quinta-feira, 29 de março de 2018

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de Os Lusíadas, de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 

 
(continuação)...
 
PRÓLOGO
 
27

 Invocarei as cem forças do bem,

Para me ajudarem nesta tarefa;

Pois sozinho, serei um zé-ninguém,

No meio da multidão, da catrefa…

Duvido se chamarei mais alguém

Pra servir de cadilho, de sanefa.

Ai, se eu tivesse o apoio do Olimpo,

Pra este poema eu tornar limpo!

28
 
Pedirei ajuda aos bons poetas,

Escritores daquém e além mar;

A todos os deuses, aos mil profetas,

À natureza, astros, ao luar...

Tirarei manuscritos das gavetas,

Lançá-los-ei aos ventos, ao puro ar!  

Porém, peço-vos, ninguém me apresse,

Antes que Hermes ouça minha prece.

 
 
 
29

Eu só quero ter arte, o talento,

Pra vos dar uma obra acabada;

Passarei mil noites de sofrimento

Deitar-me-ei quase de madrugada.

Não haverá mais arrependimento,

Tédio, uma grande estopada…

Tudo isto farei com gozo, prazer,

Preferindo o trabalho ao lazer.

30

Resistirei à fome, ao cansaço,

Pedirei a Hércules sua força,

- (Que se torne ele madraço) - …

 Um cérebro veloz como a corça,

Um tronco mais forte do que o aço,

Pois o querer na luta se reforça...

E jamais o ser humano se esqueça:

Só deve criticar quem o mereça.

 
 
 
31

Vai causar assombro, admiração,

Esta esfarrapada epopeia;

Nasceu dum sonho, duma ilusão,

De uma estranhíssima ideia…

Pelo feito não vos peço perdão,

Os sonhos não se prendem na cadeia.

    Podem não valer dez réis estes versos,

Mas são puros, altivos, não perversos.

32

Peço-vos, não façam comparações:  

Virgílio escreveu a «Eneida»,

«Os Lusíadas» são obra de Camões;

 «Os Gatos» são de Fialho d’Almeida,

Omitindo mil outras criações

Inspiradas por Tétis a “Nereida”…

Lembro-vos só a «Divina Comédia»,

O Dante a brincar com a tragédia.

segunda-feira, 26 de março de 2018

SONETOS DO SOL E DA LUA
 
Por Joaquim A. Rocha






MORTE NO CAMPO

(152)

 

Numa tarde de ténue nevoeiro,

Caim, roído de ódio e inveja,

Leva ao reino do pardal, da narceja,

O pastor Abel, seu irmão inteiro.
 

Mata-o, como quem mata carneiro,

Sem dó, nem piedade que se veja,

Um suspiro de dor, leve que seja,

Com a crueldade de carniceiro. 
 

A essa hora está Javé dormindo,

Num sono profícuo e profundo,

A sua santa mente divertindo…
 

Quando acorda vê o moribundo.

A seu lado, o assassino rindo,

Achando-se vingado neste mundo.
 
 
 

sexta-feira, 23 de março de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






Administradores do concelho de Melgaço 

 
- António Francisco de Sousa Araújo (Dr.) Filho de António Sousa Araújo e de Venceslã da Encarnação Pereira, melgacenses. Embora tenha nascido no Alentejo, a 24/2/1889, foi batizado e criado em Paderne de Melgaço. // Advogado. // A 9/1/1913 tornou-se responsável pela redação do “Jornal de Melgaço”. // Tomou posse de administrador do concelho a 14/5/1914. Nesse ano, no “Correio de Melgaço” n.º 120, de 13 de Outubro, cujo diretor e editor era o Dr. António Augusto Durães, perguntava-se: «Quando é que o senhor administrador se acusa perante o Ministério Público da tentativa do crime de concussão, previsto e punível pelo art.º 316 do Código Penal, visto que tentou receber por um acto das suas funções dinheiro que lhe não era lícito receber? Quando
     Os seus adversários, agrupados à volta do Correio de Melgaço, não o largam. Atacam-no impiedosamente: [É um caso curioso, e ao mesmo tempo picaresco, o que hoje vamos narrar, mostrando aos nossos leitores quem é a criatura que um governo de cordialidade pespegou à frente do nosso concelho, para desgraça nossa. Pouco tempo depois da sua posse recebeu uma queixa do padre pensionista, abade desta Vila, Manuel José Domingues, que dizia ter sido insultado pelo carcereiro José Dias. Sua Excelência manda tomar nota das testemunhas apresentadas pelo reverendo Domingues e ordenou se passassem mandados de intimação para elas virem depor à administração. Mas o oficial que recebe os mandados recebe ao mesmo tempo ordem para dizer às testemunhas que não venham, que não é preciso!!! Assim cumpriu, e uma destas, estranhando o facto, foi referi-lo ao reverendo abade, que imediatamente se dirigiu à administração para perguntar ao senhor Araújo se Sua Excelência tomava o caso a sério ou era preciso queixar-se diretamente ao Senhor Delegado? O senhor Araújo ficou muito atrapalhado, chama o secretário, e pergunta-lhe se dera alguma ordem naquele sentido. O secretário responde negativamente e chama então o oficial Amadeu, que desassombradamente confessa ter-lhe sido feita essa recomendação pelo amanuense Rafael. É chamado este então e o senhor Araújo pergunta-lhe o motivo por que tinha dado aquela ordem tão bizarra. O amanuense hesita, perde a linha, balbucia qualquer coisa, e por último só encontra esta resposta para salvar a dginidade do seu superior: «só se percebi mal o que o senhor administrador me disse!» É evidente que a resposta do amanuense só foi para encobrir a falta do seu administrador, pois de outra forma seria punido, com o rigor de que agora se usou com o secretário. E sendo assim, por que é que o senhor António Francisco de Sousa Araújo se não acusa do crime de prevaricação, previsto e punível pelo artigo 286, do Código Penal, que castiga todos os juízes ou autoridades administrativas que se negarem a administrar justiça depois de se lhes ter requerido?]

