quinta-feira, 29 de novembro de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha


Rio Trancoso (Cevide)


AFOGAMENTOS


// RIBEIRO, João José. Filho de Jerónimo José Ribeiro e de Antónia Teresa Rodrigues, moradores no Louridal, Vila. Neto paterno de António José Ribeiro e de Caetana Maria Teixeira Salgado; neto materno de Bernardo António Rodrigues e de Rosa Maria (ou Rosa Antónia) Gomes. Nasceu a 15/2/1823 e foi batizado na igreja de SMP dois dias depois. Padrinhos: padre Manuel Caetano da Costa Codesso e sua irmã Maria, residentes no Campo da Feira. // Casou na igreja de SMP a 19/1/1856 com Maria Manuela, filha de Francisco Lopes e de Teresa Simões, do lugar de Mendelas (ou Mandelos), Cecriños, Tui. Testemunhas: Caetano Celestino de Sousa, Luís Caetano Araújo e Azevedo, e Pedro Alberto Teixeira. // Morreu afogado, a 15/3/1862, depois das oito horas da manhã, nas pesqueiras da Costa, Rio Minho, próximo da Vila. O seu cadáver apareceu (segundo constava) na paróquia de Cela, Galiza, onde foi enterrado. // Na igreja da Vila de Melgaço fizeram-lhe um ofício, a 28/4/1862, de oito padres. // Estava casado. // Era lavrador e morava no Louridal, freguesia da Vila. // Deixou uma filha. 
    

   // ESTEVES, Francisco António. Filho de António José Esteves e de Maria Joaquina Alves, residentes no lugar de Corveira. Neto paterno de Sebastião Esteves e de Maria Domingues, do Faval, Fiães; neto materno de Manuel José Alves e de Rosa Maria Afonso, do lugar dos Lourenços, São Paio. Nasceu em Chaviães a 11/6/1846 e foi batizado pelo padre AMR no dia seguinte. Padrinhos: Manuel José Esteves e sua mulher, Josefa. // Lavrador. // Morreu solteiro, afogado no rio Minho, a 25/8/1871, pelo meio-dia, no sítio do açude da azenha do Portovivo, limites da freguesia de Chaviães, quando tentava atravessar o rio agarrado a um pau. Apareceu na madrugada do dia 27 e, na tarde desse dia, foi sepultado na igreja da sua freguesia natal.
 

     // ALVES, José. Filho de Vicente Alves e de Carma «que por sobrenome não perca», galegos de São Cristóvão de Mourentão. // Morreu por afogamento, a 12/9/1871, pelas sete horas da manhã, no sítio dos Padrosos, rio Minho, nos limites de Alvaredo. // Era solteiro e tinha apenas dezassete anos de idade. // Foi sepultado no referido sítio dos Padrosos «por estar em estado de se não poder conduzir para a igreja
 

     // RIBEIRA, Júlio Joaquim. Filho de Manuel de Jesus da Ribeira, lavrador, e de Maria Rosa Gonçalves, doméstica, moradores no lugar de Soengas. Neto paterno de Manuel Joaquim Esteves da Ribeira e de Ana Rosa de Barros; neto materno de José Gonçalves e de Maria Joaquina. Nasceu em Chaviães a 10/1/1864 e foi batizado pelo padre JLBC a catorze desse mês e ano. Padrinhos: Júlio José Alves, solteiro, lavrador, residente no lugar de Parada, e Teresa Joaquina Alves, solteira, moradora no lugar da Bouça, ambos de Chaviães. // Pereceu afogado no rio Minho a 29/6/1875.
 
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PARA VENDA 
 
 Preço: 10 euros.



Preço: 10 euros
 
NOTA: ao preço acresce os custos com o envio pelo correio (mais ou menos 1 euro). Isto para Portugal continental.  
 

domingo, 25 de novembro de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha





CRIMES


(1903) - PASSOS, Emília. Filha de Manuel Ferreira de Passos, lavrador, natural de Penso, Melgaço, e de Marcelina Martins Peixoto, lavradeira, natural de Messegães (São Miguel), Monção, moradores no lugar de Paradela. Neta paterna de José Ferreira de Passos e de Mariana Esteves Cordeiro; neta materna de João Martins Peixoto e de Maria Luísa Fernandes. Nasceu em Penso a 26/5/1882 e foi batizada na igreja nesse dia. Padrinhos: José Esteves Cordeiro e Josefina Esteves Cordeiro, solteiros, rurais. // Lavradeira. // Casou na igreja católica a 15/7/1901 com o seu conterrâneo e parente António da Rocha, de 23 anos de idade, solteiro, camponês. // Faleceu a 8/6/1903, no lugar de Paradela, às três horas da manhã, «sendo assassinada», sem testamento, com geração, e foi sepultada no cemitério local. // Nota: foi abatida pelo marido; trata-se, por conseguinte, de um crime passional; alguém o informou de que ela o traía e ele um dia surge de repente, às tantas da madrugada, agride a mulher mortalmente, e a seguir suicida-se.

