terça-feira, 5 de maio de 2015

   

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)     

  romance
                                                                Por Joaquim A. Rocha


A guerra assemelha-se a Cila: «um monstro eterno, terrível, doloroso e feroz, contra quem não se pode lutar, nem há defesa possível.»
                                                                    Homero                


         
      Porque há guerra? De uma maneira geral, quem a provoca fica na retaguarda, a enriquecer com os chorudos negócios que então se fazem. Nas fábricas labuta-se incansavelmente para produzir armas, munições, máquinas poderosas, instalações militares; nos laboratórios investigam-se novas armas mortíferas; nos campos trabalha-se sem descanso a fim de obter alimentos para as tropas. Enfim, tudo mexe, tudo se consome, e os empresários sem escrúpulos vão aumentando o seu pecúlio, tornam-se senhores do mundo! E o povo? Esse morre aos milhões, pelo canhão, pela fome e pela doença. As consequências de uma guerra prolongam-se por muitos anos. E agora, com as terríveis bombas atómicas, até o próprio planeta está em risco! E depois dizem que há deuses? Onde estão eles? Se os houvesse não permitiriam, com certeza, tais atrocidades contra os seres vivos, contra a natureza. Não, não existem. Ninguém tenha ilusões a esse respeito.
     As religiões também beneficiam com a guerra! É nessas ocasiões que aliciam mais pessoas, descrentes do humano; viram-se para o além, para uma suposta tábua de salvação, e abraçam a primeira igreja que lhes surge no caminho. Depois são sugados até ao tutano! E as revoluções proletárias não vingam, porque no seio dos trabalhadores há sempre aqueles que logo que começam a ver a cor ao dinheiro vestem outra casaca, passam para o campo oposto. Querem poleiro, e quando se apanham na mó de cima, parecem outros, já nem sequer reconhecem os antigos colegas. Tornam-se anti socialistas ferrenhos e terríveis capatazes! Vendem a alma ao diabo, tal como Fausto. Não conhecem a coerência e muito menos a honestidade de princípios. Enfim, o ser humano é volúvel, bailarino, incapaz de percorrer um só caminho. Anda aos ziguezagues, como a cobra, e como o réptil vai lançando o seu veneno aqui e ali, provocando a morte aos mais incautos.
  Todos aqueles que são contra a guerra unam-se, previnam-se, não se deixem iludir pelas palavras do general, do político, do empresário ganancioso, ou até do filósofo da desgraça. Não aceitemos a diabólica frase «se queres a paz faz a guerra!» Não! A guerra jamais resolverá os nossos problemas; só traz malefícios, atrasa o desenvolvimento, embrutece.


1.º Capítulo


     
     Estávamos no início da primavera. Era domingo. Numa mesa da esplanada de um velho Café, no Rossio, o Café Suíça, famoso em Portugal e mesmo além fronteiras, dois homens conversavam animadamente. Um era alto, muito jovem ainda, e o outro mais velho, de estatura média, olhar melancólico. Ali perto via-se o Teatro D. Maria II, bastante danificado, a precisar de obras urgentes, indivíduos de raça negra vendendo alguns produtos exóticos, e não só; do outro lado estava o Café Nicola, onde Bocage, segundo dizem, passava horas, contando anedotas e lendo alguns dos seus mais picantes, até obscenos, poemas. Um dos conversadores distraiu-se momentaneamente ao passar muito perto uma bela alfacinha. Apercebendo-se da falta, da descortesia, solicita:

- Perdão! Dizia-me você, amigo Cândido…
- Dizia-te eu, caro Rique, que em hoje em dia a vida militar, a chamada tropa, é quase uma brincadeira, e ainda bem, comparada com a que existia antes de 25 de Abril de 1974. A guerra que se travou durante treze longos anos entre as forças armadas portuguesas e as guerrilhas das ex-colónias: Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, determinava métodos de treino exaustivos, por vezes até violentos, obrigando o manso soldado a ser uma espécie de legionário romano, um samurai, agressivo, pois a vida que ele iria enfrentar em África seria de facto muitíssimo exigente, excecional mesmo! Dois e três dias sem quaisquer alimentos (as rações de combate, compostas por conservas de carne e peixe, poucos as conseguiam tragar, devido em parte à sua má qualidade; apenas se aproveitava o leite com chocolate e as bolachas, embora estas fossem muito secas), e somente um litro de água para o mesmo período (a água que se encontrava pelo caminho era péssima e ainda por cima podia conter veneno, ali colocado pelo inimigo); caminhadas sem fim, por matas densas e perigosas; calor abrasador e constante… Enfim, o sofrimento humano na sua máxima expressão.
         Tudo por causa de um regime míope, fora do tempo e da lógica – um regime cem por cento absurdo, cujos protagonistas: Salazar, Caetano, e seus acólitos, servindo de péssimos conselheiros, não souberam, ou não quiseram, ver as realidades, acompanhar o progresso das nações. Condenaram à morte e ao padecimento infame, ignominioso, milhares e milhares de jovens, e levaram o luto a muitas e muitas casas portuguesas e africanas. 

                                                                 (continua)...

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