terça-feira, 29 de setembro de 2015

OS MEUS SONETOS
Por Joaquim A. Rocha 




SONHANDO

 Vou a Meca, cavalgando no vento,
No meio daquela enorme multidão,
Muita fé, à procura de perdão,
Tendo, sem pecar, arrependimento.

Serei pisado no esmagamento,
Atropelado na vil confusão,
Ficarei caído no duro chão,
Mas sem estar lá, nem em pensamento.

Quedo-me por aqui, por esta terra,
Não irei a Fátima, a Santiago…
Descansarei o tempo que me resta.

 Já gastei energias noutra guerra,
Já caminhei ao lado dum rei mago,
Vi estrelas bailando em louca festa.

domingo, 27 de setembro de 2015

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha


Não façais o mal, e o mal não existirá.

(desenho de Luís Filipe, melgacense)

18

És sonho que não sonhei,
Sonho jamais decifrado;
Um sonho que eu inventei
Para te ter a meu lado.

19

A morte não é pior que a vida,
Que esta é sempre sofrimento;
A morte é apenas a partida,
O adeus e o esquecimento.

20

Porque me invades tristeza,
Se de ti quero fugir;
Não tenho para ti mesa,
Nem cama aonde dormir.




sexta-feira, 25 de setembro de 2015

POEMAS DO VENTO

Por Joaquim A. Rocha





ELEIÇÕES


Por quê, povo português,
que de saber não rebentas,
enjeitas luz outra vez,
 é a noite que sustentas?

Eu não sei por que sebentas
estudas, aprendes, lês;
eu só sei que representas
este país ao invés!

De que te sonhos te alimentas?
Não de pão, que não o vês!
Que histórias doces inventas
se em histórias não crês!

Até a dor atormentas,
porque a dita não se fez
pra ser feliz nas tormentas
pra ser lobo se ela é rês!

Deixa de ser masoquista:
diz ao cérebro que veja
a legião parasita
que te suga, canga e peja!



9/10/1980

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves


...(continuação)