 

(1903) - ROCHA, António. Filho de Matias da Rocha e de Benta Joaquina Rodrigues, lavradores, residentes no lugar de Paradela. Neto paterno de António José da Rocha e de Maria Caetana de Lucena; neto materno de João Francisco Rodrigues e de Mariana de Araújo. Nasceu em Penso a 9/12/1876 e foi batizado na igreja no dia seguinte (*). Padrinhos: Manuel Luís Esteves e sua esposa, Maria José Afonso, rurais, de Paradela. // Casou na igreja a 15/7/1901 com a sua conterrânea e parente Emília Ferreira de Passos, de 18 anos de idade, solteira, camponesa, filha de Manuel Ferreira de Passos e de Marcelina Martins Peixoto. // A sua esposa foi assassinada por ele próprio às três horas da manhã do dia 8/6/1903, no lugar de Paradela. // Ele morreu a 8/6/1903, logo a seguir à morte da mulher, por suicídio. Viera de Lisboa, onde trabalhava como caixeiro, propositadamente para a matar, provavelmente por o terem avisado de que ela o traía. Não fizera testamento, e foi sepultado sem pompa alguma em um terreno reservado junto ao cemitério para esse efeito. Segundo a igreja católica, o suicida não tinha quaisquer direitos e ia diretamente para o inferno. // Com geração.  /// (*) Fora sopeado em casa pela sua madrinha. 

 

(1910) - Agostinho Esteves (o Corga). Filho de Manuel Luís Esteves e de Maria Rosa Rodrigues, lavradores, residentes no lugar da Lage. Neto paterno de Manuel Luís Esteves e de Maria Rosa Rodrigues, rurais, moradores no lugar de Eiriz; neto materno de Bento Manuel Rodrigues e de Luísa Rosa Domingues, camponeses, moradores no lugar da Lage. Nasceu na Gave, Melgaço, a 8/6/1886, e no dia seguinte foi batizado na igreja paroquial. Padrinhos: João António Esteves e Joaquina Domingues, casados, rurais, moradores no lugar da Lage. // Nota: é provável que seja a mesma pessoa que a 16/8/1912 seguiu para a penitenciária de Lisboa, numa leva de presos que se encontravam nas cadeias da Relação do Porto; fora condenado no tribunal de Melgaço na pena de cinco anos e quatro meses de prisão maior celular, seguidos de treze anos e quatro meses de degredo, ou na alternativa de dezoito anos e quatro meses, pelo crime de homicídio voluntário na pessoa de “José do Manco”, ou “Manco de Alijó”, natural de Riba de Mouro, Monção, ocorrido a 9/10/1910 (Correio de Melgaço n.º 11). // Em 1917 acabou de cumprir a pena de prisão maior celular e seguiu para Luanda a fim de cumprir os treze anos de degredo (ver Jornal de Melgaço n.º 1174, de 8/9/1917).   

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

                                                                  Por Joaquim A. Rocha





NO SÉCULO XIX

 

