ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
CAPÍTULO XVI (continuação)
O relógio continuou a dar as horas
ininterruptamente, os dias sucediam-se, embora parecessem imensamente longos, intermináveis,
e nós começámos a ficar “velhos”,
isto é, veteranos de guerra.
Para terminar este capítulo da minha passagem por Cacheu vou contar-te o
episódio do sargento Gordo: num desses patrulhamentos pela selva africana
deparámos com danoso pantanal – quase nos cobria! Pusemos a arma e a sacola dos
carregadores à cabeça e toca a atravessá-lo. Levantávamos com mil dificuldades
um pé para assim podermos colocá-lo mais à frente. Os militares mais altos
tinham, obviamente, menos problemas do que os baixos. Em fila indiana lá fomos
vencendo esse tétrico espaço que parecia nunca acabar. Se os “turras” aparecessem estaríamos tramados!
Eu, apesar de média estatura, tinha a vantagem de ser leve. O sargento
Gordo, pescoço de hipopótamo, o suor a escorrer-lhe pela careca abaixo, esse,
coitado, via-se aflito para conseguir mexer-se. Um a um, os homens iam avançando,
à excepção dele.
Como não suscitava nenhuma simpatia aos soldados (e quiçá aos outros sargentos e até aos oficiais), estes, quando
passavam por ele, sorriam disfarçadamente. Talvez pensassem: «Eis a nossa
vingança; vai ter de se humilhar, pedindo-nos auxílio.»
De facto, e já convencido de que por si só nada conseguiria, usando uma
hipócrita máscara de menino bem comportado, pede amavelmente: «Ajudem-me aqui,
por favor; não sou capaz de me ver livre desta lama pegajosa e repugnante.»
Prestámos-lhe socorro de seguida,
porém, aquele sorriso zombeteiro, não abandonou os lábios dos magalas.
- Ótima lição – exagera Henrique. – Espero bem que a tenha aprendido.
- O seu intelecto já estava demasiado
enferrujado para aprender fosse o que fosse. Mas, como as palavras são como as
cerejas, tenho mais um triste episódio para te narrar. Queres ouvir, ou já
estás cansado?
- Cansado, sim; mas ansioso por tudo
saber. Conte, conte; pode crer que fazia uma ideia errada do que lá tinha ocorrido.
- Até 25 de Abril de 1974 estes eventos
não podiam ser descritos, não podiam circular livremente; depois o tempo
passou, cada qual foi para seu lado, a construir o futuro, a criar a família,
enfim!... Mas ouve:
Uma das operações mais traiçoeiras foi aquela em que se desencadeou uma
terrível tempestade: chuva, vento, trovoada – o inferno! O nosso objetivo seria
desalojar o inimigo de uma zona determinada, considerada estratégica pelos
peritos. Sabia-se que ele aí era forte e nós teríamos de lhe reduzir as forças
ou até torná-las nulas.
Avançámos a pé, por entre caminhos estreitos, autênticas veredas, e
capim avantajado. De vez, em quando, ouvia-se o ruído da avioneta, dentro da
qual se encontrava, além do piloto, o segundo comandante do batalhão, um major
de estatura elevada e cheio de peneiras. Achava-se o máximo! Nem Narciso, o da
mitologia, filho de um rio e de uma ninfa, se adorava tanto!
Esse mesmo major, em aziago dia, na Vila de Teixeira Pinto, com toda a
sua déspota autoridade, chama-me e sarcasticamente pergunta: «Por que é que o soldado não traz o bivaque
na cabeça?!»
«Meu major – respondi eu, tremendo como folhas de uma árvore em dia de
vento – esqueci-me dele, mas também não saio do quartel, só vou ali ao bar.»
«Não quero saber aonde o soldado
vai; volte para trás e ponha-o na cabeça.»
Não me deixava qualquer alternativa: «Sim, meu major.»
- Era severo – diz Henrique, agastado.
- Estes indivíduos, com o seu feitio
autoritário, têm a carreira garantida. Hoje é general e tem um cargo importante!
Lá do alto, do céu, falava com o nosso capitão, dando-lhe instruções
acerca da missão: «Vão muito bem, avancem»
- dizia num vozeirão que não deixava margem para dúvidas: era o líder!
O capitão, numa voz vacilante, mas simultaneamente firme, respondia: «Meu major, com esta tempestade julgo prudente
não continuar!»