     Em Fevereiro de 1915 demitiu-se – entregou o lugar ao vice-presidente da Câmara Municipal, quando devia, segundo os do “Correio de Melgaço”, entregá-lo ao presidente. // Foi de novo administrador a 19/5/1917. Deixou o cargo ainda nesse ano, depois de subir ao poder Sidónio Pais (revolução de 5/12/1917). // Voltou em 1919 para substituir o Dr. José Joaquim Abreu, e em 1921, aquando da queda do ministério de Bernardino Machado, ele pediu a demissão. // Em 1922 foi de novo administrador. // Morreu no concelho de Monção a 16/11/1951, com sessenta e dois anos de idade.

domingo, 18 de março de 2018

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







O BOMBEIRO

 

     É com mágoa, não com raiva, que escrevo este artigo. Nunca quis imiscuir-me em assuntos que por sua natureza são suscetíveis de melindrar pessoas e instituições. E sou daqueles que pensa que apesar de Melgaço ser a nossa terra, logo que a deixamos (não se discutem aqui as razões de tal ato) perdemos em relação a ela alguns direitos, indo eventualmente adquiri-los no lugar para onde se vai habitar. De acordo com esta filosofia, Melgaço é daqueles que lá residem: nós somos apenas melgacenses dispersos pelo mundo, que gostamos imenso desse torrãozinho que nos viu nascer, mas que só de fugida, uma vez por ano, o visitamos, o acarinhamos, como se eternamente nos estivéssemos a despedir. O concelho tem instituições, como todos os concelhos do país; umas são bem geridas, outras nem por isso. Podemos nós exigir perfeições, nós que em nada contribuímos para isso? Não! Isto vem a propósito de uma escultura feita pelo escultor melgacense Acácio Caetano Dias. Levou muito, muito tempo, a elaborá-la, a dar-lhe forma, quase a dar-lhe vida. Trata-se, obviamente, do bombeiro em tamanho natural que esteve exposto nas Festas da Cultura deste ano. Eu presenciei, uma ou outra vez, a sua feitura. Com que atenção, cuidado, ternura, o artista ia, pouco a pouco, trabalhando aquele material informe! Os seus olhos brilhavam de alegria ao contemplá-la! Desde o primeiro dia que a destinou aos Bombeiros Voluntários de Melgaço, sua terra de nascimento. Não lhe passava sequer pela cabeça que essa obra fosse parar a outro lado – nem que dessem rios de dinheiro! Pois bem: terminou-a em fins de Julho, princípios de Agosto, e fez chegar, através de determinada pessoa, essa informação à Associação dos BVM. Entretanto, a Câmara Municipal pediu-lhe para ele expor algumas peças aquando das festas. Para esse efeito teria um pavilhão com as dimensões adequadas. O Acácio não só aceitou, como ficou radiante com tal pedido. Uns dias antes de começarem as referidas festividades, o presidente da Câmara dá ordens para vir uma carrinha a casa do escultor buscar as peças para exposição. Bombeiro e demais esculturas seguiram assim para Melgaço, acompanhadas de seu autor. Primeira decepção: quiseram, a comissão organizativa das festas, à rebelia de qualquer critério estético, dividir o pavilhão com uma mostra equestre! O artista opôs-se, ameaçou retirar as suas obras de arte, e as coisas recompuseram-se. Segunda decepção: a direção dos bombeiros voluntários não se interessou minimamente pela escultura designada «O Bombeiro»! O Acácio tinha decidido entregá-la pelo preço de quinhentos contos (valor aproximado com as despesas em matéria-prima), mas depois, e a pedido de uma pessoa ligada a essa Associação, baixou o preço para quatrocentos e cinquenta contos. Em Lisboa já alguém lhe tinha oferecido mil e duzentos contos por essa obra!

