domingo, 31 de maio de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes

O Crime de Castro Laboreiro


     Por mais voltas que se dê à nossa imaginação, jamais algum dia esperaríamos deparar com um assassínio numa aldeia remota do país, onde todos se conhecem, se respeitam, ou se temem – onde todos, ao fim e ao cabo, são uma família. Porém, naquele dia fatídico, a insaciável esposa de Belzebu, já cansada de aguardar, reivindicou a sua presa. Aquelas pessoas, os assassinos, não eram gente má. A sua vida, marcada pelo labor duro e ingrato, estava isenta de máculas. Iam todos os domingos à missa, e confessavam ao cura os seus pecados – coisas de somenos. Davam o seu melhor à comunidade, cumpriam escrupulosamente os seus deveres, recebiam em troca apenas aquilo a que tinham direito. Para quê matar, se os conflitos surgidos se resolviam com uma simples discussão, uma pequena cedência, ou por vezes – raras – com umas pauladas, ou vergastadas, dadas naqueles lombos habituados a sofrer até à exaustão. Longe iam os tempos da Inquisição, em que os membros da igreja católica, todo-poderosos, metiam nos cárceres, ou queimavam na fogueira, aqueles que se lhes opunham, ou de quem não gostavam. Os tempos eram outros. Contudo, os atos menos nobres dos seres humanos são como as tempestades: surgem de repente, tudo arrasam, e logo a seguir tudo acalma, a mente adormece, nasce o silêncio inquietante, apenas restam os destroços, pequenos fragmentos espalhados ao acaso. / Naquela madrugada do dia 20/5/1930 António José Domingues, mais conhecido por “Soajo”, de 50 anos de idade, acorda cedo e chama a sua companheira de escala, Maria Gonçalves, de 23 anos de idade, do Ribeiro de Cima, para juntos irem apascentar o gado. Antes de partirem manjam a habitual água de unto, com aquele delicioso pão castrejo, mantendo em sossego aqueles estômagos por algumas horas. O corpulento cão de raça já acordara, e mostrava-se impaciente por partir para aquelas pastagens com o “seu” rebanho. Habituara-se àquele ritual: todas as manhãs, muito cedo, um homem e uma mulher da comunidade vinham chamá-lo para os acompanhar, e para os defender, caso fosse necessário. Especializara-se em guardar o rebanho, em mantê-lo em respeito, não admitia desobediências nem deserções – se levasse cem cabeças para o monte, esse exato número teria de voltar com ele; às vezes até voltavam mais, pois as fêmeas não iam à maternidade parir, pariam ali, no monte, como se fosse a coisa mais banal do mundo, sem parteira por perto. / Há um ditado antigo que diz assim: «o homem põe e a divindade dispõe.» Pois é: nesse dia só regressa do pasto a rapariga. Os vizinhos, estupefactos, boquiabertos, perguntam-lhe: - «e Antônio?» «Que é feito de Antônio?!» / O tempo foi passando e nada de aparecer o pastor. Alguns habitantes do lugar, inquietos, augurando o pior, decidem ir à procura do desaparecido. Procuram, chamam, nada! Regressam, altas horas, já com a luz diurna, deveras desiludidos. Participam o evento à autoridade. São enviados dois cabos de polícia (nessa altura, em virtude de um conflito surgido entre a administração do concelho e a GNR, esta teve que ir embora), sendo um deles o perspicaz “Manuel Pintor”. Inteiram-se imediatamente do que se passou e depressa se apercebem que a jovem pastora devia saber muito mais do que aquilo que timidamente revelara. Obrigam-na a acompanhá-los ao monte; pelo caminho iam-na interrogando. Em princípio negou mas, apertada, entrou em grosseiras contradições. Resolve contar tudo: fora seu primo quem assassinara, à pedrada, o pobre “Soajo”. O corpo da vítima encontrava-se no sítio designado a Cova do Ladrão. Dirigiram-se imediatamente para o local e depressa descobriram o cadáver. Estava coberto de ervas e urzes. Comunicaram o sucedido à sede do concelho, que ficava quase a 20 km de distância, e logo que foi possível um carro puxado a animais transportou o corpo para o hospital da Santa Casa da Misericórdia de Melgaço, onde foi submetido a autópsia. «Apresentava-se horrorosamente martirizado, com contusões enormes nos braços, no peito e na cabeça, e com onze facadas, sendo uma no pescoço e outras pelo peito, que atravessaram o coração e pulmões.» / Iniciaram-se as inevitáveis investigações, e os agentes policiais chegaram à seguinte conclusão: o “Soajo” andava de relações cortadas, havia já um ano, com Constantino Xavier e esposa, e com Manuel António Bernardo (o Redondo), e com a companheira deste, Rosa Gonçalves. O motivo da zanga era normal: uma questão de águas de rega com os primeiros, e uma servidão com os segundos. António José pedira uma opinião, por escrito, à Direção das Hidráulicas, e essa entidade deu-lhe razão, pelo que os outros ficaram furiosos e juraram vingar-se. Elaboraram um hábil plano, mas como sabiam que o adversário era