ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
- Estou plenamente de acordo – disse Henrique, comovido.
- A teimosia, o rancor, a vaidade
torpe, o orgulho mesquinho, paralisava-lhes o sentido da visão; o coração
gélido, granítico, estiolava o seu sentir; os ouvidos moucos, barrava-lhes a
audição.
- Ainda tentaram derrubar o regime, mas
não conseguiram…
- É verdade. Houve algumas tentativas,
mas falharam estrondosamente.
- Pudera! Segundo dizem eram
anarquistas, os autores dos atentados.
- Parece que sim, pois os comunistas
recebiam ordens de Moscovo, e só atuavam de acordo com elas. A União Soviética
não desejava criar mais problemas com os Estados Unidos, ambos se temiam. Outrora,
depois de D. João II, o planeta esteve dividido entre Portugal e a Espanha,
através do Tratado de Tordesilhas; atualmente pertence a essas duas
super-potências.
Cândido, depois de uma breve
pausa, esvaziando paulatinamente o copo de cerveja, continuou:
- Com o início da guerra colonial, em
1961, as famílias lusitanas assustaram-se deveras. Muitos jovens, sobretudo da
província, fugiram apavorados. Para quê combater em Africa? – perguntavam-se!
Buscaram terras da outra Europa:
França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Luxemburgo, etc., e também da América, sobretudo
o Canadá; qualquer país seria bom, desde que houvesse paz. Preferiam o trabalho
rude, bruto, quase a escravatura, a uma guerra que pouco ou nada lhes dizia.
- As gentes provincianas viram sempre o
continente africano como terra de negros, para onde embarcavam alguns colonos
brancos – fugidos da lavoura ingrata, da fome ruim e cíclica, com o objetivo de
conseguirem alguma fortuna, o bem-estar – ou os condenados ao degredo; nunca
sentiram Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, como terra portuguesa, apesar de
todas as propagandas do regime salazarista... – lembrou, afoitamente, Henrique.
- É completamente verdade o que acabas
de dizer. Mas voltando aos jovens que “saltaram” para o estrangeiro. Alguns
desses países europeus também já tinham sentido na pele, durante quase seis
anos, de 1939 a
1945, a
guerra vil e madrasta. Por isso, os seus naturais, compreendiam os portugueses
que assim procediam. Por outro lado, precisavam deles, da sua energia, para
reconstruírem os seus destroçados países. Os lusos, incultos, não eram exigentes,
quer no salário, quer no trabalho a executar, obedeciam com facilidade, olhos
sempre baixos, humildes, tornando-se, por isso, simpáticos aos olhos dos seus
patrões. Sabes que ainda há pouco tempo li, num jornal antigo, que desde 1845
vem consignado na nossa legislação o princípio da obrigatoriedade do ensino
primário; a monarquia tropeçou sempre na dificuldade de não poder tornar
efetivo esse princípio, dando motivo a que uma representante da França junto da
Corte portuguesa comunicasse ao seu país que a monarquia portuguesa mantinha
sistematicamente o povo na ignorância. A República, em 1910, tendo ao leme o
Dr. Afonso Costa, trouxe novo dinamismo ao país, nessa e noutras áreas, mas foi
sol de pouca dura…
Nova pausa, mais uma imperial,
acompanhada de tremoços, porque o marisco, o verdadeiro, não o do Eusébio, era
caro. De repente, Henrique pergunta:
- E você, Cândido, por que não emigrou?
Colhido de surpresa, titubeou, mas
acaba por responder:
- Eu… bem, não tendo os dez mil escudos
para o passador, isto é, para a pessoa, ou pessoas, que se encarregavam de
levar para o estrangeiro os candidatos a emigrante, clandestino claro está, lá
vou, como um tenro cordeirinho, gado sob a canga do dono, à inspeção militar,
ficando, como seria de esperar, apurado para todo o serviço.
E continuou, emocionado:
- Em Janeiro de 1965, cabeça rapada…
Aqui, Henrique interrompeu-o, para
lhe perguntar:
- Era obrigatório, nesse tempo, ir sem
cabelo algum?
Cândido riu-se, e respondeu-lhe:
- Não! Eu não quis entregar o meu basto
couro cabeludo a um qualquer barbeiro improvisado, daqueles que se geravam no
quartel. Na minha terra havia bons barbeiros, mais competentes, mais humanos.