     As festas terminaram e nada ficou resolvido. A esposa do Acácio sugeriu-lhe que a trouxesse de volta, pois parecia-lhe que brincavam com os seus sentimentos e valor artístico. Ele não desejava de forma alguma fazer isso. Tinha investido muito do seu tempo, da sua arte, do seu amor pela terra, para tudo acabar assim abruptamente. E lembrou-se então de que um seu colega escultor, José Rodrigues, tinha feito por encomenda a estátua de Inês Negra, tendo recebido por ela milhares de contos de réis! Colocada na Alameda Inês Negra, foi inaugurada com toda a pompa e circunstância pelas autoridades do concelho. Que diferença de tratamento! Seria por ele ser melgacense? Eu julgo que sim; fosse o Acácio de fora do concelho, fosse ele acarinhado pelas televisões e revistas da especialidade, e ei-lo a colher os frutos dessa fama. Assim, e porque é da terra, tratam-no como se ele fosse a Melgaço vender os seus trabalhos a fim de arranjar dinheiro para se alimentar a si e aos seus! Pobres diabos sois, se dessa maneira pensais. Ele, felizmente, não precisa desse dinheiro. Graças ao seu trabalho e talento, vive desafogadamente.

     Quero contudo felicitar o presidente da Câmara Municipal pela atitude digna que tomou. Quando soube que a direção dos bombeiros não tomava a iniciativa de adquirir a escultura, mesmo tendo a possibilidade de arranjar essa verba através de uma coleta (soubemos que alguns comerciantes disponibilizaram importâncias significativas para esse fim), foi falar com o escultor e disse-lhe que a obra fica em Melgaço, nem que para esse fim a Câmara tivesse de entrar com algum dinheiro.

     O bombeiro ficou e o Acácio regressou a casa desiludido, amargurado, doente. Sofria há muito do coração e toda essa “novela” mexeu com ele. A família levou-o a um especialista e este foi peremptório: tinha de ser operado. Na quarta-feira, 20 de Setembro, no hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, o Acácio submeteu-se a essa melindrosa operação. Para bem de nós todos, tudo correu «às mil maravilhas». O cirurgião sentia-se satisfeito, dizia mesmo que fora um êxito. Agora o nosso amigo vai recuperar, mas claro, dificilmente poderá executar obras de grande tamanho. Dedicar-se-á certamente a criar obras mais pequenas, mas que nem por isso deixarão de ter a marca de qualidade do mestre que ele é.         

     Não acuso ninguém. Não personalizo. Só deixo um aviso aos artistas da nossa terra: não se iludam, nem alimentem falsas expectativas. Em pequenas localidades o que vem de fora é que é bom. Sempre assim foi! «Santos da casa não fazem milagres». Não me refiro a inveja, espero bem que essa terrível doença tenha desaparecido do nosso termo, pois ela era causada sobretudo pela miséria e ignorância, males que agora parecem estar arredados desses sítios.

     O Acácio quis oferecer à sua terra o produto do seu esforço, do seu talento, da sua fidelidade. Algumas pessoas não o compreenderam assim. Pensaram, erradamente, que ele ia aí para receber e não para dar! Enfim, resignemo-nos. Aos bombeiros quero dizer-lhes que isto não é nada com eles, que os admiro, que louvo a sua coragem e dedicação.

 
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1038, de 15/10/1995.

quarta-feira, 14 de março de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



                                                  escritores melgacenses
 
 
 
 
 
 
 
 
     Lê-se com gosto e prazer a sua poesia. É óbvio que alguns poemas agradarão mais do que outros. Eu gostei de alguns deles, mas sobretudo agradou-me o seguinte soneto:
 
 

Oh Musa, como dói ser nesta lida!
Sonho hoje, com lágrimas saudosas,
Os teus beijos, palavras amorosas,
O desditoso dia da partida.
 
Aqui fiquei e julgo-te perdida, 
Sozinha, como eu, mas entre rosas...
Bonitas como tu e desejosas
Do teu regresso assaz (*) à minha vida.
 
Pois anda minha luz, só tu me guias...
Nesta vida que sem ti é um inferno...
Em denso labirinto à tua espera.
 
Sem ti, nas minhas noites, nos meus dias...
Sou eu a ave triste deste inverno,
Na ânsia do raiar da primavera.
 
(*) Julgo que a palavra assaz substitui a palavra breve.
 

domingo, 11 de março de 2018

LINA, FILHA DE PÃ
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 

igreja de São Vicente - Braga
 

5.º Capítulo
 

      O tempo foi escorrendo, a vida em Melcarte era carregada de monotonia, eternidades de tédio, sempre igual, uma autêntica pasmaceira. O Doutor Juiz já estava saturadíssimo daquela terra obscura e dos seus desenxabidos habitantes. À amante começa a notar-se-lhe a gravidez. Já tratara da papelada para o casamento. Um determinado dia dirige-se à rapariga:

- Então, já disseste ao lambisqueiro que estás grávida?