um latagão, teriam que arranjar alguém de fora, um indivíduo habituado a bater, para lhe dar, enfim, um corretivo. Não o queriam matar, apenas aplicar-lhe uma tareia que lhe servisse de lição. Lembraram-se daquele valente da Peneda, o Manuel José de Sousa, cuja fama de brigão correra já aquelas serras de fio a pavio. O Redondo, em Abril, foi ter com ele, mas aconteceu o imprevisto: o Sousa disse-lhe que não dava coças a quem não conhecia nem mal algum lhe fizera; tinha a sua maneira própria de agir, a sua ética, o seu código de honra. O grupo ficou irritado. Tinham que encontrar uma solução – o Domingues não se riria deles. A Rosa abordou a mulher do Constantino, Amélia Gonçalves, e sugeriu-lhe que insistisse com o seu marido para ir convencer o tal Sousa, e se ele recusasse então recorreriam ao Félix da Rosa, também da Gavieira, menos escrupuloso e seletivo do que aquele. Manuel António dirigiu-se, no dia 18/5/1930, à Peneda e fez novamente o convite ao Sousa, oferecendo-lhe uma nota das grandes. A resposta foi peremptória: não! / Regressou ao Ribeiro de Cima com o rabo entre as pernas – a sua diplomacia não fora suficiente para convencer o lutador. / Reuniram o grupo e tomaram uma decisão: seriam eles a malhar no conterrâneo. Escolheram o dia vinte desse mês, dia em que o “Soajo” haveria de ir para o monte com o gado. A Amélia combinou com o marido irem à tarde ao monte darem umas pauladas ao seu inimigo. O plano era simples e eficaz. Para encontrar um álibi o Constantino, com o Bernardo e a sua amante, iriam à vila de Castro. O primeiro solicitava uma licença para cortar madeira no monte baldio, os segundos pagariam a multa provocada pela desavença. No regresso partiram para o monte. Já lá estava Amélia com a pastora. Dissera-lhe ao que ia. Ela não concordou, até simpatizava com o companheiro de ofício, tinha o seu feitio mas não era mau diabo. Contudo, ameaçada de morte, viu-se obrigada a participar. Foi ela a primeira a  achegar-se ao pastor. Este de nada desconfiou. Maria, rodeando-o, como uma especialista no jogo do pau, espeta-lhe duas pauladas na cabeça, ficando o pobre homem a cambalear. Como era forte como um touro, depressa se recompôs. Tirou o pau à moça e tentou agredi-la, assim como a Amélia, pois verificou que elas não estavam a brincar. Estas retiram-se, atirando pedras e mais pedras. Ele, vendo que as mulheres se afastaram, começa a correr em direção a sua casa, a fim de tratar da cabeça, que muito lhe doía. Porém, quando chega à Lapa do Ladrão, à sua espera estava a matilha. Amélia, que ficara ferida na rixa, tira do bolso uma faca e entrega-a ao marido, exigindo-lhe que mate o “Soajo”, pois de contrário ele matá-los-ia. Constantino não hesita: espeta a naifa na garganta da vítima. Este tenta defender-se, mas vê-se manietado, enquanto o agressor o esfaqueia sem dó nem piedade. Quando a vítima já estava a despedir-se deste mundo, numa agonia indescritível, o energúmeno passa a faca a Maria, obrigando-a a dar-lhe duas facadas – assim não haveria ali inocentes, todos, sem exceção, eram culpados e cúmplices daquela chacina brutal, selvagem, sem explicação racional. / Depois de levarem o cadáver para o tal buraco, dispersaram; somente Maria, atordoada, incrédula, ficou, a fim de conduzir os animais para a corte. O pobre cão ladrava, quase chorando! Quando a rapariga chegou ao lugar, sem o companheiro, e perguntando-lhe os vizinhos por ele respondeu meio a brincar, meio a sério, aparvalhada, que fora comido pelo lobo. Ela fugira! / Se não fora a persistência do “Manuel Pintor“ talvez ainda hoje não conhecêssemos o nome dos canalhas, nem a causa daquela horrível morte. / Numa das salas do edifício dos Paços do Concelho de Melgaço, inaugurado em 1931, decorreu o julgamento. Os juízes, Manuel Faria Sampaio, António Baltazar Pereira e Jaime Fontes, depois de um ano de intenso trabalho, preparavam-se para ler as sentenças. A acusação pública estava a cargo do Dr. António de Almeida Moura; a particular coube ao Dr. António Francisco de Sousa Araújo. A defesa dos réus foi assegurada pelo Dr. Francisco de Sá Tinoco, advogado de Braga. Como se esperava, foram todos condenados a oito anos de prisão maior, seguidos de doze anos de degredo, ou na alternativa a 25 anos de degredo, e 1.800$00 de imposto de justiça cada um, com exceção de Maria Gonçalves, que pagaria 800$00, e todos solidariamente em 10.000$00 de indemnização à queixosa. E desta maneira, inesperadamente, como num filme de terror, famílias honradas transformaram-se em criminosos! // (ver Notícias de Melgaço n.º 62, de 25/7/1930; Notícias de Melgaço n.º 99, de 1/3/1931; Notícias de Melgaço n.º 101, de 15/3/1931; Notícias de Melgaço n.º 102, de 22/3/1931; Notícias de Melgaço n.º 107, de 3/5/1931; e Notícias de Melgaço n.º 114, de 21/6/1931).     