     Em 1881 tinha o meu avô materno, Belchior Herculano da Rocha, apenas quatro anos de idade e reinava em Portugal, já havia vinte anos, Luís I; a minha avó Libânia já tinha onze anos e estaria provavelmente a admirar o esboço do portão que seu pai, João António Alves, serralheiro, estava a gizar para o cemitério que se começava a levantar, portão esse que ainda hoje lá se pode ver. Portugal tinha então quatro milhões de habitantes, e Melgaço teria uns quinze ou dezasseis mil. Há muito que o comboio transportava pessoas e mercadorias por esse país fora, mas a nossa terra permanecia esquecida e desprezada pelo poder central. À estrada Monção-Melgaço, que começara a ser construída em 1870, ainda faltavam cerca de doze quilómetros para a sua conclusão. Um cavalheiro de Monção, cujo nome ignoro, por lá passou nesse longínquo ano e escreveu para o redator de «O Valenciano»: «Chegado de Melgaço, vou dar-lhe notícias daquela vila que parece separada completamente do país e como esquecida. Não faltaram ali sustos alaridos motivados pelo violento temporal do dia 27 do mês findo (27/1/1881), das 8 para as 9 da manhã daquele dia. O vento fortíssimo que então soprava levantou telhados, claraboias, chaminés, quebrando árvores e arrancando outras; foi pequena a sua duração, de contrário deixaria muitas casas apenas com as paredes. Em uma janela da casa onde se acha a repartição telégrafo-postal daquela vila, quebrou vidros e caixilhos, sendo para lamentar que ainda esteja sem eles e assim continue se o digno director da estação não pedir providências porque, segundo dizem, o dono do prédio esmera-se tanto com as casas que tem alugadas como se esmera com a sua; é como aqueles que estragam na farinha e poupam no farelo. O tempo de rigoroso inverno que ali tem havido, muito tem prejudicado os povos daquele concelho, que estará dentro em pouco a braços com a miséria se mão divina não melhorar o tempo e mão humana não puser termo aos actos de perfeita insensatez praticados pela municipalidade daquele concelho, que secunda a intempérie do tempo com a rigorosa inflexibilidade com que lhe exige o que ao tempo consegue escapar. A Câmara Municipal, para que os habitantes daquele pobríssimo concelho, onde só prospera a calúnia, a vingança e a miséria, não sintam tanto os males que a maior parte deles sofreram, exige-lhes mais de quatro contos de réis, derrama de cinquenta por cento! A medida não é má e pouco incomodativa. A criação de uma barca de passagem no rio Minho, em frente à estação do caminho-de-ferro (Arbo, Galiza), disso não trata, porque dá trabalho, e o rendimento da exploração é mais sólido e não fere os interesses dos compadres. Todos os meios indirectos de aumentar a receita são postos de parte para só os conseguir directamente, da algibeira dos contribuintes, que não podem, se não mal, adquirir meios de subsistência. Em outros concelhos recorre-se sempre, em último caso, àquele extremo e isto é não só conforme com a justiça como com a lei. Mas a lei suprema daquela corporação é o querer e poder; aquele meio directo, é o mais produtivo e o menos incomodativo. Pague o povo e não bufe! Não tenha estradas, nem melhoramentos, nem regalias algumas das que são concedidas aos outros povos, mas pague, como eles ou mais do que eles! Melgaço, na escala das povoações, é sem dúvida a última; conhece a civilização por ouvir falar nela; sabe que há estradas, caminhos-de-ferro, todos os elementos de prosperidade, enfim, porque o ouve dizer. Quanto a possuir, nem um desses elementos: ignorante e apática, os seus deputados, em vez de a ligarem com o resto do país pela civilização e pelo progresso, ligam-na pelo sofrimento e pelos sacrifícios!»

     Em 1881 o presidente da Câmara Municipal era nada mais, nada menos, do que José Cândido Gomes de Abreu, nascido na vila melgacense em 1825. Acerca dele alguém escreveu no Jornal de Melgaço, em 1908: «trabalhador infatigável, pôde criar em Melgaço uma casa comercial de primeira ordem, onde consumiu a sua actividade, dando-lhe um nome honesto. Cidadão prestimoso, sabendo zelar os interesses do município e à sua frente, como vereador, devem-se-lhe o que de útil possuímos em melhoramentos locais, não havendo quem até hoje o pudesse igualar, imitar sequer                

     E muito mais se disse no «Jornal de Melgaço» n.º 765, de 24/12/1908, oito dias depois da sua morte. Até «pai dos pobres» lhe chamaram! Seja isso verdade, ou não, o que ninguém pode negar é que foi graças a ele, ao seu esforço e entusiasmo, que se ficou a dever a construção do hospital na vila, em nossos dias uma ruína. Hospital esse de onde eu fugi quando tinha à volta de seis anos de idade; não gostava da comida, daqueles caldos de galinha sem sal, nem daquele cheiro a medicamentos, por isso saltei o portão de ferro, com aquelas setas apontadas ao céu, correndo o risco de me espetarem a barriga!

     O seu funeral revestiu-se de um aparato nunca visto: «Pelas dez horas da manhã celebrou-se o ofício e missa de requiem». A música ficou a cargo da «orchestra de Monsão com a assistência de trinta e dois eclesiásticos». Velando o cadáver esteve a fina flor da sociedade melgacense. No seu testamento contemplou muita gente: aos pobres da vila mandava distribuir 25$000 réis; ao hospital, em inscrições de assentamento de 3%, o valor nominal de 3.000$000 réis e ainda 49 obrigações da Companhia das Águas de Lisboa e 18 ações do Banco Comercial do Porto, e 300$000 réis em moeda corrente, para capitalizar para fundos e rendimentos do mesmo hospital. Deixou aos seus parentes joias e propriedades; com ele nada levou, à exceção da roupa do corpo e da cerimoniosa capa da Santa Casa da Misericórdia.