     Ela estremeceu. A barriguinha crescera e ela não podia esconder por mais tempo o seu estado.

- Hoje mesmo vou dizer-lhe. Ele até já me falou em casamento, mesmo não sabendo! Senhor Doutor Juiz, vou pedir-lhe um grande favor: – empreste ao Mário o dinheiro para ele embarcar para o Brasil ou para a Argentina – ele depois manda-lho. Assim, eu ficava aqui, casada, e continuávamos a ser ternos amantes. Ninguém desconfiaria de nada. 

- A ideia até não é má! Tens bons raciocínios. Matavam-se dois coelhos com uma cajadada: tu vias-te livre dele, e eu ficava à vontade contigo. Vou pensar nisso.

     O magistrado ficou a ruminar no assunto. Inteirou-se dos preços da viagem, uma bagatela, para ele nada significava; meteu mãos à obra. Mas primeiro tinha de os casar.

     A boda realizou-se a um domingo de manhã, na igreja matriz da Vila. O juiz entrara com as massas para a cerimónia. Não lhe saíra barata a brincadeira, mas fora melhor assim: a criança nascia dentro de um lar, embora humilde, e ele via-se livre de encrencas. Ficara bem visto no concelho: era amigo da empregada, estava ali no seu casamento, pagara as despesas, que mais ela queria? Agora era tempo de zarpar. A transferência já estava resolvida. Ia para Évora, no Alentejo, durante os próximos três anos, bem longe dali. Ela nunca saberia do seu paradeiro. Provavelmente jamais veria o bastardo, não saberia se era rapaz ou rapariga, mas que interessava? Mais tarde casaria com uma fidalga rica e teriam os seus próprios filhos – os autênticos. Dirigiu-se à empregada e diz-lhe:

- Estás muito bonita! O teu marido teve muita sorte.

     Ela enrubesceu, e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Por que chorava? Acaso tinha quaisquer ilusões? Alguma vez o Senhor Doutor Juiz a tomaria por esposa? Nunca! Nunca!              

- Obrigada, Senhor Doutor. Hoje é um dia muito triste e ao mesmo tempo feliz para mim. O Mário é um bom rapaz e vai tratar bem da nossa criança. Não se preocupe.

- Sim, hoje é um dia especial para nós todos. Haja alegria. Não te arrependerás da decisão tomada.

     Depois do acto religioso, dirigiram-se todos para um restaurante de um hotel das Termas, onde lhes foi servido o almoço, bem regado com o vinho da região, um verdadeiro néctar, segundo os apreciadores.

     À tarde houve baile. O togado despediu-se de todos, desejando felicidades aos noivos. Lina ficou atordoada. Pressentia bem que o perdera para sempre. Provavelmente nunca mais dormiria com ele. Chorou amargamente. O noivo perguntou-lhe:

- Por que choras, meu amor?

     Ela, banhada em lágrimas, respondeu-lhe:

- É por estar tão feliz; não ligues. As mulheres choram, quando amam.

 O Doutor Juiz cumpriu a sua promessa: entregou algum dinheiro ao Mário, a fim de ele tentar ir para a América do Sul. O primeiro passo estava dado. A seguir o recém-casado teria de marcar uma inspecção médica – sem um atestado de boa saúde não poderia obter os papéis; e sem documentos não o deixavam embarcar. O problema era aquela sombra no pulmão direito. Devido a isso, as Repartições Públicas não permitiam que ele emigrasse. Diziam-lhe constantemente: «Cure-se primeiro; depois terá o passaporte.» Para se tratar clinicamente precisaria de muito dinheiro, de apoios. Onde os iria buscar? A Santa Casa da Misericórdia estava praticamente falida, com os seus cofres vazios, não o podia ajudar. As Instituições governamentais não estavam em condições de prestar qualquer tipo de auxílio. A quem recorrer? 

     Trabalhou no porto de Leixões, durante uns meses, na expectativa de partir clandestinamente num daqueles navios, mas o trabalho era duríssimo, demasiado pesado para as suas débeis forças, ainda por cima mal remunerado, e assim, desiludido, cabisbaixo, regressou à sua terra natal.

     A criança já vira a luz do dia. O parto decorrera na maternidade do Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Era uma menina. Foi batizada na igreja matriz da Vila, na maior das simplicidades. Puseram-lhe o nome de Lisete, por assim se chamar a irmã da caridade, a parteira que ajudara a trazê-la ao mundo. Os seus padrinhos foram a Senhora do Rosário e Santo António. Toda a gente ficava a olhar para ela, procurando semelhanças com o pai, mas de Mário nada tinha. As bisbilhoteiras comentavam:

- Aqui há marosca: a Lisete não se parece nada com o Mário! Será que é filha dele? Não será filha do Doutor Juiz? Com esse parece-se! – aventou a Isolina, cuja língua viperina era temida em toda a Vila e arrabaldes. 