sexta-feira, 29 de maio de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

                                                                        Por Joaquim A. Rocha


Cartas de um castrejo

5.ª - «Sr. Redactor: escrevo-lhe cá do fundo das inverneiras (…). De verão, vivemos nas brandas, nos lugares situados nos declives e altos das nossas belas serranias, onde a urze e a giesta, a carrameja e o lírio bravo nos embalsamam o ar e um sol rútilo e consolador no-lo purifica para, respirando-o a longos haustos, tonificarmos os pulmões das graves enxaquecas que as inverneiras, em períodos invernais desta impiedade, nos provocam; no inverno cá estamos encravados, a quilómetros da nossa vila, e entre montões de rochas e cerros escalvados – longe, muito longe de tudo o que é vida, civilização e progresso; mas os nossos antepassados, previdentes sem dúvida, e conhecedores do terreno que pisavam e habitavam, destinaram-no-lo. Nós, respeitando-lhes as memórias, aceitámo-lo. Mas, como queria contar-lhe: aqui, onde poucos mantos de neve já dificultam o trânsito, onde a rês já sai a retouçar nas pontas dos giestais, aqui, mesmo à beira do riacho que, se nos não dá a saborosa lampreia e o espinhento sável, nos oferece a preciosa truta – colhida ao anzol, aqui, Sr. Redactor, e daqui estou a pensar no meio de fazer uma viagem à Vila de Melgaço, para tratar de negócios urgentes e particulares, que não olvidariam o dever de agradecer a V. a publicação das minhas despretensiosas cartas e, ao mesmo tempo, abraçá-lo estreitamente. Mas como, se um vizinho vindo de Portelinha, me diz que ali a neve tem de espessura cinco palmos?! Na Chão terá cinco metros e na vila fazem-se derrotas a fim de facilitar o trânsito. «Não saia homem, não saia»; e não saí mais do que para conseguir que esta seja entregue a horas de entrar no prelo, para que se saiba que eu estou engarrafado e que as condições climatéricas e topográficas não permitem que veja o mundo… se não pelo ginelo! Castro Laboreiro, 2/3/1916.»        

quinta-feira, 28 de maio de 2015

POEMAS AO VENTO

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes

ADOLESCENTE


Quando eu era adolescente
altamente enamorado,
buscava no bosque encantado
uma certa luz reluzente
que na noite, de repente,
 brilhava, brilhava, brilhava…
nunca mais a luz se apagava!
Era a gata borralheira,
que logo pela vez primeira,
trapo estrela experimentava.
Casei com ela, e depois,
nasceram os antónios e joões,
as sofias e gabrielas;
agora já não sei qual delas
amo mais… e me reparto
em carinho, bofetões,
em meiguices, supetões,
à espera de outro parto.
Por este andar já não sei
se fiz certo ou errei
ter-me casado com ela.
O tempo, esse maroto,
que me viu, quando garoto,
apaixonado e atrevido
vê-me agora inibido,
perdido e amargurado,
solteiro, estando casado,
sozinho e acompanhado,
desejando fugir para longe,
deixar o mundo, qual monge,
dedicar-me à oração;
de gente, tornar-me cão
e de cão ave de rapina;
depois raposa ladina,
 árvore de porte distinto,
de branco tornar-me tinto,
 cor que não haja no mundo;
viver como vagabundo
na terra de meus avós,
percorrendo o infinito,
sem sair de ao pé de vós,
vestido de lenda e mito!

quarta-feira, 27 de maio de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha




- Estou plenamente de acordo – disse Henrique, comovido.
- A teimosia, o rancor, a vaidade torpe, o orgulho mesquinho, paralisava-lhes o sentido da visão; o coração gélido, granítico, estiolava o seu sentir; os ouvidos moucos, barrava-lhes a audição.
- Ainda tentaram derrubar o regime, mas não conseguiram…
- É verdade. Houve algumas tentativas, mas falharam estrondosamente.
- Pudera! Segundo dizem eram anarquistas, os autores dos atentados.
- Parece que sim, pois os comunistas recebiam ordens de Moscovo, e só atuavam de acordo com elas. A União Soviética não desejava criar mais problemas com os Estados Unidos, ambos se temiam. Outrora, depois de D. João II, o planeta esteve dividido entre Portugal e a Espanha, através do Tratado de Tordesilhas; atualmente pertence a essas duas super-potências.

     Cândido, depois de uma breve pausa, esvaziando paulatinamente o copo de cerveja, continuou:

- Com o início da guerra colonial, em 1961, as famílias lusitanas assustaram-se deveras. Muitos jovens, sobretudo da província, fugiram apavorados. Para quê combater em Africa? – perguntavam-se!
     Buscaram terras da outra Europa: França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, etc., e também da América, sobretudo o Canadá; qualquer país seria bom, desde que houvesse paz. Preferiam o trabalho rude, bruto, quase a escravatura, a uma guerra que pouco ou nada lhes dizia.
- As gentes provincianas viram sempre o continente africano como terra de negros, para onde embarcavam alguns colonos brancos – fugidos da lavoura ingrata, da fome ruim e cíclica, com o objetivo de conseguirem alguma fortuna, o bem-estar – ou os condenados ao degredo; nunca sentiram Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, como terra portuguesa, apesar de todas as propagandas do regime salazarista... – lembrou, afoitamente, Henrique.
- É completamente verdade o que acabas de dizer. Mas voltando aos jovens que “saltaram” para o estrangeiro. Alguns desses países europeus também já tinham sentido na pele, durante quase seis anos, de 1939 a 1945, a guerra vil e madrasta. Por isso, os seus naturais, compreendiam os portugueses que assim procediam. Por outro lado, precisavam deles, da sua energia, para reconstruírem os seus destroçados países. Os lusos, incultos, não eram exigentes, quer no salário, quer no trabalho a executar, obedeciam com facilidade, olhos sempre baixos, humildes, tornando-se, por isso, simpáticos aos olhos dos seus patrões. Sabes que ainda há pouco tempo li, num jornal antigo, que desde 1845 vem consignado na nossa legislação o princípio da obrigatoriedade do ensino primário; a monarquia tropeçou sempre na dificuldade de não poder tornar efetivo esse princípio, dando motivo a que uma representante da França junto da Corte portuguesa comunicasse ao seu país que a monarquia portuguesa mantinha sistematicamente o povo na ignorância. A República, em 1910, tendo ao leme o Dr. Afonso Costa, trouxe novo dinamismo ao país, nessa e noutras áreas, mas foi sol de pouca dura…

     Nova pausa, mais uma imperial, acompanhada de tremoços, porque o marisco, o verdadeiro, não o do Eusébio, era caro. De repente, Henrique pergunta:

- E você, Cândido, por que não emigrou?