     Acerca deste senhor encontrei uma notícia de 1896, que passo a transcrever: «A José Cândido Gomes de Abreu foi roubada na estação de Nine, quando se dirigia para Braga, no dia 9 (Outubro), uma carteira com 115$000 réis e vários documentos». Os carteiristas acharam-no com aspeto de rico e pensaram certamente que mais cem ou menos cem não lhe fariam muita falta! Para se ter uma ideia do que representava esse dinheiro, dir-vos-ei que um presbítero foi nesse ano aposentado com a pensão anual de 401$370 réis, ou seja, 33$447 réis por mês! Nesse ano as lampreias do rio Minho foram vendidas a 1$500 réis cada uma, e o litro do vinho verde rondaria os 50 réis!

     Era assim no século dezanove: meia dúzia de indivíduos viviam à grande e à francesa, e o resto da população trabalhava de sol a sol para se alimentar, mal, a si e aos seus.             

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1056, de 1/8/1996.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

 
ESCRITORES MELGACENSES
 
Ana Catarina Vitorino da Rocha (*)
 
 
 
 
 





























/// (*) A Ana Catarina nasceu em Lisboa, mas é filha de um melgacense.

domingo, 18 de novembro de 2018

 
 
ESCRITORES MELGACENSES
 
Ana Catarina Vitorino da Rocha
 
 
 
 























NOTA: a poeta (ou poetisa) nasceu em Lisboa, mas é filha de um melgacense.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha 




 
CAPÍTULO XVI (continuação) 
 
 
     O relógio continuou a dar as horas ininterruptamente, os dias sucediam-se, embora parecessem imensamente longos, intermináveis, e nós começámos a ficar “velhos”, isto é, veteranos de guerra.

     Para terminar este capítulo da minha passagem por Cacheu vou contar-te o episódio do sargento Gordo: num desses patrulhamentos pela selva africana deparámos com danoso pantanal – quase nos cobria! Pusemos a arma e a sacola dos carregadores à cabeça e toca a atravessá-lo. Levantávamos com mil dificuldades um pé para assim podermos colocá-lo mais à frente. Os militares mais altos tinham, obviamente, menos problemas do que os baixos. Em fila indiana lá fomos vencendo esse tétrico espaço que parecia nunca acabar. Se os “turras” aparecessem estaríamos tramados!

     Eu, apesar de média estatura, tinha a vantagem de ser leve. O sargento Gordo, pescoço de hipopótamo, o suor a escorrer-lhe pela careca abaixo, esse, coitado, via-se aflito para conseguir mexer-se. Um a um, os homens iam avançando, à excepção dele.

     Como não suscitava nenhuma simpatia aos soldados (e quiçá aos outros sargentos e até aos oficiais), estes, quando passavam por ele, sorriam disfarçadamente. Talvez pensassem: «Eis a nossa vingança; vai ter de se humilhar, pedindo-nos auxílio.»

     De facto, e já convencido de que por si só nada conseguiria, usando uma hipócrita máscara de menino bem comportado, pede amavelmente: «Ajudem-me aqui, por favor; não sou capaz de me ver livre desta lama pegajosa e repugnante.»

     Prestámos-lhe socorro de seguida, porém, aquele sorriso zombeteiro, não abandonou os lábios dos magalas.
 

- Ótima lição – exagera Henrique. – Espero bem que a tenha aprendido.

- O seu intelecto já estava demasiado enferrujado para aprender fosse o que fosse. Mas, como as palavras são como as cerejas, tenho mais um triste episódio para te narrar. Queres ouvir, ou já estás cansado?

- Cansado, sim; mas ansioso por tudo saber. Conte, conte; pode crer que fazia uma ideia errada do que lá tinha ocorrido.

- Até 25 de Abril de 1974 estes eventos não podiam ser descritos, não podiam circular livremente; depois o tempo passou, cada qual foi para seu lado, a construir o futuro, a criar a família, enfim!... Mas ouve:

     Uma das operações mais traiçoeiras foi aquela em que se desencadeou uma terrível tempestade: chuva, vento, trovoada – o inferno! O nosso objetivo seria desalojar o inimigo de uma zona determinada, considerada estratégica pelos peritos. Sabia-se que ele aí era forte e nós teríamos de lhe reduzir as forças ou até torná-las nulas.