     O Dr. António de Castro Sousa e Meneses, depois de uma estadia de mais de seis anos na Ilha Terceira, regressou à pátria e acolheu-se à terra natal, entretendo-se a feitorizar os bens da Casa e a conversar com os letrados e os amigos. Solteirão e amante da sua terra, não perdia oportunidade para realçar as belezas de Melgaço, nem para profligar os tratantes e os canalhas. Culto e lido, não era poeta, mas fazia versos. Escrevia-se com muitos colegas e com muitos dos licenciados frequentadores de Coimbra no seu tempo de estudante. // Andam na mão de poucos melgacenses a cópia de uma sua carta, a desfazer nos melgaçofobos e só nas mãos de alguns rapazes inconscientes e de moral relaxada, cedo caídos no monturo da lascívia e da obscenidade, a cópia de um soneto atribuído ao seu estro. A carta mostra o seu bairrismo, mas o soneto era bem dispensável, porque o frade reles, ordinário e torpe, que o provocou, nunca esteve em Melgaço, por ter nascido e vivido sempre no alcouce ([1]) da mãe que o gerou.
            O Dr. António de Castro, que faleceu no dia 10/2/1828, deixando testamento apenas com disposições temporais, era homem de honra e brio e tinha fervoroso culto pela pátria e pelo torrão natal; como queria ser livre num país livre, abraçou, e só por isso, a causa da revolta e deu-lhe desde sempre todo o seu entusiasmo. Ao entrar naquela Sala do Conselho atingiu logo o fim da convocação feita pelo seu amigo e ouvindo também as confidências do fidalgo galego, tomou parte activa na conferência e, vivamente impressionado, viu-a decorrer numa atmosfera quente de patriotismo e de elevação moral. Entre aqueles quatro homens não houve uma única discrepância; nem mesmo surgiu uma sombra fugaz a empanar o brilho da conversa ou o entusiasmo da causa. Como todos quatro eram excelsos patriotas, espíritos compreensivos e inteligentes, os dois fidalgos nascidos e criados em Melgaço assumiram desde a primeira hora a direcção do movimento. O espanhol já assentara com o cunhado sobre a actuação da sua gente e o Corregedor, como homem de fora parte, havia de emprestar-lhe apenas o prestígio do seu cargo e dar-lhe todo o calor de português. Norteados por estes princípios, o fidalgo espanhol saiu logo da casa do cunhado e foi buscar a sua gente espalhada algures pelas casas dos amigos e o Corregedor despediu-se em seguida para ir em demanda dos vereadores e preparar a sessão – e solene havia de ser, pelo assunto a versar, a sessão daquela memorável tarde.
            Ao transpor os humbrais daquela casa acolhedora o Juiz de Fora ia radiante e sorria; sorria prazenteiramente ao pensar no cabeçalho dos mandados e das cartas de sentença. No resto do seu triénio nunca mais os escrivães haviam de escarrapachar nos autos: - o Dr. Filipe Osório, etc., Corregedor com exercício de Juiz de Fora nesta Vila de Melgaço, etc. «pelo Imperador dos Franceses, rei de Itália, Protector da Confederação do Reno, ed-cétera.» Naquela manhãzinha de Junho, ao regressar a sua casa, o distinto magistrado foi deixando atrás de si uma onda de pasmo e de cochichos, porque pela primeira vez o iam vendo, a ele venerando Juiz de Fora, andar pelas ruas de Melgaço sem empunhar a vara branca da justiça. Tinha-lhe esquecido; tinha-a deixado ficar na casa do fidalgo Caetano José de Abreu Soares.
           Naquela sala continuaram a conversar os dois fidalgos naturais de Melgaço, debatendo a melhor forma de alcançarem a vitória do movimento, sem contudo lhe traçarem qualquer plano. Os criados foram os elementos de ligação e, graças aos seus serviços, não tardaram a chegar ali outras pessoas. Naquela casa compareceu e se inteirou do movimento o escrivão Tomás. Tomás José Gomes de Abreu, por seu pai Leão José Gomes de Abreu, depositário das sisas nesta Vila já em 1782 e falecido em 15/4/1829 – sexta-feira santa – a dormir o sono infindo debaixo dos lajedos da capela de Nossa Senhora do Amparo, anexa à Matriz, ia entroncar, por bastardia, em Frei Domingos Gomes de Abreu Coelho de Novaes, o melgacense que combatera e rezara. Devia seguir a carreira eclesiástica, como seu irmão Bernardo, que professou na Ordem de Frades Menores, no Convento de São Francisco, da cidade do Porto, tomando o nome de Frei Bernardo de Nossa Senhora da Orada, e faleceu na Calçada em 1824.
          Seus pais, em 22/12/1787, declararam ter autorizado o filho Tomás a tomar ordens menores até completar as de missa, por ser a profissão a gosto deles e a mais apetecida pelo moço e, em consequência, fizeram-lhe o património: uma casa no Rio do Porto, uma horta no Caneiro, um circundado nos Chãos e a Coutada da Travessa, em Rouças; mas ele abandonou pouco depois os estudos eclesiásticos e apareceu-nos mais tarde tabelião do público judicial e notas e casado com D. Constança Teresa de Araújo Lima, cujos pais moravam na Rua Direita, desfazendo apenas aquela escritura de património, quando o irmão saiu do Porto e passou a viver na diocese de Braga, facilitando assim ao seu velho pai estabelecer nova côngrua para a sustentação de Frei Bernardo, na modalidade exigida pelo prelado. // Convivendo com os progenitores na Calçada, na casa hoje derruída, de São Benedito, por morte deles e do irmão ficou senhor e possuidor da casa e de dois belos campos de rega e lima, faceados por caminhos a circundá-la; da «propriedade chamada Orada, cerrada e circundada sobre si que se compõe de terras de pão e vinho com uma nascente de água dentro que parte do nascente com terras de António de Abreu Magalhães e do poente com a feira do gado desta vila em preço e quantia de duzentos mil réis», uma pequena parte, afinal, do reguengo dado por D. Afonso Henriques ao D. Abade de Fiães, João e a seus frades no nono dia das Calendas da era de 1211, ou seja em 24/10/1173; dum cerrado nos Chãos; das Pedreiras de Baixo e de alguns outros rústicos e urbanos.
          Não era rico de bens ao luar; mas tinha a subsistência da família assegurada pelos magros rendimentos do lugar público de que era serventuário, e pelas ajudas do cunhado Francisco José Pereira, comerciante do Campo da Feira de Fora. Espírito religioso, frequentou as igrejas e fez-se inscrever irmão das várias confrarias. Em 6/11/1786 tomou o hábito da Ordem Terceira de São Francisco, aqui estabelecida desde Maio de 1746, pagando de entrada 120 réis e dois meses depois do levantamento melgacense contra os franceses, na festa de São Roque, feita no Convento de Nossa Senhora da Conceição, noticiava-se ao público que Tomás José Gomes de Abreu era o novo secretário da mesa daquela Ordem Terceira.
           A sua vida decorreu no meio das surpresas dos pleitos do tribunal, no constante cuidado de fazer e assegurar os contratos dos outros e na placidez da vida caseira educando o rancho de filhos, que Deus lhe deu, futuros herdeiros não daquele comerciante, mas de sua mulher D. Ana Maria de Araújo e, como tal e por má sorte, vítimas do Tomás das Quingostas, como convence o articulado pelo distinto e hábil causídico deles nuns autos cíveis de libelo móvel contra Maria Teresa de Castro, mãe e herdeira do famigerado melgacense:

      «P. Que no ano de mil e oitocentos e vinte e seis o A[utor] Francisco José Pereira, e sua mulher, ainda viva, Ana Maria de Araújo, temendo-se das guerrilhas que naquela época ameaçavam esta Vila, aonde chegaram a entrar por vezes, deram a guardar ao Reverendo Manuel José Esteves, do lugar da Cela, do concelho de Valadares, toda a mobília e trastes preciosos, que possuíam.
       P. - Que tendo, o dito Padre Manuel José Esteves os ditos trastes e mobília do A[utor] em sua casa Tomás Joaquim Codeço, filho da Ré, associado com uns facinorosos ladrões e destemidos, de propósito e caso pensado se foram na noite de 17 para 18 do mês de Fevereiro do ano de 1827 a casa do dito Padre Manuel José Esteves, e sem que este pudesse resistir a tanta força armada lhe roubou o dito Tomás toda a mobília e trastes constantes da relação junta, que requerem se leia às testemunhas; e para que o mesmo Tomás não acabasse de roubar o mais que ali existia pertencente aos A[utores] teve o mencionado Padre de dar ao mesmo Tomás em moeda corrente a quantia de 34$080 réis que o A[utor] desembolsou para indemnizar o Padre.
      P. - Que além disso a 12/5/1828 veio o dito Tomás a casa do A[utor] e o constrangeu a que lhe desse da sua loja as fazendas e dinheiro constante da mesma relação; tornando-lhe a pedir em 25/2/1836 cinco côvados de baeta que o A[utor] teve de comprar, e lha remeteu pelo mesmo portador que a veio pedir e buscar; importando tudo na quantia de 280$100 réis, preço em que os A[utores] o estimam, ou por aquilo que se liquidarem respeito a mobília e trastes.» // (continua)...




[1] Prostíbulo ou casa pública de prostituição.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Concebido e organizado por Joaquim A. Rocha




Escritores melgacenses

     Quando comecei esta pesquisa não fazia a mínima ideia de quantos escritores houve e há em Melgaço, concelho do Alto Minho. Uma coisa tinha como certa: não seriam muitos, meia dúzia se tanto, mas enganei-me redondamente. Felizmente são mais, e alguns deles, os que já morreram, deixaram obras com muita qualidade. Quanto àqueles que ainda escrevem, vão-nos surpreendendo com bons trabalhos de escrita. Apenas vou considerar aqueles escritores que têm alguma notoriedade, editaram, ou alguém editou por eles, livros ou manuscritos, quer na área da ficção e da poesia, quer na área da investigação histórica, ou no ensaio. Vão ser colocados por ordem cronológica de nascimento. 

1 - Frei Francisco Melgaço. Nasceu numa das freguesias do concelho de Melgaço no ano de …? (não descobri até agora a data de seu nascimento). Foi religioso da Ordem de São Bernardo. Escreveu várias obras, relacionadas com a doutrina cristã, as quais não foram impressas. Os seus manuscritos (escritos em latim) conservam-se na livraria do Convento de Alcobaça, à espera de um especialista que os analise e divulgue. 
        (Informação colhida no Dicionário Histórico, Biográfico, Bibliográfico, Heráldico, Corográfico, Numismático e Artístico. João Romano Torres – Editor. Lisboa – 1903. Página 960).   

