ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance
Por Joaquim A. Rocha
A guerra
assemelha-se a Cila: «um monstro eterno,
terrível, doloroso e feroz, contra quem não se pode lutar, nem há defesa
possível.»
Homero
Porque há guerra?
De uma maneira geral, quem a provoca fica na retaguarda, a enriquecer com os
chorudos negócios que então se fazem. Nas fábricas labuta-se incansavelmente
para produzir armas, munições, máquinas poderosas, instalações militares; nos
laboratórios investigam-se novas armas mortíferas; nos campos trabalha-se sem
descanso a fim de obter alimentos para as tropas. Enfim, tudo mexe, tudo se
consome, e os empresários sem escrúpulos vão aumentando o seu pecúlio,
tornam-se senhores do mundo! E o povo? Esse morre aos milhões, pelo canhão, pela
fome e pela doença. As consequências de uma guerra prolongam-se por muitos
anos. E agora, com as terríveis bombas atómicas, até o próprio planeta está em
risco! E depois dizem que há deuses? Onde estão eles? Se os houvesse não
permitiriam, com certeza, tais atrocidades contra os seres vivos, contra a
natureza. Não, não existem. Ninguém tenha ilusões a esse respeito.
As
religiões também beneficiam com a guerra! É nessas ocasiões que aliciam mais
pessoas, descrentes do humano; viram-se para o além, para uma suposta tábua de
salvação, e abraçam a primeira igreja que lhes surge no caminho. Depois são
sugados até ao tutano! E as revoluções proletárias não vingam, porque no seio
dos trabalhadores há sempre aqueles que logo que começam a ver a cor ao
dinheiro vestem outra casaca, passam para o campo oposto. Querem poleiro, e
quando se apanham na mó de cima, parecem outros, já nem sequer reconhecem os
antigos colegas. Tornam-se anti socialistas ferrenhos e terríveis capatazes! Vendem
a alma ao diabo, tal como Fausto. Não conhecem a coerência e muito menos a
honestidade de princípios. Enfim, o ser humano é volúvel, bailarino, incapaz de
percorrer um só caminho. Anda aos ziguezagues, como a cobra, e como o réptil
vai lançando o seu veneno aqui e ali, provocando a morte aos mais incautos.
Todos aqueles que são contra a guerra unam-se, previnam-se, não se deixem iludir
pelas palavras do general, do político, do empresário ganancioso, ou até do
filósofo da desgraça. Não aceitemos a diabólica frase «se queres a paz faz a
guerra!» Não! A guerra jamais resolverá os nossos problemas; só traz
malefícios, atrasa o desenvolvimento, embrutece.
1.º Capítulo
Estávamos no início da primavera. Era domingo. Numa mesa da esplanada de um velho Café, no Rossio, o Café Suíça, famoso em Portugal e mesmo além fronteiras, dois homens conversavam animadamente. Um era alto, muito jovem ainda, e o outro mais velho, de estatura média, olhar melancólico. Ali perto via-se o Teatro D. Maria II, bastante danificado, a precisar de obras urgentes, indivíduos de raça negra vendendo alguns produtos exóticos, e não só; do outro lado estava o Café Nicola, onde Bocage, segundo dizem, passava horas, contando anedotas e lendo alguns dos seus mais picantes, até obscenos, poemas. Um dos conversadores distraiu-se momentaneamente ao passar muito perto uma bela alfacinha. Apercebendo-se da falta, da descortesia, solicita:
- Perdão!
Dizia-me você, amigo Cândido…
-
Dizia-te eu, caro Rique, que em hoje em dia a vida militar, a chamada tropa, é
quase uma brincadeira, e ainda bem, comparada com a que existia antes de 25 de
Abril de 1974. A guerra que se travou durante treze longos anos entre as forças
armadas portuguesas e as guerrilhas das ex-colónias: Angola, Moçambique e
Guiné-Bissau, determinava métodos de treino exaustivos, por vezes até
violentos, obrigando o manso soldado a ser uma espécie de legionário romano, um
samurai, agressivo, pois a vida que ele iria enfrentar em África seria de facto
muitíssimo exigente, excecional mesmo! Dois e três dias sem quaisquer
alimentos (as rações de combate, compostas por conservas de carne e peixe, poucos
as conseguiam tragar, devido em parte à sua má qualidade; apenas se aproveitava
o leite com chocolate e as bolachas, embora estas fossem muito secas),
e somente um litro de água para o mesmo período (a água que se encontrava pelo
caminho era péssima e ainda por cima podia conter veneno, ali colocado pelo
inimigo); caminhadas sem fim, por matas densas e perigosas; calor
abrasador e constante… Enfim, o sofrimento humano na sua máxima expressão.
Tudo
por causa de um regime míope, fora do tempo e da lógica – um regime cem por
cento absurdo, cujos protagonistas: Salazar, Caetano, e seus acólitos, servindo
de péssimos conselheiros, não souberam, ou não quiseram, ver as realidades,
acompanhar o progresso das nações. Condenaram à morte e ao padecimento infame,
ignominioso, milhares e milhares de jovens, e levaram o luto a muitas e muitas
casas portuguesas e africanas.
(continua)...
(continua)...
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