     Avançámos a pé, por entre caminhos estreitos, autênticas veredas, e capim avantajado. De vez, em quando, ouvia-se o ruído da avioneta, dentro da qual se encontrava, além do piloto, o segundo comandante do batalhão, um major de estatura elevada e cheio de peneiras. Achava-se o máximo! Nem Narciso, o da mitologia, filho de um rio e de uma ninfa, se adorava tanto!

     Esse mesmo major, em aziago dia, na Vila de Teixeira Pinto, com toda a sua déspota autoridade, chama-me e sarcasticamente pergunta: «Por que é que o soldado não traz o bivaque na cabeça?!»

     «Meu major – respondi eu, tremendo como folhas de uma árvore em dia de vento – esqueci-me dele, mas também não saio do quartel, só vou ali ao bar.»

     «Não quero saber aonde o soldado vai; volte para trás e ponha-o na cabeça

     Não me deixava qualquer alternativa: «Sim, meu major.»

- Era severo – diz Henrique, agastado.

- Estes indivíduos, com o seu feitio autoritário, têm a carreira garantida. Hoje é general e tem um cargo importante!

    
 
 
 


     Lá do alto, do céu, falava com o nosso capitão, dando-lhe instruções acerca da missão: «Vão muito bem, avancem» - dizia num vozeirão que não deixava margem para dúvidas: era o líder!
 



     O capitão, numa voz vacilante, mas simultaneamente firme, respondia: «Meu major, com esta tempestade julgo prudente não continuar

     «Capitão: avance com os seus homens; não será uma simples tempestade que nos impedirá de cumprir com êxito os objectivos previamente delineados. Não admito hesitações: avancem

     O oficial olhava para nós com uma certa insistência, notando-se-lhe nos olhos a chama da revolta. Estava entre a espada e a parede: não podia desobedecer ao seu superior hierárquico, mas custava-lhe mandar avançar, talvez para o sepulcro, aqueles homens encharcados até à raiz dos cabelos e enervados com a trovoada, cada vez mais ameaçadora, ventos ciclónicos, e chuvas como só caem nessa parte do mundo.

     «Capitão!» – novamente a voz do major – «o piloto diz que tem de se retirar sob pena da avioneta cair; continue a cumprir as minhas instruções e anule o poder inimigo; não aceito, nem admito, quaisquer desculpas, nem fracassos, nem acanhamentos; amanhã conversamos

     O aparelho voador retirou-se apressadamente. O meu comandante, colérico, enraivecido, descarregou toda a sua fúria: «Sacana; pensas que estás a lidar com animálias?!»

     Virando-se para os alferes e sargentos, diz-lhes: «Vamos prosseguir, mas lentamente; pode ser que a tempestade amaine.»

     Felizmente, ou talvez não, a chuva resolveu deixar de cair, e o céu, até então cinzento e zangado, olhou para nós com outra cara. Lá fomos indo, e às tantas começámos a notar que o carreiro se alargava, bifurcando-se em seguida, sinal de que estava próxima uma tabanca.

     Não demorou muito a ouvir-se alguns tiros dispersos – os vigias da aldeia (quase sempre empoleirados em cima de altas árvores) comunicavam com os seus camaradas. Habituados como estávamos a este tipo de recepção, continuámos a marcha, não já como homens, mas como verdadeiros predadores: a presa não estava longe! Mais cem metros e deparámos com umas quantas habitações: dentro apenas existiam objectos sem qualquer valor. O capitão recomenda: «Antes de pegarmos fogo a esta bugiganga toda vamos primeiro verificar se há mais palhoças; não quero que fique de pé uma que seja.»

     Ainda não acabara de falar e eis que se faz ouvir, ali bem perto, o rebentamento de uma granada de morteiro. «Abriguem-se!» - grita o capitão a plenos pulmões.

     Os rebentamentos não tinham fim. A bronca começara. Os “turras” conheciam a nossa posição no terreno e massacravam-nos sem dó nem piedade. Das árvores tombavam estilhaços, como de fruta madura se tratasse! Mais de meia hora depois o silêncio cúmplice visitou-nos. Silêncio perverso. Mais morteiradas. «Pulhas!» Estavam mesmo dispostos a cavar ali a nossa sepultura, cobrir-nos com a mortalha derradeira. E nem bazuca, nem os nossos terríveis morteiros, muito menos as metralhadoras, serviriam numa situação destas! Estávamos na designada «zona de morte!» Caímos nela que nem patinhos!

- Afinal o tal major não era tão bom estratega como dera a entender!