- Não sejas má-língua, mulher! Olha que Nosso Senhor Jesus Cristo castiga-te – retorquiu a Palmira, aparentemente mais moderada do que a sua vizinha.

- E que me dizes tu, Palmira, a ter nascido antes do tempo? Nessa não acredito eu!

- Ó Isolina, achas mesmo que é filha do Senhor Juiz?!

- Não tenho bem a certeza mulher, mas do Mário não me parece ser – é tão diferente!

     Os comentários foram aumentando à medida que a menina crescia. A semelhança com o verdadeiro progenitor era espantosa. A cor do cabelo, a testa grande, aqueles olhos inteligentes e observadores. Não havia qualquer dúvida: a Lina ludibriara o ingénuo do “Brilhantina”.

- «Que coirão – exclamava a irmã do rapaz – e meti-os eu em casa. Não a quero mais aqui. Rua!»

     O Mário andava abatido, destroçado. Fartava-se de trabalhar para alimentar a catraia, que afinal de contas não era sua filha. A Lina agora era criada de servir em São Cristóvão, a dez quilómetros da Vila. A irmã dele já não queria a criança, dizia que não lhe era nada, não era sua sobrinha, que a levasse para outro lado. Ele estava desesperado, tinha os nervos num frangalho. Arranjou um quartinho, onde outrora existira uma oficina de barbeiro, e instalou-se lá como pôde. Alguns vizinhos tiveram pena dele e deram-lhe algumas roupas de cama, mantas velhas, uns cobertores descoloridos, mas que permitiriam aconchega-los, aquecê-los no inverno.

     Começou a andar no contrabando, na frota, como na altura chamavam ao comércio ilegal. Levavam certos produtos para a Galiza e lá traziam outros. Fora o irmão mais velho que o convidara:

- Ouve, Mário: tu andas para aí aos caídos, aos biscates, mas, se quiseres, o Abílio do Tojal dá-te trabalho, na frota. Claro que é perigoso: dum lado os guardas-fiscais; do outro, os carabineiros. É certo que muitos deles, ou todos, têm as mãos untadas, mas às vezes andam mal dispostos e disparam, sobretudo quando sabem que anda por perto o tenente. Nós temos de ter muita cautela. Por outro lado, começou há pouco tempo a guerra civil espanhola, e anda tudo em alvoroço – podemos levar um tiro em qualquer ocasião.

- E quando se faz o serviço: de dia ou à noite?

- É tudo feito à noite. Logo que escurece a gente mete-se a caminho do rio, com os sacos de café às costas, e depois é só atravessar o rio na batela; do outro lado estão uns quantos galegos que levam a mercadoria.

     O Mário estava com vinte e dois ou vinte e três anos de idade. Fora à inspecção militar na altura própria e ficara isento. Casado, com uma filha, que afinal não era dele, tinha de conseguir algum dinheiro, senão morria à fome.

- Está bem, aceito. Quando começo?

- Pode ser hoje mesmo. Vai cear logo connosco, assim já falamos melhor. Quanto à Lisete, leva-a lá para casa, a tua cunhada toma conta dela.

- Obrigado! Vou já tratar disso.

     E foi assim que o jovem foi ganhando uns dinheiritos para o dia-a-dia. Quando viu que já tinha umas magras economias, arrendou uma casinha e disse à mulher para vir novamente para a Vila, ele e a filha precisavam dela. Porém, a Lina já arranjara um novo amante. Ela nunca estivera apaixonada pelo marido, como já atrás ficou esclarecido; fora apenas um ardil para salvaguardar a reputação do juiz, e a sua própria, porém agora não necessitava mais de fingir. O juiz entretanto fora embora, e nunca mais dera sinal de si. Era de momento, na sua agitada vida, apenas uma recordação. Ficara a criança, que mais tarde seria, tal como a mãe, uma simples criada de servir, ou então casaria com um operário, ou com um camponês fardado. Nada mais poderia esperar da fortuna, ali naquele recanto do mundo, onde Salazar jurara nunca mais lá voltar, quando lá estivera em 1934. Na ponte de São Cristóvão, junto de alguns ministros, Governador Civil, e Presidente da Câmara Municipal de Melcarte, na altura o farmacêutico, Dr. João Magalhães, disse com algum desprezo e enfado: «Isto aqui é o fim do mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem para vir cá mais.» E de facto o ditador jamais retornou a Melcarte. Nos seus discursos dizia sempre: «De Valença a Timor…» Este concelho e o vizinho tinham desaparecido pura e simplesmente do mapa! E fez mais: a maioria dos professores do ensino primário passou a ser composta por regentes, apenas com a quarta classe do ensino primário!

quarta-feira, 7 de março de 2018

POEMAS DO VENTO
 
Por Joaquim A. Rocha







O vento fala comigo

e eu não sei o que ele diz:

«trago novas de um amigo,

lamentos de uma infeliz
 

Açoita meu rosto pálido,

afaga meus brancos cabelos;

nivela meu olhar cálido,

 aviva e agita meus desvelos.