     Colhido de surpresa, titubeou, mas acaba por responder:

- Eu… bem, não tendo os dez mil escudos para o passador, isto é, para a pessoa, ou pessoas, que se encarregavam de levar para o estrangeiro os candidatos a emigrante, clandestino claro está, lá vou, como um tenro cordeirinho, gado sob a canga do dono, à inspeção militar, ficando, como seria de esperar, apurado para todo o serviço.

     E continuou, emocionado:

- Em Janeiro de 1965, cabeça rapada…

     Aqui, Henrique interrompeu-o, para lhe perguntar:

- Era obrigatório, nesse tempo, ir sem cabelo algum?

     Cândido riu-se, e respondeu-lhe:

- Não! Eu não quis entregar o meu basto couro cabeludo a um qualquer barbeiro improvisado, daqueles que se geravam no quartel. Na minha terra havia bons barbeiros, mais competentes, mais humanos. Na tropa, segundo me tinham informado, o soldado ficava a sangrar que nem um porco no dia da matança!
- Estou a ver… observa Henrique, com um longo sorriso nos lábios.
- … Levava a guia de marcha na algibeira, nas mãos carregava uma pequena e retangular mala de cartão. Coitada, para ela este acontecimento vinha em boa hora, pois viajara tão pouco!               

     Henrique, irónico, pergunta:

- E a barba, ia com ela à Fidel?

     Cândido responde com alguma tristeza:

- Pobre de mim! Era imberbe! Ela apareceria, timidamente, como as frutas serôdias: fora do tempo! Mas continuemos: - deixo a minha querida cidadelha, amargurado, lágrimas nos olhos…
     Não te rias, chorei mesmo! – e entro na camioneta que me transportará até à estação do caminho de ferro, em Monção; aí tomo o comboio descendente, que me levará até à cidade invicta.
- Deve ser uma sensação estranha – diz Henrique, como falando para si próprio.
- Podes crer que é. No percurso vou encontrando outros recrutas, mancebos, com os quais, timidamente, enceto conversa e início de forte ou efémera amizade. Futuramente serão, tal como eu, conhecidos e chamados pelos topónimos das suas terras de nascimento, ou pelos respetivos números de caderneta. Chegados à grande cidade do norte, já amigos, lá vamos para o quartel em grupo. Algumas pessoas do povo, ao verem-nos passar, comentam com ar compassivo: «mais carne para canhão – infelizes!»

     Henrique, silencioso e atento, pensava para si mesmo que bom fora ter nascido uns anos depois; quando a guerra terminara tinha ele dezassete anos. Como estudante, ainda experimentara alguns dissabores, mas nunca fora preso, felizmente. Curioso, perguntou:

- Como sabiam onde ficava o quartel?
- Não sabíamos; íamos perguntando aos tripeiros, pelo caminho. Lá chegados, atabalhoadamente, apresentámos as nossas credenciais a um homem fardado, com divisas, mais tarde soubemos que era sargento. À primeira impressão, pareceu-nos arrogante e autoritário, com o rei na barriga. Dá-nos as primeiras ordens, que soam a duras chicotadas: «Para a parada, formar imediatamente.»
     Assustados, como raposas acossadas, sem sabermos bem o que era a formatura, embora alguns na escola já tivessem andado na mocidade portuguesa, obedecemos prontamente, como autómatos. O sargento equivalia a uma espécie de tratador de animais no circo – tentava domesticar-nos para depois nós nos ajoelharmos doce e passivamente perante ele e demais superiores, cumprindo as suas ordens sem pestanejar. Mais tarde viemos a saber que havia dois tipos de sargentos: os que tinham alguns estudos e aqueles que apenas tinham a quarta classe.
- E qual era a diferença? – pergunta Henrique, com imensa curiosidade.
- A diferença é abismal. Os primeiros entravam na tropa como cabos milicianos; depois da recruta e especialidade passavam a furriéis milicianos; no fim do serviço militar, por várias razões, entre elas terem gostado daquela atividade, ou aspirarem a postos elevados nas Forças Armadas, requeriam a sua continuação e passavam a sargentos – normalmente atingiam o máximo nesta classe, e alguns deles chegavam mesmo a oficiais. Andavam quase todos nas secretarias.