2 - Frei António de Santa Maria dos Anjos Melgaço. Nasceu no concelho de Melgaço a 17 de Junho de 1718. Foi frade franciscano. Professou no Convento de São Francisco de Lisboa a 22 de Janeiro de 1731. Fez os estudos de Filosofia e Teologia no Colégio de São Boaventura da Feira, em Coimbra, entre 1731 e 1737. Foi professor nos Estudos de Mafra (fundados por D. João V) nos anos de 1737 a 1752. Devia ser uma pessoa deveras inteligente e curiosa, pois o próprio rei o incita a prosseguir os estudos. Segue os conselhos do monarca, e em 1743 adquire um doutoramento em Teologia na Universidade de Coimbra, talvez o primeiro melgacense a conseguir tal feito. Como escritor, deixou várias obras, todas elas redigidas em latim. Uma delas tem por título «SCOTUS ACADEMICUS, seu Philosophia Peripatetica ad commodiorem regalis Academiae Mafrensis usum, juxta mentem venerabilis, subtilisque Magistri Joannis Duns Scoti.» (Tomo I, Lisboa, 1747). Por ter sido eleito provincial «da sua província», em 1751, viu-se obrigado a suspender por algum tempo a continuação da obra. O segundo volume estava em impressão apenas no ano de 1755, o qual se queimou aquando do grande terramoto. No Convento de São Francisco arderam também, nessa altura, outros escritos da sua autoria, que tinha prontos para publicação. Em 1759 publicou, completamente revisto, o tomo II do «SCOTUS ARISTOTELICUS». Os dois volumes debruçam-se sobre a «logica parva», ou seja, pequena lógica, e a «logica magna», que significa grande lógica, «e interessam para o conhecimento do movimento de ideias em Portugal no século XVIII e dos estudos na escola de Mafra». Faleceu em Vila do Conde a 14 de Agosto de 1780, com 62 anos de idade. 

     Quem desejar consultar a bibliografia pode fazê-lo em {Frei António do Sacramento, História Seráfica, sexta parte, manuscrito 703, da Torre do Tombo. / Memória da forma com que Dom João o Quinto mandou para Mafra religiosos para Lentes de Faculdade, manuscrito 801, folhas 682 e seguintes, do arquivo da casa Cadaval (Muge). / A. A. Andrade, A Orientação do Estudo da Filosofia dos Franciscanos, in Brotéria 43 (1946), páginas 43 a 45.} // (Verbo – Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, páginas 648 e 649).    

sábado, 19 de setembro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

... (continuação)

III

     O amor é como a fruta: quando amadurece cedo de mais começa a apodrecer.


     Agora, pé ante pé, vamos escutar uma das minhas conversas com a Bera ali nos subúrbios da Vila. Este idílico namoro começou quando eu abri a oficina e a mocinha acompanhava uma tia que vinha trazer calçado para consertar. Era uma jovenzinha tímida, teria dezasseis anos de idade, bonita como poucas. Os nossos olhares cruzaram-se, no rosto de ambos apareceu aquela cor rosada, denunciadora de futuros arroubos. Ouçamos então o diálogo:

- Boa tarde, Cândido, bons olhos te vejam. Até que por fim me fazes uma visita; sou eu sempre que o faço.
- Já sabes que não posso assim do pé para a mão largar a oficina para me encontrar contigo; ainda se morasses perto, mas são quase dois quilómetros! Por outro lado, tu vais lá todos os dias, hoje é que não apareceste!
- Hoje não pude, tenho a minha mãe doente de cama; tive de fazer o comer e tratar da casa. O médico já cá veio e diz que não é nada grave, dentro de dois dias já se levanta, se calhar está grávida outra vez, que ela não é nenhuma moça, mas às vezes!
- Sabes uma coisa? Falei com um emigrante e pedi-lhe uma opinião sobre a minha hipotética ida para França. Diz que eu iria ter imensas dificuldades, quer para lá chegar, quer depois quando lá estivesse, posso não aguentar aquele trabalho duro, mas também pode ser que arranje trabalho numa fábrica, aí já era mais leve. Que achas?      
- Tu é que sabes. Tens a tua oficina, ganhas pouco mas é certinho, se nos casarmos eu também ajudo, ando a aprender costura, tens a tua casa, está velha mas arranja-se, umas telhas novas, uma caiadela e pronto, fica como nova, não sei se farás bem, olha que aquilo é muito custoso, os que têm ido são pessoas do campo ou das obras, habituadas a esses trabalhos pesados, só estranham o sítio, os costumes e a língua; coitados, o francês para eles é um bicho-de-sete-cabeças, mas para além disso não lhes custa nada.
- Talvez tenhas razão, por outro lado existe a questão do dinheiro, como é que vou arranjar dez contos de réis, eu que não possuo um tostão, só vou tendo o suficiente para pagar aos fornecedores, que a esses pago sempre, olha que não lhes devo um centavo, contas são contas, até metia a cabeça num buraco se lhes devesse alguma coisa, logo que eles chegam para receber pago-lhes, tu até viste há dias, não reparaste como depressa fui buscar o dinheirinho à gaveta? E não era assim tão pouco como isso!
- Depois também a tua mãe ficava sozinha, desamparada, coitada, já está com um par de anos em cima dela, tu foste o último a nascer, vai ter um grande desgosto.
- Desgosto grande irá ela ter quando eu assentar praça, já não falta muito, e a maldita guerra até lá não acaba, não, que está para durar segundo dizem, os negros querem matar todos os brancos, pô-los de lá para fora, gritam que a África é deles. Eu preferia ir para a França, vale mais trabalhar do que lutar na guerra, posso ficar ferido ou até morrer, que vale andar aqui um tipo a trabalhar que nem um roceiro e depois deixar a pele em África, então valia mais não ter nascido, não achas?
- Também não podes ser tão pessimista, mas que as coisas não são fáceis, isso não são; ainda bem que eu sou mulher, não tenho esses problemas, que qualquer dia até elas vão para as batalhas, os homens estão a emigrar e depois não os há para a tropa, está tudo com medo da malvada, também não é para menos, e então dizem que os pretos não são para brincadeiras, olha: até mataram mulheres e crianças, uma tragédia; o jornalista na televisão falou em carnificina, deve ser qualquer coisa muito grave, não sei, e os brancos estão a fugir todos, só nas cidades é que ainda os há, segundo me disseram. 
- E tu, se eu morrer casas com outro?!
- Cruzes, canhoto! Não comeces com essas coisas. Sabes bem que só gosto de ti, desejo casar contigo, nem é bom falar disso, até dá azar; se começas a pensar assim o melhor é ires para a França, ou para outro qualquer país, o dinheiro hás-de arranjá-lo se Deus quiser, todos o conseguem, a minha família, coitada, é toda sem vintém, só se o meu primo que já lá labuta há uns anos emprestasse algum, mas são uns unhas-de-fome, só pensam neles, não ajudam ninguém, olha que a nós nunca mandou um franco sequer, e o meu pai ajudou-o muito quando ele era rapaz, deu-lhe muita malga de caldo, mas esquecem-se depressa, são uns ingratos, uns egoístas. Sabes que o meu pai também está a pensar ir? Coitado, é como tu, viveu sempre na oficina, não tem força nenhuma, não desenvolveu os músculos, não sei se aguentará, mas que se há-de fazer, vê os outros meter pé ao caminho e não lhes quer ficar atrás, esse não tem problemas de tropa, no tempo dele não havia guerra, deram-no logo desobrigado, nem chegou a vestir a farda, e diz ele que teve pena, pois a tropa é para os homens, aqueles que se livram são como as donzelas, esse complexo ninguém lho tira, agora ir para a França é como compensar esse ato, quer armar em forte, vamos é ver se aguenta, eu não acredito muito, e a vida até está a melhorar um bocadinho, tem os filhos quase criados, eu já ajudo, o meu irmão é que ainda anda na escola, mas qualquer dia já tem a 4.ª classe.

- Só se eu fosse com o teu pai, pode ser que o teu primo nos auxilie lá, nos arranje um trabalhinho leve, porque eu se vou para as obras rebento, estouro como uma castanha na brasa, mas olha que os rapazes como eu por lá andam, quem sabe? O ser humano adapta-se. // (continua)...    


quinta-feira, 17 de setembro de 2015

OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha



15

É Camões que morre, é Portugal,
Sonho de alta glória que se esvai;
E do bem que havia surge o mal,
Das feridas abertas o sangue sai.
 A língua mãe cobre-se com cal,
E a vil desonra sobre ela cai;
Das entranhas do ser o medo nasce,
Pede-se a Zeus que o rebanho pasce.

16

É a alma portuguesa que perece,
O esplendor das descobertas se apaga;
O mundo todo de nós já se esquece,
Não há mais para nós a nobre saga;
Os passados feitos já não merece,
A nobre prosa que a ação sagra.
E pra que dos vis não reze a História,
Farei dos traidores a suja escória. 

(continua)...

terça-feira, 15 de setembro de 2015

LINA - Filha de Pã
romance

Por Joaquim A. Rocha


deus Pã

1.º Capítulo


     Naquela noite de inverno, 23 de Janeiro de 1920, ninguém conseguira dormir na casa do Ti Leopoldo. Uma agitação tremenda, uma azáfama incrível, obrigara aquela pobre gente a andar de um lado para o outro: a Engrácia a ferver água, o Joaquim a correr para a Vila a chamar o médico, um bom estiraço, pelo menos quatro quilómetros, caminhos cheios de lama e pedregulhos, o Alfredo a ir buscar lenha para o lume, toda a santa noite aceso, pessoas novas, tios maternos da criança, e a Gertrudes, vizinha prestimosa, de meia-idade, a ter de ir à capoeira escolher uma galinha gorda para fazer uma rica canja para a parturiente.
     Os deuses, senhores de todo o universo, pareciam estar deveras zangados: trovões, relâmpagos, faíscas, iluminavam o céu e assustavam todas as criaturas daquela aldeia entre a serra e o vale. Aquele minúsculo ser nascia sob o signo da violência celestial.
  