- Pelos vistos não, amigo Rique. Bazófia tinha muita, mas saber… Continuando: julgo que esgotaram as munições, ou então acharam que para lição bastava! Fez-se o balanço da tragédia: seis feridos, nenhum morto. E agora? Os helicópteros não levantavam voo devido às rajadas de vento, e nós no coração, no âmago da floresta! Os enfermeiros fizeram o que tinham a fazer; nós improvisamos macas e toca a transportar os colegas atingidos – naquele local não podíamos permanecer mais tempo.

     O lugarejo ficou para trás. Intacto! A nossa missão terminou num fiasco, numa derrota humilhante!

 

*     

     Quando chegámos ao quartel tínhamos à nossa espera o correio da metrópole: da família, dos amigos, das madrinhas de guerra.

- E aquela moça, nunca mais recebeu carta dela? – pergunta Henrique, com subtil curiosidade.

- Sim, recebi. Estás a pensar em quê?! Em namoro?! Nada disso, meu amigo. Eu ia alimentando um certo mistério, mas não passava disso. Não pretendia prender-me tão cedo.

- Leia, leia, uma cartinha da Fernanda.

- Ainda te lembras do nome dela! Vou fazer-te a vontade, mas não estejas já a ver vestidos brancos, flores de laranjeira! Fica atento:

 

Querido afilhado  

 

                   A continuação de boa saúde é esse o meu desejo. Fiquei muito triste por ver que realmente demorei a escrever, mas isso deve-se ao facto de ter andado adoentada, com gripe, sem vontade de coisa alguma. Sabe que se tem apossado de mim uma certa nostalgia, uma tristeza profunda que não sei explicar?! Mas não se aflija, são coisas passageiras, sem importância, próprias das raparigas da minha idade. Mando-lhe um postal da minha Vila, para a ficar a conhecer. É uma das mais lindas do nosso país. O castelo é monumento nacional, a sua construção remonta ao século XII, segundo dizem. À torre de menagem nunca subi, não que tenha medo, mas aquilo é muito escuro, por isso não passei da porta por onde se entra; ora às muralhas já tenho ido dezenas de vezes e para mais, eu, que a minha casa não fica longe. Daí avistam-se paisagens de sonho. Se algum dia cá vier vai ver que não minto, nem exagero. Então a sua labuta tem sido muita? Deus queira que não, mas também nós não podemos viver sem fazer nada, pois até distrai bastante e faz-nos sentir responsável por aquilo que fazemos; eu, por exemplo, ando a praticar, devido a não ter experiência, mas logo que me seja possível lutarei por um lugar de categoria, bem pago. Quero ter uma boa posição, sou ambiciosa, sabe?

    Por hoje é tudo, só lhe peço que tenha confiança em Deus, pois qualquer dia há-de regressar à sua terra, muito feliz e honrado por ter cumprido o dever para com a nossa pátria. Receba muitos abraços da madrinha muito amiga.

                                                                     Fernanda   

 

     Henrique ficou boquiaberto com o conteúdo da missiva. Não esperava, de uma provinciana, uma prosa tão escorreita. Comenta:
 

- A sua madrinha de guerra estava politizada. Não obstante ser uma jovem, considerava o serviço militar uma honra, até parece que sentia orgulho em si só pelo facto de se encontrar em África! Não acha?

- Concordo plenamente contigo. Até te digo mais: ela estava muito mais esclarecida politicamente do que eu. Quando deixei a minha terra tinha os olhos completamente vedados à política. Queria lá saber quem governava o país, se o fazia corretamente… - além de Salazar, que só vira nos retratos, não conhecia mais nenhum governante! Ela sim, usava uma linguagem cheia de subtileza, próxima da doutrina corporativista. Provavelmente convivia, no trabalho e em casa, com pessoas afetas ao regime então vigente.

- E as outras?!

- As outras madrinhas só pensavam no namoro, no casamento. Esta era de facto especial, um mimo!
 

*
 

     Ainda permanecemos mais algum tempo no burgo de Cacheu. Operações de rotina, como lhe chamavam, havia-as de vez em quando. Entrávamos nas tabancas com a fúria do demo, e no regresso as labaredas avistavam-se a léguas de distância.

     Alguns colegas traziam com eles catanas e outros objetos, sobretudo figuras esculpidas em madeira, que por lá encontravam; eu nunca peguei em nada – por escrúpulos, ou por superstição, não sei explicar. Continuei as minhas pescarias no rio e a escrever cartas, muitas cartas: devia ser o soldado que mais escrevia!