     No caso dos segundos, os que apenas podiam apresentar a terceira ou quarta classe do ensino primário como habilitações, ingressavam na tropa como simples soldados recrutas. No final do serviço militar, sem qualquer expectativa de futuro, a não ser voltarem para o campo ou para a fábrica, faziam um requerimento e ficavam na tropa. Passavam primeiramente a cabos e só mais tarde, muitos anos depois, após concurso, a sargentos – mas muitos deles não conseguiam chegar lá! Eram conhecidos por “chicos” ou “lateiros” e raramente iam para os serviços administrativos; a maior parte dava instrução aos recrutas, ou eram motoristas de um oficial superior. Eram pouco cultos, salvo raras exceções. Eram estes que davam ordens por tudo e por nada aos magalas!  // (continua)...

terça-feira, 26 de maio de 2015



ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
(e outros)

                                                Por Joaquim A. Rocha


A Nossa Querida Vila de Melgaço


     Agosto de 1990. Melgaço. Poucos dias de férias. O suficiente porém para rever amigos: os «ladrões» de fruta e os outros, os meninos bem comportados! O Tónio de Oliveira, o Mário Alves de Melo, que já não via há vinte e tal anos, o Zé Araújo – sempre belicoso, com os seus famosos murros, mais portentosos do que os terríveis pontapés de Charlie Brown. Também os filhos do senhor Augusto Igrejas: o “Pirata”, o Tónio, que foi meu colega no antigo Grémio da Lavoura (como passaram depressa estes trinta anos!).
     A nossa querida Vila de Melgaço em Agosto. Tão linda… e tão porquinha! Senhor Presidente da Câmara: então essa limpeza? As ruas em Agosto cheiram mal que tresandam. E a água? Existe sim, mas no rio. Não é longe da Vila, mas não dá jeito lá ir. Embelezar a avenida principal… tudo bem, mas a água! Ela é um bem fundamental e quem vai passar férias à sua terra não pode, nem deve, ficar dela privado, estar sujeito a carências primárias. Dizem-nos que para o ano teremos o precioso líquido em abundância. Promessas são fáceis de fazer, o seu cumprimento é, porém, mais difícil. É verdade que os anteriores presidentes da Câmara Municipal pouco fizeram nesse sentido; – infelizmente para todo o concelho nada, ou pouco fizeram, seja no que for! A desculpá-los, apenas a falta crónica de dinheiro; sem o vil metal não há obras. A imaginação por si só não chega. Contudo, o aprumo, a honestidade, o amor à terra natal, podem conseguir milagres. Os melgacenses têm que estar atentos ao que se vai passando e devem criticar tudo aquilo que está a ser mal feito. Não há verdadeiro progresso sem uma crítica saudável.
     Apesar de tudo trouxe, este ano, ótimas recordações do torrão natal. Em primeiro lugar o ter estado com os meus familiares e amigos. Em segundo lugar, o ter assistido à festa da cultura: o artesanato, o folclore, o desfile de carros alegóricos, as exposições de pintura... Penso que essa manifestação cultural deve prosseguir, cada ano com mais entusiasmo. De Melgaço trouxe igualmente, além das recordações, alguns livros: «O Mosteiro de Fiães», do senhor padre Doutor José Marques (livro extraordinário, sobre o qual me debruçarei com mais tempo e ciência oportunamente); «Heráldica Melgacense – Associativa, de Domínio e Eclesiástica», dos senhores Doutores Maria de Jesus Domingues e Armando Barreiros Malheiro da Silva (obra inserida nos cadernos da Câmara Municipal de Melgaço – é o 5.º a ser publicado). Iniciativa deveras louvável, visto que tenta recuperar tesouros culturais que, de outro modo, se perderiam para sempre ou seriam simplesmente ignorados. Em fotocópias consegui «Melgaço e as Invasões Francesas», do senhor Dr. Augusto César Esteves (era o único livro da sua obra que me faltava). O senhor padre Lourenço, há pouco tempo falecido, disse-me certa vez que tinha alguma bibliografia sobre Melgaço. Bom seria que alguém providenciasse no sentido de preservar esses livros e documentos, pois já são raros e para o concelho de Melgaço, para a sua história, têm imenso valor. Outro livro que adquiri com muito gosto foi «Poesia Popular», de Francisco Augusto Igrejas. Com alguns poemas datados, é certo, mas cheios de graça e humor. Ter-se-ia inspirado nos Cancioneiros Medievais, sobretudo nas cantigas de escárnio e maldizer? É verdade que a obscenidade aqui não tem lugar, apenas pinceladas de ironia. Além dos poemas de “maldizer” existem no livro poemas sérios, de sentimento profundo.

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 927, de 1/11/1990.