 
Traz-me à ideia a infância,

onde a pobreza reinava,

e, sem fé, nem esperança,

os tristes dias passava!

 
Vento! – Que novas são

as que trazes no teu bojo?

Diz-me, que meu coração

está já a pedir, de rojo!

 
Diz-me onde estão meus amigos,

Se vivem bem no outro mundo;

Se tem por lá inimigos,

Um novo amor profundo.

 
Diz-me que comidas comem,

Se são servidos por anjos;

Se em macias camas dormem,

Se têm asas como arcanjos.

 
Diz-me tudo o que lá se passa,

Tudo eu quero saber;

Diz-me se por lá há desgraça,

Se há ódio e malquerer.

 
Diz-me tudo, que eu não sei

O que por lá acontece;

Diz-me se há rainha ou rei,

Se a aranha ainda tece.

 
Diz-me tudo, tudo, tudo,

Neste tão longo e triste dia;

Eu, para te ouvir, fico mudo,

 Indiferente à maresia.

domingo, 4 de março de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico - Por Joaquim A. Rocha





// continuação...


- Pouco havia a fazer ali. Os “turras” deviam estar radiantes. Aquela acção tinha sido para eles um êxito completo, pleno: alguns mortos, muitos feridos por balas e estilhaços, o aquartelamento praticamente arrasado! Ao invés, as suas baixas, se as tiveram, deveriam ter sido ínfimas, a bem dizer, insignificantes. A conclusão lógica a tirar de tudo isto seria a de que esta pugna jamais poderia ser ganha de armas na mão. O inimigo não precisava de muita soldadesca: poucos, bem treinados, conhecedores do terreno, moralizados, chegavam e sobravam para um exército de cinquenta mil homens!

- Como iam longe as guerras clássicas – comenta Henrique, lembrando-se dos filmes que já vira acerca desse tema.

- Na mata eram impossíveis, impraticáveis. Por outro lado, a ciência militar, o espantoso avanço tecnológico, tornou obsoletas essas guerras. Agora, e sobretudo no futuro, com a ajuda do computador, da robótica, as coisas já serão diferentes. Por este andar, a sofisticação atingirá o seu auge dentro de poucas décadas. Prosseguindo:

     Depois de, nesse sombrio local, termos estado cerca de um dia, patrulhando a mata em redor, regressámos a Teixeira Pinto na madrugada do dia seguinte. Escusado será dizer que durante a noite ninguém conseguiu dormir. Horas longas, quase eternas. A vista doía de tanto sono e tanto esforço para não lhe ceder, mas o medo, esse sentimento que corrói a alma e nos torna pigmeus, pequeninos, era mais forte do que Morfeu.

     Silêncios profundos, de vez em quando interrompidos pelos ruídos de animais noctívagos, alimentavam ainda mais, se possível, a nossa ansiedade. Os mosquitos, desprotegidos como estávamos, banqueteavam-se à vontade, sem etiqueta, sem pedir licença, enchendo a pança, ao contrário de nós que tínhamos uma lazeira dos diabos e nada para rilhar, nem uma migalha de alimento, nem uma côdea de pão de milho sequer para enganar a fome!

- É o sofrimento na sua máxima expressão! – diz o moço, com uma expressão melancólica, comovido até às lágrimas.

- Bem o podes afirmar! Finalmente, a aurora, radiante, surgiu no horizonte; e novos odores, fragrâncias primaveris da floresta tropical, vieram desejar-nos os bons dias. Lembro-me de ter olhado, olhos semi-cerrados, para aquele amanhecer e monologar: “que linda é a África e como o ser humano a desrespeita, a conspurca!”                  

     Em Teixeira Pinto toda a gente se pelava por saber o que se passara. Nós, porém, fomos bastante lacónicos, parcos em pormenores; queríamos um banho, comer e dormir. Pedimos a todos os santinhos que não nos maçassem durante umas horas.

     Banho… nem pensar! Não havia água nas torneiras. Podíamos ir ao rio tomá-lo, mas estávamos demasiado fatigados para isso; por outro lado, corria-se alguns riscos – quem sabe se na outra margem uma arma mortífera nos espreitava?

- Também já era azar a mais! – comentou Henrique, resfolegando.

- Já estávamos habituados. Assim, comemos alguma coisa e em seguida fomos repousar o corpo e o espírito.