     Através dessa correspondência acompanhava o desenrolar do conflito em Angola e Moçambique. Escreviam os meus conterrâneos:

 

 «… quanto a isso, eu também não tive melhor sorte, pois encontro-me no norte, numa das piores zonas, estou na região dos Dembos; no local onde estou só há dois civis e uma sanzala de pretos, e o acampamento mais próximo do nosso fica a cinquenta e sete quilómetros, de maneira que também tenho que alinhar para as operações, já fui a algumas e temos tido bastantes problemas com os turras, mas o que é preciso é chegarmos ao fim da comissão com o canastro direito e mais nada!»
 

     «Por aqui continua tudo mais ou menos na mesma, embora às vezes com bastante azar, pois em quase todas as batidas tem havido porrada, e temos também a lamentar mais um morto…»
 

- Três frentes, três cemitérios!... – lamentava-se Henrique, bastante pungido.

- É verdade. As estatísticas oficiais não divulgavam os números certos; temiam uma reação violenta do povo.

     Tomava também conhecimento de tudo o que se passava na metrópole, sobretudo na minha nunca esquecida terrinha.

     Sabes do que mais gostava? De ir fazer compras às aldeias indígenas, àquelas, claro, onde se podia entrar sem correr grande risco. Lá chegados, começava-se a discutir o preço: o porco, tanto; a galinha, tanto; a vitela, tanto! Regateava-se como nas feiras portuguesas, por vezes não se chegava a acordo. Contudo, regressava-se quase sempre com a camioneta a abarrotar de géneros.

- Vocês não recebiam os víveres da Manutenção Militar?

- Certamente, meu caro; tratava-se aqui de adquirir produtos frescos e a baixo custo, quase ao preço da uva mijona! Nem sequer podes imaginar…

- Então os nativos não tinham noção do valor das coisas?!

- Não te esqueças que essa gente nunca fizera antes comércio; viviam no interior da mata africana, poucos eram aqueles que nos entendiam. Por outro lado, julgo que tinham medo da tropa branca. Até te digo mais: quando o nosso exército precisava de limpar as margens de uma picada, de um caminho ou vereda, contratava vários homens de cor e sabes como lhes pagavam? Com arroz! Um dia de trabalho, sol a sol, valia dois ou três quilos de arroz! Consideravam-no a base da sua alimentação.

- Tão pouco? E eles não reclamavam?

- Penso que não; mas o que podiam eles fazer? Queixar-se a quem? O exército português é que mandava, agia como bem lhe apetecia e entendesse. E como era perigoso aquele trabalho! Os indígenas andavam descalços, quase nus, a derrubar todo aquele imenso capim e arbustos à catanada; por vezes eram mordidos pelas serpentes e desatavam aos gritos, pensando que iam morrer – e decerto que alguns deles pereciam devido a essas causas. Sabes que não podiam matar a pequena cobra verde?

- Por quê?! – interroga Henrique, com alguma curiosidade.

- Porque ela representava para a sua crença um deus, ou o espírito de um seu antepassado. No princípio não compreendia o seu pavor, só depois é que perguntei e me esclareceram.

- A mitologia africana, pelos vistos, é mais rica do que os europeus pensavam.

- Podes crê-lo, meu amigo; podes crê-lo. E ainda muita coisa está por descobrir e pesquisar. Os estudiosos desta matéria têm em África um vastíssimo manancial de investigação.

    Tinha muita pena desses desgraçados, mas o que podia fazer? Nós próprios, soldados, como te disse, éramos no dia-a-dia maltratados, humilhados, pelos oficiais e por alguns sargentos! As coisas agora são muito diferentes, dizem; há uma certa dignidade, respeito pelo inferior hierárquico. A democracia pluralista assim o aconselha, embora dentro dos quartéis a disciplina militar tenha de ser mantida de acordo com os velhos parâmetros, sob pena de tudo desmoronar.      

- Não se iluda, meu caro Cândido. Melhorou, mas «tropa é tropa!» A disciplina militar, como disse, e bem, terá sempre de existir, de outro modo alguns subordinados perderiam o respeito pelos seus superiores, o exército esfrangalhava-se. Quer que lhe conte o que se passou num conhecido quartel, já depois do 25 de Abril? É óbvio que eu não assisti, mas contaram-me. Ouça então: o comandante do aquartelamento achou por bem que todas as praças e sargentos, bem como os oficiais, passassem a comer do mesmo rancho e nas mesmas mesas – a democracia assim o impunha. Ora, o que aconteceu? Nos primeiros dias as coisas correram bem; os soldados estavam um pouco inibidos, desconfiados, pensavam que aquela decisão tinha provindo de um doido ou de alguém que temia represálias políticas.