domingo, 24 de maio de 2015

GENTES DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha

MORAIS, Manuel (Maestro). Filho de João Lúcio Rodrigues de Morais, mestre sapateiro, e de Maria Besteiro, doméstica, moradores na Portela de Paderne. Neto paterno de Francisco António Rodrigues de Morais e de Mariana Rodrigues; neto materno de Manuel José Besteiro e de Maria Joana de Castro. Nasceu em Paderne de Melgaço a 4/4/1890 e foi batizado no dia seguinte. Padrinhos: os seus avós maternos, rurais. // Ainda criança, partiu para a Casa Pia, em Lisboa, onde aprendeu música e tirou o Curso Comercial. // Ingressou no exército, e depois na marinha de guerra, onde chegou a 1.º sargento músico. // Em 1921 foi reformado, talvez por motivos de saúde. Veio então para a sua terra natal, onde dirigiu várias bandas musicais com enorme êxito. Soube transmitir a sua arte a muitos melgacenses e deu enorme prestígio ao concelho. Quer na Galiza, quer no norte de Portugal, toda a gente gabava a banda de Mestre Morais. A imprensa nunca lhe regateou elogios, e bem merecidos que eles eram. Por falta de dinheiro, e de iniciativa, não se gravaram as suas maravilhosas interpretações, pelo que à medida que aqueles que o conheceram vão morrendo a sua memória vai-se esfumando, e daqui a algum tempo, não longínquo, ninguém saberá que o extraordinário Mestre Morais existiu. É pena que se torne efémero, até mesquinho, aquilo que um dia foi grandioso e agradável. // Casara na 6.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, a 12/10/1919, com Dina dos Santos Lima, divorciando-se por sentença de 20/7/1924, transitada em julgado no 2.º juízo de Direito da 2.ª Vara Cível de Lisboa, Cartório do 1.º ofício, com fundamento no n.º 42 do art.º 4.º do decreto de 3/11/1910. // A 2/2/1933 já dirigia a banda de música dos Bombeiros Voluntários de Melgaço; nesse dia animaram a festa da Senhora das Candeias, em Remoães; no dia seguinte abrilhantaram a festa da Senhora da Orada, na Vila (Notícias de Melgaço n.º 182, de 5/2/1933). // A 30/5/1937, morador no lugar de Bacelo, Paderne, é exequente num processo em que são executados António Pereira e sua mulher, Júlia Rodrigues de Morais, lavradores, residentes no mesmo lugar; nesse dia iriam à praça alguns bens do casal citado «para pagamento da quantia de 3.200$00.» (*) Matrimoniou-se em segundas núpcias, a 19/3/1947, com a sua sobrinha, Emília Alves de Castro, de quem teve geração. // Faleceu em Paderne a 3/5/1971. // Pena é que a Câmara Municipal de Melgaço não atribua o seu nome a uma das ruas da Vila.     

     /// (*) Sobre este assunto ver Notícias de Melgaço n.º 417, de 16/10/1938


sábado, 23 de maio de 2015

OS MEUS SONETOS

                                           Por Joaquim A. Rocha

pintura sobre azulejo, de Rama


CAMÕES


Grande Camões, poeta, espadachim,
Atrevido galã, aventureiro,
Percorreste quase o mundo inteiro
Para trazer teus versos até mim.

Noutras terras viste o bom, o ruim,
Cantaste glórias do país primeiro,
Deste a Portugal o lugar cimeiro,
E às mulheres um amor sem fim.

Os deuses trouxeste para o palco,
O poderoso Zeus, Apolo, Atena;
O juiz dos mortos, rei minóico…

Depois, voando nas asas dum falco,
Numa mão a espada, noutra a pena,
Salvaste da ruína o poema heróico.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

TRÊS ROMANOS VISITAM BRACARA AUGUSTA




       Octaviano Augusto, primeiro imperador de Roma, permitiu a estes três cidadãos visitarem a cidade por si fundada. Logo que chegaram, viram muita gente a fumar: homens e mulheres. Correram logo para um quiosque e compraram um maço de tabaco. Um deles não gostou. Falei com eles, em latim obviamente, e disseram-me que vão levar o vício para Roma. E as imagens nos maços não os chocaram? - perguntei-lhes. - «Qual quê! Os romanos não se intimidam com tão pouca coisa!»  



quinta-feira, 21 de maio de 2015

ANEDOTAS

Por Joaquim A. Rocha




     Diz o Ricardo para o amigo, depois de comer como um alarve:
- Acabei de matar a fome!
     O Zé, sempre pronto a ironizar, comenta:
- Por tua culpa anda a Emília a queixar-se que só come por comer, nunca tem fome. Pudera! Mataste-a.
     O Ricardo, que nunca se dava por vencido, brinca:
- Deixa lá; ela ressuscita!
                                                                                                   23/3/2011

*

     Diz o comerciante para o seu empregado mais novo:
- Leva esta mercadoria a casa da dona Rosa; mas vai num pé e vem noutro.
     O moço fica um bocadinho a pensar e responde:
- Não posso, patrão – só tenho um pé!