«Capitão: avance com os seus
homens; não será uma simples tempestade que nos impedirá de cumprir com êxito
os objectivos previamente delineados. Não admito hesitações: avancem!»
O oficial olhava para nós com uma certa insistência, notando-se-lhe nos
olhos a chama da revolta. Estava entre a espada e a parede: não podia
desobedecer ao seu superior hierárquico, mas custava-lhe mandar avançar, talvez
para o sepulcro, aqueles homens encharcados até à raiz dos cabelos e enervados
com a trovoada, cada vez mais ameaçadora, ventos ciclónicos, e chuvas como só
caem nessa parte do mundo.
«Capitão!» – novamente a voz
do major – «o piloto diz que tem de se
retirar sob pena da avioneta cair; continue a cumprir as minhas instruções e
anule o poder inimigo; não aceito, nem admito, quaisquer desculpas, nem fracassos,
nem acanhamentos; amanhã conversamos.»
O aparelho voador retirou-se apressadamente. O meu comandante, colérico,
enraivecido, descarregou toda a sua fúria: «Sacana; pensas que estás a lidar
com animálias?!»
Virando-se para os alferes e sargentos, diz-lhes: «Vamos prosseguir, mas
lentamente; pode ser que a tempestade amaine.»
Felizmente, ou talvez não, a chuva resolveu deixar de cair, e o céu, até
então cinzento e zangado, olhou para nós com outra cara. Lá fomos indo, e às
tantas começámos a notar que o carreiro se alargava, bifurcando-se em seguida,
sinal de que estava próxima uma tabanca.
Não demorou muito a ouvir-se alguns tiros dispersos – os vigias da
aldeia (quase sempre empoleirados em cima
de altas árvores) comunicavam com os seus camaradas. Habituados como
estávamos a este tipo de recepção, continuámos a marcha, não já como homens,
mas como verdadeiros predadores: a presa não estava longe! Mais cem metros e
deparámos com umas quantas habitações: dentro apenas existiam objectos sem
qualquer valor. O capitão recomenda: «Antes de pegarmos fogo a esta bugiganga
toda vamos primeiro verificar se há mais palhoças; não quero que fique de pé
uma que seja.»
Ainda não acabara de falar e eis que se faz ouvir, ali bem perto, o
rebentamento de uma granada de morteiro. «Abriguem-se!» - grita o capitão a
plenos pulmões.
Os rebentamentos não tinham fim. A bronca começara. Os “turras” conheciam a nossa posição no
terreno e massacravam-nos sem dó nem piedade. Das árvores tombavam estilhaços,
como de fruta madura se tratasse! Mais de meia hora depois o silêncio cúmplice
visitou-nos. Silêncio perverso. Mais morteiradas. «Pulhas!» Estavam mesmo
dispostos a cavar ali a nossa sepultura, cobrir-nos com a mortalha derradeira.
E nem bazuca, nem os nossos terríveis morteiros, muito menos as metralhadoras,
serviriam numa situação destas! Estávamos na designada «zona de morte!» Caímos nela que nem patinhos!
- Afinal o tal major não era tão bom
estratega como dera a entender!
- Pelos vistos não, amigo Rique.
Bazófia tinha muita, mas saber… Continuando: julgo que esgotaram as munições,
ou então acharam que para lição bastava! Fez-se o balanço da tragédia: seis
feridos, nenhum morto. E agora? Os helicópteros não levantavam voo devido às
rajadas de vento, e nós no coração, no âmago da floresta! Os enfermeiros fizeram
o que tinham a fazer; nós improvisamos macas e toca a transportar os colegas
atingidos – naquele local não podíamos permanecer mais tempo.
O lugarejo ficou para trás. Intacto! A nossa missão terminou num fiasco,
numa derrota humilhante!
*
Quando chegámos ao quartel tínhamos à nossa espera o correio da
metrópole: da família, dos amigos, das madrinhas de guerra.
- E aquela moça, nunca mais recebeu
carta dela? – pergunta Henrique, com
subtil curiosidade.
- Sim, recebi. Estás a pensar em quê?!
Em namoro?! Nada disso, meu amigo. Eu ia alimentando um certo mistério, mas não
passava disso. Não pretendia prender-me tão cedo.