- Diachos! - gritava o avô materno da recém-nascida, Ti Leopoldo, assaz nervoso. – Ninguém me escuta. Sem um verdadeiro homem a mandar nada se resolve. É como uma nave sem piloto: fica no mar à deriva.
- Que queres, homem!? A Clarita teve a criança antes do tempo. Ninguém estava preparado. Tudo se há-de resolver. Não te enerves – disse a sua cara-metade, Clotilde.

     De facto o primeiro bebé de Clara nascera aos oito meses incompletos. Era uma rapariga enfezada, desfalecida, nem feia nem bonita, cinco réis de gente. Ninguém dava um tostão furado por ela.

- Que raio de criança! – disse de si para si a parteira improvisada, a tal Gertrudes. – Não me parece que chegue ao fim do inverno.
- Que venha na graça de Deus – desejou a avó paterna, Ambrósia, que rapidamente aparecera no local para ajudar naquilo que pudesse.
- Se a mãe tiver leite nos seus peitos, ela há-de crescer como as outras. Que a Senhora da Boa Hora a proteja – pediu a tia da menina, que estivera presente desde o primeiro momento.
- Há-de protegê-la, há-de protegê-la; a santinha nunca esquece aqueles que dela precisam – afirmou a senhora Gertrudes, para agradar aos da casa, convencida de que no fim teria a sua recompensa em batatas, feijão, milho, umas chouriças, e ainda um garrafãozito de vinho.

     Entretanto chegou o médico. Vinha estafado, exausto. Aquela chuva impertinente, o vento assobiando, os caminhos todos lamacentos e estreitos, com chão irregular, faziam desistir o mais afoito. Era um homem ainda na casa dos quarenta anos, alto, aparentemente frágil, com umas mãos longas, ágeis, nariz de judeu, aquilino, e olhos penetrantes como os das águias. Naquele tempo não havia ainda estrada para aquele lugar de meia montanha. Por isso o médico percorria todas as freguesias do concelho, que eram dezoito, montado no seu lindo cavalo. Depois de um breve momento, pergunta:

- Que raio aconteceu nesta casa? Até parece que estão a velar um morto! Onde está a paciente?
- Venha por aqui, Senhor Doutor. A minha filha Clara deu à luz uma menina, mas parece fraquita. Não sei se irá resistir – lamentou-se Clotilde.

     O clínico dirige-se ao pequeno quarto, não teria mais do que seis metros quadrados, mal iluminado, apenas um candeeiro a petróleo espalhava uma luz amarelada, e pergunta à doente:

- Como te sentes? Tens algumas dores?
- Ai Senhor Doutor: acho-me muito mal, muito fraquinha.
- Anima-te, rapariga. O primeiro parto é quase sempre problemático, quer pelas dores que provoca, quer pelo receio de perder a criança, e também pela ansiedade. Não te preocupes: os seguintes vão-te custar menos. Vou aplicar-te uma injeção e já ficas bem. Depois tens que te alimentar como deve ser. Bons caldos de galinha e muito descanso. Daqui a uns dias estás como nova. Parir é normal e saudável.
- E a minha menina, senhor doutor? Acha que vai sobreviver?

     O médico pegou com cuidado na recém-nascida, analisou-a minuciosamente, e disse com alguma convicção:

- Acho que sim; mas isso vai depender muito de ti: se a alimentares com o teu próprio leite, ela sobreviverá. Para isso precisas de estar forte. Come-lhe bem. E nada de vinho, e muito menos bagaço, por enquanto. Daqui a dias já lhe podes comer umas sopas de cavalo cansado, mas não abuses.

    Quando o médico acabou o seu trabalho, despediu-se de Clara, olhou fixamente para a garotinha, e pensou: «É quase um milagre, nestas horríveis condições, esta criança vingar. Um milagre! O melhor seria sopeá-la em casa, mas não me arrisco a sugeri-lo, podem interpretar mal
     Quando se dirigia para a porta dá de caras com o Ti Leopoldo. O médico interroga-o:

- Então homem! Como vão as coisas por aqui?
- Muito mal, senhor doutor, muito mal. As chuvas não abrandam, os pastos estão todos alagados. O gado já está a ficar com fome. Se o tempo não melhorar, vai ser um ano maldito, um ano para esquecer.
- E o teu genro? Tem mandado algum dinheiro?
- Ultimamente não! Mas também lá pelo Douro, segundo dizem, as coisas não estão bem. Por todo lado miséria, pobreza, senhor doutor.
- É a República! Quiseram a República, agora aguentem com ela. Até, eu, monárquico convicto, fiel até ao âmago às cores da bandeira azul e branca, ao nosso querido rei D. Manuel II, simpatizei, no seu princípio, com a malvada. Eu, licenciado por Coimbra. Uma loucura! E então, esse Afonso Costa e seus camaradas: atiram com os portugueses para a guerra! Que fossem eles! Mandaram os desgraçados para a morte, para o sofrimento atroz, carne para canhão, e para agravar desbarataram os dinheiros públicos. Que ganhou Portugal com a entrada na grande guerra? Sabes dizer-me?
- Eu sou um coitado analfabeto, senhor doutor. Nem sequer uma letra do tamanho de uma carroça eu consigo ler. Sou um atrasado, um ignorante. A escola foi sempre para os meninos ricos, ou remediados; nós, os pobres, começámos a trabalhar mal nascemos!
- Isso é verdade Leopoldo, lá isso é verdade! Às vezes até me esqueço que vocês não sabem nada de política, de história, de nada! Só sabem trabalhar os campos, cultivar a vinha, tratar do gado… E aprenderam isso, porque os vossos pais e avós vos ensinaram. Pobre gente! O vosso mundo é a vossa aldeia, nada mais! Eu tive sorte. Nasci numa casa rica, farta, mas a minha mãe era apenas a governanta, só mais tarde o meu pai, um solteirão, casou com ela. Já eu era crescido. Mandou-me estudar e deu-me o seu apelido, respeitado e temido em todo o Alto Minho.     
- O seu paizinho, o sargento-mor Matias, que foi presidente da Câmara durante muitos anos, e também provedor da Santa Casa da Misericórdia, além de outros cargos de grande responsabilidade que teve, era um homem muito importante e distinto, senhor doutor. Ainda o conheci. Trabalhei para ele muitos anos. Pagou-me sempre. Nunca me ficou a dever cinco réis. Deus tenha em paz a sua alma. E a sua mãezinha era uma santa. Dava sempre esmolinha aos pobrezinhos, ajudou muito a minha família. Agora está no céu a rezar por nós. Uma santa!

     Estas palavras comoveram imenso o médico. O seu pai nunca lhe dera carinho, é certo; sempre distante, altivo, frio, com aquela irritante prosápia de fidalgo minhoto; mas a sua mãe amava-o até às entranhas, o seu amor era maior do que todo o universo. Claro que tivera de levar os primeiros filhos para a maldita Roda, mas jamais os abandonou: sabia onde estavam e logo que podia ia buscá-los e criava-os. Todos tiveram os apelidos do pai, à exceção daqueles que morreram na infância. Mas que queria? Uma humilde plebeia, filha de mãe solteira, não podia aspirar a ser esposa de um nobre, dum membro da fidalguia; mas ela obteve esse estatuto. Quase no fim da vida, é certo, mas conseguiu-o! E os seus rebentos eram respeitados como meninos de bem.

- Tenho de me ir embora, Leopoldo. O tempo foge, escoa-se perante nossos olhos, e ainda tenho que ir a outros lares; doença é coisa que não falta neste concelho. Toma estas moedas, é um empréstimo; quando o teu genro mandar dinheiro vais à Vila devolvê-las. Sabes onde me encontrar.            
- Seja por alma dos seus, senhor doutor. Que Deus lhe dê tudo em dobro.


     O médico montou no seu cavalo castanho, com uma mancha branca no lombo, ao qual dera o nome de Destemido, animal possante e vistoso, bem alimentado, e partiu rumo a outras casas das cercanias. Não cobrava um tostão aos camponeses, ainda dava algumas moeditas, mas quando os anos corriam fartos a sua casa ficava a abarrotar de tudo: centeio, feijão, vinho…; e até lampreias, salmões e sáveis, do rio Minho, tudo do melhor «para o senhor doutor». E aquelas toalhas lindas, feitas de linho puro, que as mulheres faziam propositadamente para lhe oferecer? Na sua Quinta, uns quantos hectares de terreno, produzia-se de tudo, mas mesmo assim nunca recusou as ofertas. «Não lhes fazia essa desfeita», costumava dizer. // (continua)...