     Acordei sobressaltado. Sonhara com aqueles horrores, com corpos mutilados, com feras raivosas, da boca escorrendo-lhes sangue, a atacarem-nos traiçoeiramente. Para me distrair um pouco peguei em algumas cartas e li-as.

- Por falar nisso, e aproveitando a deixa: podia ler-me mais uma?

- Com certeza, terei todo o prazer nisso:

 
    Querido afilhado

 
            A continuação de boa saúde – esse é o meu desejo. Desculpe se há mais tempo não lhe respondi, sei que isso é imperdoável, mas a causa desse atraso é o seguinte: como queria que na próxima vez que escrevesse lhe mandasse a minha foto, estava à espera que viessem cedo de Lisboa, foram lá para revelar, mas até à data ainda não chegaram; portanto não se ponha a pensar coisas desnecessárias. Logo que elas cheguem mando-lhe uma, mas vai reparar que não sou nenhuma beleza dessas que aparecem nas revistas de modas.

         Então, afilhado, tem-se distraído alguma coisa? Aqui, nesta terra, é tudo muito bonito, mas só que no verão foge toda a gente para as praias e ao domingo é uma autêntica pasmaceira. Se calhar este ano também vou uns dias, estou a precisar muito, a minha pele é demasiado branquinha. Que me diz disso?

     No Minho litoral temos praias lindíssimas, com muito iodo, a água no entanto é um nadinha fria, quase gelada; anos há que é impossível tomar um bom banho! Conhece Ofir, Âncora ou Moledo? Segundo me disseram, em África existem muitas praias e boas, mas estão cheias de tubarões e de crocodilos – será verdade?! Não se arrisque.

         Por hoje nada mais, receba muitos abraços da madrinha muito amiga. E escreva-me depressa, sim?!...
                                                                                                         

                                                                                   Fernanda    

 

- Já lhe estava a pedir para a deixar ir à praia – brinca Henrique, folgazão. 

- Nem queiras saber como desabafei! Ora essa! Só me faltava esta; a falar-me de divertimento, de praias, a mim que nem sequer água tinha para tomar um duche! Achas isso agradável, decente?!

- Que quer o meu amigo? Que ela lhe contasse desgraças, lhe falasse dos inúmeros desastres que ocorriam por esse mundo fora, da fome que grassava em muitos países, das doenças sem cura?!

- Não queria isso, não; sofrimentos tinha-os eu à porta, não precisava dos alheios, mas considero uma afronta ter-me perguntado se me divertia. Onde raio ela imaginou que eu estava? No Casino do Estoril, na Feira Popular, nas praias algarvias?

- Bem, bem! Parece que tomava o assunto muito a peito…

- Nem sequer respondo a essa subtileza. Adiante:

     Quatro da manhã. O alferes Barrelas, esguio como uma árvore em crescimento, verdadeiro trinca espinhas, um dos mais irrequietos oficiais da Companhia, irrompe, em altos brados, pela nossa camarata e ordena: «A pé! Pensam que isto é um hotel de cinco estrelas? Ou julgam que estão em férias? Dentro de cinco minutos quero-os todos formados.»

     Com o corpo ainda dorido, com os olhos teimosamente fechados, vesti-me, peguei na metralhadora e juntamente com os outros apresento-me na parada. Não me apetecia mesmo nadinha ir a essa operação. Não conhecia exactamente o meu peso, mas sentia-me fraco, débil, tísico! Saí da minha terra com cerca de sessenta quilos; se agora pesasse cinquenta já me podia dar por satisfeito!

     Manifestei ao meu alferes o receio de estar doente e a resposta não se fez esperar: «Isto aqui não é para medricas: um homem é um homem.»

- E o Cândido que lhe respondeu?

- Não adiantaria argumentar; no regresso, se regressasse, iria falar com o médico e logo se veria. Devido àquela dor intensa no peito, temia estar tuberculoso. Tanta gente morrera já com essa terrífica doença!




     Antes de partirmos para a nova aventura pelas matas o capitão Fontelas falou-nos: «Esta acção de hoje é apenas de rotina, quase um passeio! Vamos nas viaturas até um determinado sítio e depois seguimos a pé. Levem, de qualquer modo, munições e rações de combate para dois dias. Dirijam-se agora ao refeitório e tomem o pequeno-almoço. Dentro de meia hora quero-os todos prontos para arrancar.»

     Mais nada! Quem éramos nós, filhos de deuses mirrados, de campónios sem eira nem beira, de operários de segunda, de trolhas analfabetos, para tomarmos conhecimento prévio da operação? Simples peças de uma máquina mais ou menos bem montada, limitávamo-nos a cumprir ordens, a obedecer cegamente. Eles sabiam o que convinha fazer: quando e como. A nossa cabeça, a nossa inteligência, os nossos neurónios, ali não tinham qualquer utilidade, eram lixo! Só a presença física, resistência, capacidade de persuadir pelo número, pela força bruta, se levavam em conta.