- Leia, leia, uma cartinha da Fernanda.
- Ainda te lembras do nome dela! Vou
fazer-te a vontade, mas não estejas já a ver vestidos brancos, flores de laranjeira!
Fica atento:
Querido afilhado
A
continuação de boa saúde é esse o meu desejo. Fiquei muito triste por ver que
realmente demorei a escrever, mas isso deve-se ao facto de ter andado
adoentada, com gripe, sem vontade de coisa alguma. Sabe que se tem apossado de
mim uma certa nostalgia, uma tristeza profunda que não sei explicar?! Mas não
se aflija, são coisas passageiras, sem importância, próprias das raparigas da
minha idade. Mando-lhe um postal da minha Vila, para a ficar a conhecer. É uma
das mais lindas do nosso país. O castelo é monumento nacional, a sua construção
remonta ao século XII, segundo dizem. À torre de menagem nunca subi, não que
tenha medo, mas aquilo é muito escuro, por isso não passei da porta por onde se
entra; ora às muralhas já tenho ido dezenas de vezes e para mais, eu, que a
minha casa não fica longe. Daí avistam-se paisagens de sonho. Se algum dia cá
vier vai ver que não minto, nem exagero. Então a sua labuta tem sido muita?
Deus queira que não, mas também nós não podemos viver sem fazer nada, pois até
distrai bastante e faz-nos sentir responsável por aquilo que fazemos; eu, por
exemplo, ando a praticar, devido a não ter experiência, mas logo que me seja possível
lutarei por um lugar de categoria, bem pago. Quero ter uma boa posição, sou ambiciosa,
sabe?
Por hoje é tudo, só lhe peço que tenha
confiança em Deus, pois qualquer dia há-de regressar à sua terra, muito feliz e
honrado por ter cumprido o dever para com a nossa pátria. Receba muitos abraços
da madrinha muito amiga.
Fernanda
Henrique ficou boquiaberto com o
conteúdo da missiva. Não esperava, de uma provinciana, uma prosa tão
escorreita. Comenta:
- A sua madrinha de guerra estava
politizada. Não obstante ser uma jovem, considerava o serviço militar uma honra,
até parece que sentia orgulho em si só pelo facto de se encontrar em África!
Não acha?
- Concordo plenamente contigo. Até te
digo mais: ela estava muito mais esclarecida politicamente do que eu. Quando deixei
a minha terra tinha os olhos completamente vedados à política. Queria lá saber
quem governava o país, se o fazia corretamente… - além de Salazar, que só vira
nos retratos, não conhecia mais nenhum governante! Ela sim, usava uma linguagem
cheia de subtileza, próxima da doutrina corporativista. Provavelmente convivia,
no trabalho e em casa, com pessoas afetas ao regime então vigente.
- E as outras?!
- As outras madrinhas só pensavam no
namoro, no casamento. Esta era de facto especial, um mimo!
*
Ainda permanecemos mais algum tempo no burgo de Cacheu. Operações de
rotina, como lhe chamavam, havia-as de vez em quando. Entrávamos nas tabancas
com a fúria do demo, e no regresso as labaredas avistavam-se a léguas de
distância.
Alguns colegas traziam com eles catanas e outros objetos, sobretudo
figuras esculpidas em madeira, que por lá encontravam; eu nunca peguei em nada
– por escrúpulos, ou por superstição, não sei explicar. Continuei as minhas
pescarias no rio e a escrever cartas, muitas cartas: devia ser o soldado que
mais escrevia!
Através dessa correspondência
acompanhava o desenrolar do conflito em Angola e Moçambique. Escreviam os meus
conterrâneos:
«… quanto a isso, eu também não tive melhor sorte,
pois encontro-me no norte, numa das piores zonas, estou na região dos Dembos;
no local onde estou só há dois civis e uma sanzala de pretos, e o acampamento
mais próximo do nosso fica a cinquenta e sete quilómetros, de maneira que
também tenho que alinhar para as operações, já fui a algumas e temos tido
bastantes problemas com os turras, mas o que é preciso é chegarmos ao fim da
comissão com o canastro direito e mais nada!»
«Por aqui continua tudo mais ou menos na mesma, embora às vezes com bastante
azar, pois em quase todas as batidas tem havido porrada, e temos também a lamentar
mais um morto…»
- Três frentes, três cemitérios!... – lamentava-se Henrique, bastante pungido.