     Passou-se uma semana; os soldados, à medida que os dias decorriam, iam adquirindo uma postura diferente, um certo à-vontade. Ao cabo de duas semanas começaram a abusar: primeiro com dichotes e gargalhadas; depois atirando caroços de azeitonas uns aos outros; a partir daí deixaram de respeitar fosse quem fosse. O comandante teve de suspender a ordem dada e fez voltar tudo ao modelo anterior.      

- Conclusão: os magalas, na sua maior parte com ínfimas habilitações literárias, oriundos de famílias humildes, não estão preparados para conviver com pessoas mais civilizadas, mais educadas. São o espelho do povo português, etc.

- Conclui bem, amigo Cândido. Tiveram uma oportunidade e não a souberam agarrar; dificilmente terão outra. A democracia não é compatível com a vida militar.

- Por isso é que eu defendo com convicção o fim dos exércitos. Quando estes se extinguirem (e segundo as minhas previsões isso levará muito tempo), também terminarão as guerras. Mas agora, e para desanuviar um pouco, vou ler-te mais uma carta da madrinha Fernanda. Lá vai:

 

Querido afilhado

 

                Recebi a sua carta e fiquei muito contente por saber que estava de perfeita saúde, pois é esse o meu maior desejo.

                Ficou muito triste por não lhe ter mandado a minha foto, pois bem, vou satisfazer o seu desejo, mando-lhe uma de meio corpo, só agora é que a consegui, sei que o vou desiludir, pois não sou nenhuma cara bonita, bem pelo contrário, depois mando-lhe uma de corpo inteiro, e não há-de demorar muito tempo.

                Cá na minha parvónia não há muitas distracções para a gente se divertir, principalmente no verão, vai todo o mundo para a praia, só fica aqui a que não pode ir ou não quer. De inverno, apesar de não se poder andar sempre a passear, vai-se ao cinema.

                Não julgue que tenho namorado, não, ainda sou muito nova e se tiver de me casar não há-de ser antes dos vinte e tal anos, mas não se pode afirmar isso, pois nós não sabemos o dia de amanhã; amigos e amigas tenho muitos, mas para namorar nem pensar nisso, considero que não são o feitio de homem que eu quero. 

               Então não pôde continuar os seus estudos, quando sair da tropa poderá continuá-los, só é preciso força de vontade.

               Eu estou a pensar acabar o quinto ano, já o podia ter feito se deixasse as brincadeiras e estudasse, mas quando se é novo não se pensa muito no futuro.

               Vou fazer-lhe uma pergunta e quero que me responda na próxima carta: em que dia do mês o meu afilhado faz anos?

               Acho que a pergunta não é indiscreta, seria se fosse dirigida a uma senhora, mas como não é, mande-me dizer; a sua querida madrinha comemora as suas dezanove risonhas primaveras a cinco de Abril e Deus queira que isso aconteça por muitos e muitos anos. Não acha?


               Muitos abraços da madrinha muito amiga.
                                                   

                                                                                  Fernanda

 

 

- Uma madrinha muito espevitada, não há dúvidas! Mas o meu amigo Cândido também alimentava esse princípio de “flirt”. Estou certo?

- Se tivesses estado na guerra colonial com certeza que não estarias agora com esse ar irónico. Nós precisávamos destas coisas, alimentar ilusões, fazer nascer sonhos que só durariam o tempo da comissão, ou o das rosas de Malherbe, poeta que viveu entre 1555 e 1628. Escreveu ele: «Mais elle était du monde où les plus belles choses/Ont le pire destin/Et rose elle a vécu ce que vivent les roses/L’espace d’un matin.».

     O espaço de uma manhã! Quem se apaixona vendo uma fotografia, lendo meia dúzia de palavras mais ou menos bem escritas? Ninguém!  

- Não é bem assim; você próprio me disse que alguns soldados acabaram por casar com as madrinhas de guerra.

- Disse, disse; mas não te esqueças que eram todos da mesma terra ou da região das madrinhas. Eu não escrevi a raparigas de Melgaço porque não sabia nessa ocasião se para lá voltava. Por outro lado, conhecendo-as, não teria coragem de as iludir. Regressemos à guerra…

- Antes de prosseguir, e embora pareça mesquinho o que lhe vou perguntar, uma das coisas que me têm dito é que vocês em África entregavam a roupa para lavar e passar a ferro a lavadeiras profissionais. Há quem diga também que essas mulheres se tornavam vossas amantes. É verdade?!

- Não me quero furtar à tua questão, mas essa resposta fica para depois, se não te importas. Agora vamos à vida que se faz tarde.