- Num regime autoritário queria certamente uma democracia militar! – ataca Henrique, com alguma ironia.

- É uma força de expressão – eu sei que não era possível. Continuando: entrámos nas camionetas e rolou-se cerca de uma hora na estrada Teixeira Pinto a Cacheu. Parámos. Os carros voltaram para trás e nós, depois de descermos, dirigimo-nos a pé ao posto de vigilância, Bachile, que se encontrava a uns cinquenta metros da estrada. Nesse posto permaneciam quinze homens, pertencentes a um batalhão mais antigo do que nós na Guiné, cujo comando estava em Teixeira Pinto como o nosso. Um desses homens, o cozinheiro, acabaria por morrer da maneira mais estúpida que se possa conceber. Como a sua especialidade o retinha entre muros, um dia, possivelmente bem bebido (o vinho que nós bebíamos era misturado com água para sobrar para eles), ofereceu-se para acompanhar os colegas numa operação.

     O comandante disse-lhe que não, ele era necessário no posto para confeccionar a comida aos seus camaradas, pois quando regressassem viriam esfomeados, não estava habituado àqueles caminhos, àqueles esforços, arrepender-se-ia se fosse.

- Resultou, a sugestão, o conselho?

- Qual quê! Nada o demoveu. Quis ir à viva força. «Só uma vez!» - implorou ele ao oficial.          

- Até parece que a velha loba esfaimada o chamava!

- Não voltou vivo, não! As balas de “Satã” trespassaram o seu voluntarioso coração e o seu corpo agigantado. «O destino: ninguém lhe pode escapar!» Epitáfio derradeiro sobre uma alma a caminho do além, da estrela mãe, ou da lousa fria.

- Soube, porventura, quais eram os objetivos dessa saída?

- Um dos objetivos principais da nossa ida seria, pelos vistos, rendê-los. Outro objetivo, fazer uma breve batida pelos arredores, a fim de verificar se os “turras” não andavam por perto.

     A zona resplandecia de beleza. Algumas habitações, embora modestas, indicavam-nos que ali não havia problemas de maior. O que mais me chamou a atenção foi a existência de uma árvore gigantesca que, sem quaisquer exageros, nem vinte homens juntos a conseguiriam abraçar. A sua sombra cobria uma vastíssima área.

- Sabe o seu nome?

- Infelizmente não tenho a certeza; não possuo quaisquer conhecimentos de botânica. Apenas distingo o carvalho, o castanheiro, pinheiro bravo e manso, eucalipto, e pouco mais: árvores que crescem no Alto Minho. No entanto, disseram-me tratar-se do poilão, ou poilão-forro; os seus frutos dão uma espécie de lã, chamada sumaúma, a qual utilizam para encher almofadas e colchões.

- Interessante – comenta Henrique.     

- A população residente começava o seu dia de trabalho pastando o gado, cultivando o arroz, colhendo a mancarra, ou amendoim, fabricando o óleo de palma. Não falavam a língua de Camões! Como noutro local te disse, a maioria dos habitantes da Guiné-Bissau não dominava a nossa língua no ano de 1966; a excepção ia para os negros que viviam na capital da província e para alguns chefes locais que a aprendiam, embora bastante mal, para assim poderem ser elos de ligação entre o seu povo e a administração portuguesa.

- Quer dizer que não havia escolas do ensino elementar espalhadas pelo mato! – surpreende-se o jovem.

- O governo português nunca se importou muito com isso; as escolas primárias – poucas – estavam localizadas nas vilas mais importantes e nas cidades. Escola secundária só havia uma na capital! Ensino superior nem o cheiro!

- E era assim que os lusos queriam conquistar a simpatia dos africanos! – espicaçou Henrique, admirado, e com alguma dificuldade em crer em tudo aquilo que escutava.

- Até posso estar errado, mas duvido que a população em geral soubesse que a Guiné pertencia a um país europeu, de seu nome Portugal. Para eles isso não fazia sentido; nós estávamos a ocupar militarmente o seu território. Ali tinham nascido, ali cresciam e morriam. Aquele era o seu chão e não viesse este ou aquele dizer-lhes o contrário. Língua, possuíam a sua, secular, e não precisavam de nenhuma outra. Não lhes fossem também dizer como se criava o gado, como se plantava o arroz nos terrenos alagadiços, como se fazia óleo, vinho de palma e aguardente.  Amavam a sua cultura, a sua religião, os seus mitos e tradições; a sua arte, as suas cerimónias fúnebres, seus rituais, e quiçá a cor da pele! Não, ali não era mesmo poiso de branco; este só na cidade, longe da selva, longe da natureza imaculada.
// continua...