                                                                                                       28/4/2011


terça-feira, 19 de maio de 2015

MACRÓBIOS




     Os macróbios eram um antigo povo da Etiópia; destacavam-se dos demais pela sua longevidade. Talvez Cristina Teresa de Jesus, negra, solteira, que morreu no Brasil em 1916 com 150 anos de idade, descenda desse povo (ver Correio de Melgaço n.º 191, de 19/3/1916). Este artigo tem por fim dar a conhecer aos meus leitores os melgacenses de nascimento, ou aqueles que fixaram a sua residência no concelho, que quase chegaram ou ultrapassaram os cem anos de vida. Não são muitos, e nem todas as freguesias tiveram esse privilégio. Quero no entanto destacar a freguesia de Alvaredo, onde parte dos seus habitantes atinge uma idade invejável. Desconheço o segredo que permitiu que essas pessoas vivessem tantos anos, mas estou em crer que nenhuma delas fumava, não ingeriam bebidas alcoólicas nem comida em excesso; dormiriam tranquilas as suas oito horas todas as noites, não abusariam de medicamentos, etc. Teriam, quanto a mim, uma vida simples, mais de acordo com a mãe natureza. Quando comecei a investigar sobre a longevidade dos melgacenses não esperava encontrar tantas pessoas com cem ou mais anos de idade. Foi uma surpresa agradável. Isso prova-nos que uma vida simples, uma alimentação equilibrada, natural, permite que nós vivamos mais uns bons anos, e com alguma qualidade. Nem toda a gente consegue essa proeza, os organismos dos humanos não são todos iguais, as doenças surgem, e nem os cuidados médicos, nem os remédios, conseguem por vezes evitar o nosso precoce fim. Quase todas as pessoas aqui estudadas pertenceram ao mundo rural, o que de imediato nos indica que a vida do campo, apesar de bastante dura, e por vezes ingrata, também tem as suas compensações, as suas vantagens. Viver na cidade, no meio urbano, provoca quase sempre cansaço espiritual, o chamado «stress». Os empregos na banca, nos escritórios, etc., com aqueles horários rígidos, tornam-nos todos iguais, quase máquinas. Luta-se por um lugar de chefia, um aumento de ordenado, um favor especial. Depois vem a aposentação, o banco do jardim, a esplanada do Café, o jogo de cartas, a frustração. No mundo rural não se espera: age-se. Há sempre que fazer; as sementeiras, o gado, as podas, as vindimas, as desfolhadas, tanta, tanta coisa para fazer, Não há ociosidade. A nova agricultura exige conhecimentos; o analfabetismo pertence ao passado. É provável que alguns nomes não surjam aqui, embora a pesquisa tenha sido exaustiva, mas, como é hábito dizer-se, nada é perfeito. Se algum dos leitores conhecer alguém do concelho, ou que nele resida, ou residiu, com idade avançada, agradecia que me transmitisse essa informação. Sei que este assunto diz respeito a todos os seres humanos, porém apenas meia dúzia se interessará por ele. Na juventude não ligamos muito à maneira como vivemos, julgamos ser eternos, nada nos afeta, nenhuma coisa nos perturba. No entanto, à medida que vamos avançando na idade, verificamos que as asneiras que fizemos quando éramos novos, prejudicaram sobremaneira o nosso organismo. A velhice não é uma doença, mas uma consequência; os anos passaram e o nosso corpo foi sentindo o desgaste. É natural. A natureza é sábia, não quer seres frágeis no seu seio; elimina-os para dar lugar a outros seres mais fortes, mais vigorosos. A nós resta-nos aceitar essa evidência e essa regra. Apesar de todas as mezinhas, medicamentos sofisticados, operações plásticas, e outros truques mais ou menos subtis, jamais conseguiremos enganá-la. Contudo, e sem falsos moralismos, podemos e devemos levar uma vida saudável, que nos permitirá, na maioria dos casos, ter um resto de vida com alguma qualidade. Tal como descontamos, quando estamos no ativo, para a nossa aposentação ou reforma, também devemos poupar um bocadinho das nossas energias para quando elas começarem a faltar. Obrigar a “máquina” a trabalhar ininterruptamente, cansa-a e desgasta-a precocemente. Vejamos então as pessoas que alcançaram os cem ou mais anos de idade:
     

ALVAREDO


ALMEIDA, Maria Augusta. Filha de Manuel Martins de Almeida e de Bernardina da Conceição. Nasceu no ano de 1915 na freguesia de Pessegueiro, concelho de Pampilhosa da Serra. Casou com António Alves. Morou em Alvaredo, em casa de uma filha casada, e depois esteve internada algum tempo no Lar Pereira de Sousa, freguesia de Vila-Rouças, onde terminou os seus dias. Faleceu no Lar a 2/2/2015, com cem anos de idade. Foi sepultada no cemitério de Alvaredo, Melgaço.

CARVALHO, Daniel. Filho de António de Carvalho, natural de Cousso, e de Petronila Besteiro, de Alvaredo, lavradores, residentes nesta última freguesia, no lugar de Ferreiros. Neto paterno de Maria José de Carvalho, solteira; neto materno de João Besteiro e de Florinda Rosa de Araújo. Nasceu em Alvaredo a 28/2/1886 e foi batizado a 1 de Março desse ano. Padrinhos: José Joaquim Lamas, viúvo, e Albina Besteiro, solteira. Casou com Josefina, de 19 anos de idade, de São Pedro, Funchal, filha de Manuel Simões Dias Saquete (?) e de Felizarda Belisanda. O casamento civil decorreu em casa particular, no Funchal, a 24/5/1913. A sua esposa faleceu no Funchal a 12/12/1977. Ele morreu a 27/2/1986 em São Martinho, Funchal. No dia seguinte à sua morte completaria cem anos de idade.


ESTEVES, Isabel Maria. Filha de Amaro Esteves e de Ana Rosa, lavradores, naturais de Penso. Nasceu em 1755, ano do terramoto em Lisboa. Casou com João Manuel Rodrigues. Era lavradeira e morou no lugar do Coto, Alvaredo. Faleceu de repente, na casa de Faustina Rodrigues, sita no dito lugar do Coto, a 1/12/1867, com cento e doze anos de idade, no estado de viúva. // (continua)...

domingo, 17 de maio de 2015

AS MINHAS QUADRAS

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Luís Filipe Gonzaga Pinto Rodrigues
(melgacense) 


2
A quadra popular
Tem muito que se lhe diga
Aquela dá que pensar
Com outra faço cantiga

3

Eu tenho quadras feitas
Ao gosto de toda a gente;
São brejeiras, imperfeitas,
Uma ri-se, outra mente.

4

Ó vate António Aleixo,
Quem me dera teu talento;
«Este livro que vos deixo»
Há-de ser o meu sustento.

sábado, 16 de maio de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves


(continuação)...