- É verdade. As estatísticas oficiais
não divulgavam os números certos; temiam uma reação violenta do povo.
Tomava também conhecimento de tudo o que se passava na metrópole,
sobretudo na minha nunca esquecida terrinha.
Sabes do que mais gostava? De ir fazer compras às aldeias indígenas,
àquelas, claro, onde se podia entrar sem correr grande risco. Lá chegados,
começava-se a discutir o preço: o porco, tanto; a galinha, tanto; a vitela,
tanto! Regateava-se como nas feiras portuguesas, por vezes não se chegava a
acordo. Contudo, regressava-se quase sempre com a camioneta a abarrotar de
géneros.
- Vocês não recebiam os víveres da
Manutenção Militar?
- Certamente, meu caro; tratava-se aqui
de adquirir produtos frescos e a baixo custo, quase ao preço da uva mijona! Nem
sequer podes imaginar…
- Então os nativos não tinham noção do
valor das coisas?!
- Não te esqueças que essa gente nunca
fizera antes comércio; viviam no interior da mata africana, poucos eram aqueles
que nos entendiam. Por outro lado, julgo que tinham medo da tropa branca. Até
te digo mais: quando o nosso exército precisava de limpar as margens de uma
picada, de um caminho ou vereda, contratava vários homens de cor e sabes como
lhes pagavam? Com arroz! Um dia de trabalho, sol a sol, valia dois ou três quilos
de arroz! Consideravam-no a base da sua alimentação.
- Tão pouco? E eles não reclamavam?
- Penso que não; mas o que podiam eles
fazer? Queixar-se a quem? O exército português é que mandava, agia como bem lhe
apetecia e entendesse. E como era perigoso aquele trabalho! Os indígenas
andavam descalços, quase nus, a derrubar todo aquele imenso capim e arbustos à
catanada; por vezes eram mordidos pelas serpentes e desatavam aos gritos,
pensando que iam morrer – e decerto que alguns deles pereciam devido a essas causas.
Sabes que não podiam matar a pequena cobra verde?
- Por quê?! – interroga Henrique, com alguma curiosidade.
- Porque ela representava para a sua
crença um deus, ou o espírito de um seu antepassado. No princípio não compreendia
o seu pavor, só depois é que perguntei e me esclareceram.
- A mitologia africana, pelos vistos, é
mais rica do que os europeus pensavam.
- Podes crê-lo, meu amigo; podes
crê-lo. E ainda muita coisa está por descobrir e pesquisar. Os estudiosos desta
matéria têm em África um vastíssimo manancial de investigação.
Tinha muita pena desses desgraçados, mas o que podia fazer? Nós
próprios, soldados, como te disse, éramos no dia-a-dia maltratados, humilhados,
pelos oficiais e por alguns sargentos! As coisas agora são muito diferentes,
dizem; há uma certa dignidade, respeito pelo inferior hierárquico. A democracia
pluralista assim o aconselha, embora dentro dos quartéis a disciplina militar
tenha de ser mantida de acordo com os velhos parâmetros, sob pena de tudo
desmoronar.
- Não se iluda, meu caro Cândido.
Melhorou, mas «tropa é tropa!» A
disciplina militar, como disse, e bem, terá sempre de existir, de outro modo
alguns subordinados perderiam o respeito pelos seus superiores, o exército
esfrangalhava-se. Quer que lhe conte o que se passou num conhecido quartel, já
depois do 25 de Abril? É óbvio que eu não assisti, mas contaram-me. Ouça então:
o comandante do aquartelamento achou por bem que todas as praças e sargentos,
bem como os oficiais, passassem a comer do mesmo rancho e nas mesmas mesas – a
democracia assim o impunha. Ora, o que aconteceu? Nos primeiros dias as coisas
correram bem; os soldados estavam um pouco inibidos, desconfiados, pensavam que
aquela decisão tinha provindo de um doido ou de alguém que temia represálias
políticas.
Passou-se uma semana; os soldados, à medida que os dias decorriam, iam
adquirindo uma postura diferente, um certo à-vontade. Ao cabo de duas semanas
começaram a abusar: primeiro com dichotes e gargalhadas; depois atirando
caroços de azeitonas uns aos outros; a partir daí deixaram de respeitar fosse
quem fosse. O comandante teve de suspender a ordem dada e fez voltar tudo ao
modelo anterior.
