdotes que exercem o seu múnus nas aldeias mais
recônditas possuem avançada idade, vivem isolados, não acompanhando,
naturalmente, a evolução dos tempos, estagnando no desenvolvimento e nas
ideias, arreigando-se a costumes que a própria igreja ultrapassou, há muito. A
hierarquia abandona esses seus membros, como coisa inútil, acarinhando os mais
novos que, por seu turno, recusam essas freguesias perdidas nos confins do
país.
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