Na tropa, segundo me tinham informado, o soldado ficava a sangrar que nem um
porco no dia da matança!
- Estou a ver… observa Henrique, com um longo sorriso nos lábios.
- … Levava a guia de marcha na
algibeira, nas mãos carregava uma pequena e retangular mala de cartão. Coitada,
para ela este acontecimento vinha em boa hora, pois viajara tão pouco!
Henrique, irónico, pergunta:
- E a barba, ia com ela à Fidel?
Cândido responde com alguma tristeza:
- Pobre de mim! Era imberbe! Ela
apareceria, timidamente, como as frutas serôdias: fora do tempo! Mas
continuemos: - deixo a minha querida cidadelha, amargurado, lágrimas nos olhos…
Não te rias, chorei mesmo! – e
entro na camioneta que me transportará até à estação do caminho de ferro, em
Monção; aí tomo o comboio descendente, que me levará até à cidade invicta.
- Deve ser uma sensação estranha – diz Henrique, como falando para si próprio.
- Podes crer que é. No percurso vou
encontrando outros recrutas, mancebos, com os quais, timidamente, enceto
conversa e início de forte ou efémera amizade. Futuramente serão, tal como eu,
conhecidos e chamados pelos topónimos das suas terras de nascimento, ou pelos
respetivos números de caderneta. Chegados à grande cidade do norte, já amigos,
lá vamos para o quartel em grupo. Algumas pessoas do povo, ao verem-nos passar,
comentam com ar compassivo: «mais carne para canhão – infelizes!»
Henrique, silencioso e atento,
pensava para si mesmo que bom fora ter nascido uns anos depois; quando a guerra
terminara tinha ele dezassete anos. Como estudante, ainda experimentara alguns
dissabores, mas nunca fora preso, felizmente. Curioso, perguntou:
- Como sabiam onde ficava o quartel?
- Não sabíamos; íamos perguntando aos
tripeiros, pelo caminho. Lá chegados, atabalhoadamente, apresentámos as nossas
credenciais a um homem fardado, com divisas, mais tarde soubemos que era
sargento. À primeira impressão, pareceu-nos arrogante e autoritário, com o rei
na barriga. Dá-nos as primeiras ordens, que soam a duras chicotadas: «Para a
parada, formar imediatamente.»
Assustados, como raposas
acossadas, sem sabermos bem o que era a formatura, embora alguns na escola já
tivessem andado na mocidade portuguesa, obedecemos prontamente, como autómatos.
O sargento equivalia a uma espécie de tratador de animais no circo – tentava
domesticar-nos para depois nós nos ajoelharmos doce e passivamente perante ele e
demais superiores, cumprindo as suas ordens sem pestanejar. Mais tarde viemos a
saber que havia dois tipos de sargentos: os que tinham alguns estudos e aqueles
que apenas tinham a quarta classe.
- E qual era a diferença? – pergunta Henrique, com imensa curiosidade.
- A diferença é abismal. Os primeiros
entravam na tropa como cabos milicianos; depois da recruta e especialidade
passavam a furriéis milicianos; no fim do serviço militar, por várias razões,
entre elas terem gostado daquela atividade, ou aspirarem a postos elevados nas Forças
Armadas, requeriam a sua continuação e passavam a sargentos – normalmente
atingiam o máximo nesta classe, e alguns deles chegavam mesmo a oficiais. Andavam
quase todos nas secretarias.
No caso dos segundos, os que
apenas podiam apresentar a terceira ou quarta classe do ensino primário como
habilitações, ingressavam na tropa como simples soldados recrutas. No final do
serviço militar, sem qualquer expectativa de futuro, a não ser voltarem para o
campo ou para a fábrica, faziam um requerimento e ficavam na tropa. Passavam
primeiramente a cabos e só mais tarde, muitos anos depois, após concurso, a
sargentos – mas muitos deles não conseguiam chegar lá! Eram conhecidos por
“chicos” ou “lateiros” e raramente iam para os serviços administrativos; a
maior parte dava instrução aos recrutas, ou eram motoristas de um oficial
superior. Eram pouco cultos, salvo raras exceções. Eram estes que davam ordens
por tudo e por nada aos magalas! // (continua)...
Sem comentários:
Enviar um comentário