- Conclusão: os magalas, na sua maior
parte com ínfimas habilitações literárias, oriundos de famílias humildes, não
estão preparados para conviver com pessoas mais civilizadas, mais educadas. São
o espelho do povo português, etc.
- Conclui bem, amigo Cândido. Tiveram
uma oportunidade e não a souberam agarrar; dificilmente terão outra. A democracia
não é compatível com a vida militar.
- Por isso é que eu defendo com
convicção o fim dos exércitos. Quando estes se extinguirem (e segundo as minhas previsões isso levará
muito tempo), também terminarão as guerras. Mas agora, e para desanuviar um
pouco, vou ler-te mais uma carta da madrinha Fernanda. Lá vai:
Querido afilhado
Recebi a sua carta e fiquei muito contente por saber que estava de
perfeita saúde, pois é esse o meu maior desejo.
Ficou muito triste por não lhe
ter mandado a minha foto, pois bem, vou satisfazer o seu desejo, mando-lhe uma
de meio corpo, só agora é que a consegui, sei que o vou desiludir, pois não sou
nenhuma cara bonita, bem pelo contrário, depois mando-lhe uma de corpo inteiro,
e não há-de demorar muito tempo.
Cá na minha parvónia não há
muitas distracções para a gente se divertir, principalmente no verão, vai todo
o mundo para a praia, só fica aqui a que não pode ir ou não quer. De inverno,
apesar de não se poder andar sempre a passear, vai-se ao cinema.
Não julgue que tenho namorado,
não, ainda sou muito nova e se tiver de me casar não há-de ser antes dos vinte
e tal anos, mas não se pode afirmar isso,
pois nós não sabemos o dia de amanhã; amigos e amigas tenho muitos, mas para
namorar nem pensar nisso, considero que não são o feitio de homem que eu
quero.
Então não pôde continuar os seus
estudos, quando sair da tropa poderá continuá-los, só é preciso força de vontade.
Eu estou a pensar acabar o
quinto ano, já o podia ter feito se deixasse as brincadeiras e estudasse, mas
quando se é novo não se pensa muito no futuro.
Vou fazer-lhe uma pergunta e
quero que me responda na próxima carta: em que dia do mês o meu afilhado faz
anos?
Acho que a pergunta não é
indiscreta, seria se fosse dirigida a uma senhora, mas como não é, mande-me
dizer; a sua querida madrinha comemora as suas dezanove risonhas primaveras a
cinco de Abril e Deus queira que isso aconteça por muitos e muitos anos. Não
acha?
Muitos abraços da madrinha muito amiga.
Fernanda
- Uma madrinha muito espevitada, não há
dúvidas! Mas o meu amigo Cândido também alimentava esse princípio de “flirt”. Estou certo?
- Se tivesses estado na guerra colonial
com certeza que não estarias agora com esse ar irónico. Nós precisávamos destas
coisas, alimentar ilusões, fazer nascer sonhos que só durariam o tempo da
comissão, ou o das rosas de Malherbe, poeta que viveu entre 1555 e 1628. Escreveu ele: «Mais elle était du monde où les plus
belles choses/Ont le pire destin/Et rose elle a vécu ce que vivent les
roses/L’espace d’un matin.».
O espaço de uma manhã! Quem se apaixona vendo uma fotografia, lendo meia
dúzia de palavras mais ou menos bem escritas? Ninguém!
- Não é bem assim; você próprio me
disse que alguns soldados acabaram por casar com as madrinhas de guerra.
- Disse, disse; mas não te esqueças que
eram todos da mesma terra ou da região das madrinhas. Eu não escrevi a
raparigas de Melgaço porque não sabia nessa ocasião se para lá voltava. Por
outro lado, conhecendo-as, não teria coragem de as iludir. Regressemos à guerra…
- Antes de prosseguir, e embora pareça
mesquinho o que lhe vou perguntar, uma das coisas que me têm dito é que vocês
em África entregavam a roupa para lavar e passar a ferro a lavadeiras
profissionais. Há quem diga também que essas mulheres se tornavam vossas
amantes. É verdade?!
- Não me quero furtar à tua questão,
mas essa resposta fica para depois, se não te importas. Agora vamos à vida que
se faz tarde.
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