     O processo correu no Juízo da Ouvidoria de Barcelos e foi motivo do pleito a deselegância do abade recusar à Câmara um jantar em dia de Fiéis de Deus, processo que, em recurso, subiu à Relação do Porto e, afinal, veio a ser transaccionado em 1708, reconhecendo o sacerdote a obrigação de honrar a Câmara com o referido jantar enquanto gozasse o benefício paroquial.
          Ora foi só nos princípios de Junho daquele ano de 1707, que o capitão Frei Domingos Gomes de Abreu deu os primeiros passos para cumprir o seu voto, pedindo licença eclesiástica para construir a referida capela no sítio do Coto da Pedreira, fora das muralhas, na antiquíssima freguesia de Santa Maria do Campo, naquele lugar aonde costumavam ir os clamores da sua paróquia e onde havia apenas uma cruz; faria a obra à sua custa, pôr-lhe-ia os ornatos necessários e nomear-lhe-ia bens livres, dízimos a Deus, que, segundo avaliação de louvados, valessem o melhor de dois mil cruzados. Tinha escolhido bem o sítio: alto, de largos horizontes, dele abrangendo a vista um panorama alegre; mas como era público e baldio, precisou o capitão Domingos Gomes de Abreu, já então meirinho proprietário da vila de Monção e seu termo, de pedir à Câmara Municipal lhe desse o necessário consentimento e licença «por ser para veneração do culto divino», como elucidou, licença que lhe foi concedida em 21/1/1713.
          Passaram-se anos. Em 19/3/1725, em Melgaço e nas suas casas de morada, perante o tabelião António Gomes de Abreu e as testemunhas Jerónimo Gomes de Magalhães, Padre Francisco de Abreu Magalhães e António de Magalhães e Abreu, todos dos arrabaldes, Frei Domingos Gomes de Abreu e sua mulher, D. Isabel de Faria, mandaram lavrar a escritura da fábrica da capela de Nossa Senhora da Pastoriza, nomeando-lhe e hipotecando-lhe a sua quinta chamada «O Louridal» - vinte campos e lameiros e soutos, dízima a Deus, sem foro nem pensão, que levaria de semeadura cem alqueires de centeio; a vinha da Pigarra – quatro cavaduras; a Horta de Marrocos, a metade das suas casas de morada nesta Vila de Melgaço e em 8 de Agosto do mesmo ano, por provisão escrita em Braga, D. Rodrigo de Moura Telles, Primaz das Espanhas, concedeu-lhe licença para edificar e erigir a capela e em 31/7/1727 a licença para o abade de Rouças a benzer. // Estava já construída de pedra e madeira, forrada e rebocada, com o seu altar de talha ao moderno, a imagem da Senhora da Pastoriza no centro e vários santos em nichos e peanhas, pelo que, em 17/8/1727, o Padre Manuel da Cunha Lira, abade da referida freguesia de Rouças, a benzeu e nela cantou missa.
          Assim fora o pai. Combatera e rezara. E quem tinha exemplos destes em casa e timbrava em nortear por eles a sua vida de cidadão podia bem dispensar-se de seguir as lições dos outros. O cunhado principiara a contar os feitos do Porto, mas ao mesmo tempo dava as últimas notícias do movimento espanhol, como bom e exaltado patriota, que era. Mas se o galego era patriota, nas veias do melgacense girava sangue daqueles dois militares briosos e heróis nas lutas pela integridade e independência do torrão natal. Mourentão bem o sabia. Tinha-o presenciado em 1706 e, como entre tantos sobressaíra o avô do seu cunhado, Frei Domingos Gomes de Abreu. Vale a pena rememorar o histórico feito de então, como homenagem às antigas virtudes melgacenses e como um nobre exemplo a apontar às gerações de hoje. Do Nobiliário Melgacense ([1]), um trabalho em preparação, destinado tanto a provar parentescos como a salvaguardar documentos, transcrevemos por isso as linhas seguintes:

          «E logo a seguir, em 25 de Maio, porque o Governador da Praça de Melgaço, António de Abreu Novais, mandou ao mesmo capitão-mor guarnecer o posto do Salto e este aí soubesse, por aviso recebido, que o inimigo vinha atravessar o Minho no sítio do Ponto de S. João de Remoães, logo ordenou ao capitão Frei Domingos o seguisse com a sua companhia.
          A ordem cumpriu-a logo o fidalgo, guarnecendo todos os pontos com boa disposição, rondando-os pessoalmente toda a noite e dando parte ao seu superior dos movimentos do inimigo. Na madrugada do dia seguinte, sentindo a força adversa trabalhar perto da água para assentar baterias, aquartelou os seus soldados nos melhores lugares por ali espalhados e com o intuito de lhe dificultar os movimentos, impedir-lhe o passo e ofendê-la, causando-lhe baixas, começou a dar-lhe muitas cargas de mosquetaria. Como o inimigo ripostasse fortemente, o Capitão Domingos Gomes de Abreu mandou dar parte do sucedido ao seu Capitão-mor, Pedro de Sousa Gama, ao Mestre de Campo Jácome de Brito e Rocha e ao Governador da Praça de Melgaço e pedir-lhes munições e reforços. // O capitão-mor foi o primeiro a chegar ao local e admirou então o seu considerável valor, atacando o inimigo que lhe apresentava seis bandeiras de guerra! – uns mil e duzentos homens! Durou este combate desde 26 de Maio a 8 de Julho, dia em que os galegos retiraram, levando consigo muitos feridos e, deixando no campo, muitos mortos. Frei Domingos Gomes de Abreu tinha-se coberto de glória em muitos dias desse grande e demorado combate

                                                                (continua)...

[1]  Viria a receber posteriormente o título, dado ainda pelo Autor, de O Meu Livro das Gerações Melgacenses. / Obra editada postumamente em dois volumes como edição de sua nora.