Nota: este romance foi inspirado na vida de uma mulher de Melgaço, já falecida, a qual cometeu alguns crimes, o último dos quais de morte, tendo por isso passado quinze anos na Penitenciária de Lisboa.


domingo, 13 de setembro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




Cartas de um castrejo

9.ª - «Senhor Redactor: já posso, enfim, após um mês e tal de impossibilidade involuntária – salvo quando fui pagar a décima – sair do meu tugúrio. Com caminhos encharcados, o frio ainda imprimaveril, com o medo que, a um doente, imprime o haver sofrido, farto de um ar irrespirável, que me pode agravar os padecimentos crónicos, causados, por último, deste viver inactivo, resolvi expor-me e caminhar até à branda. Logo, ao abandonar o páteo, fitei-a e não me iludi ao pensar que as mouras do castelo haviam assoalhado por ali o seu bragal. A caminho, pois, por um sol que a tonalidade doirada das montanhas juntava um calor… As velhas mouras do castelo cumprimentaram-me da porta falsa, com os seus lencinhos alvos e desejaram-me boa viagem, com recomendação especial de lhes olhar pelo soalheiro. Como extasiado, ou educado à inverneira, o meu gorro de pêlo de raposa, que cacei quando rapaz (e que bons ovos ela me rendeu), cortejou as damas velhas mas de cabelos de oiro…! Passo, num pulo, à vila (…). Visito o digno professor, que dos altos varandins me convida a subir, o que faço com presteza, apesar dos meus sessenta! Trocamos impressões de todos os matizes e feitios. Impressionou-me com a sua fina verve e conhecimento claro, puro, perfeitíssimo do estado da sociedade actual: - «um descalabro», (…), «um descalabro!» Repetia-me ele, com a convicção plena do que afirmava. Uns conselhos profiláticos (o professor também conhece os mais recônditos fundos da medicina) e … adeus! A caminho do estendal, que as boas velhas mouras do castelo me recomendaram e a caminho do meu outro lar. Aqui e acolá um amigo me espreita e convida à palestra. Nada, nada, a caminho; e, na volta, vos direi o que vos apraz. Atravesso a ponte que sobrepõe, ainda, o regato caudaloso. Na frente, o cemitério, juncado de cruzes negras, negras!... Lá, no alto, alveja a neve, a convidar-me a guardar o soalheiro. Calçada a riba. As chocas das vacas, a caminho do eido, dão-me ânimo. Subo, subo; e, guardando o estendal, busco o meu querido lar, onde depois duma frugal refeição, adormeço… De manhã a neve é plana. As velhas do castelo haviam estendido de novo os seus fragais. Castro Laboreiro, 26/3/1916.»   

     Nota: esta carta fala-nos da ida da inverneira para a branda; todos os anos isso acontecia. Falar-vos-ei um dia sobre este interessante assunto.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(dois anos na Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha

4.º Capítulo

TREM-AUTO

     Os dois amigos, numa conversa amena, intercalada com olhares furtivos às moças que circulavam no passeio, umas elegantes e outras menos, ainda não estávamos no tempo da obesidade, bebendo umas “imperiais”, comendo uns amendoins ou tremoços, lá iam, paulatinamente, queimando as etapas da narrativa. Ouçamo-los:   

     - O quartel de Lisboa, chamado Trem Auto, para onde me recambiaram de Infantaria 6, estava instalado na Avenida de Berna, onde hoje existe, salvo erro, uma Universidade. Nele faríamos o estágio durante algum tempo. Depois… logo se veria! Não sei se por nos considerarem prontos ou profissionais (no bolso, novinha em folha, já repousava a carta de condução), se por qualquer outro motivo, o tratamento para com os novíssimos condutores passou a ser outro bem diferente – para melhor. Nem queria acreditar.
- Os lisboetas sabem receber bem – aproveitou a deixa Henrique, um alfacinha de gema.
- É verdade. E tinham obrigação disso, pois estávamos na capital do país. Mas escuta: eles tinham à nossa espera as novas viaturas, as famosas Berliet, carrões enormes (lá dentro sentia-me uma formiguinha, um dos anões da Branca de Neve), a fim de nós as experimentarmos. Providas de seis velocidades, bons amortecedores, arranque perfeito, silenciosas… uma maravilha!
- Bastante sofisticadas para a época – observou o jovem, com alguma admiração.
- Efetivamente. Eu estava espantado com tamanho avanço da tecnologia. Era mais fácil conduzir um carrão daqueles do que uma viatura ligeira.
- E deixaram os exercícios físicos e prática de tiro?
- Não completamente; continuamos, mas menos tempo. Tiro, praticávamo-lo num descampado, no local onde agora se encontra o Palácio da Justiça, na Rua Marquês de Fronteira, e também na Carregueira. Em termos teóricos, caso fôssemos mobilizados, nós não iríamos para a guerra como atiradores, mas sim como condutores auto; logo, as armas de fogo pouco seriam utilizadas por estes especialistas, julgava a gente. No entanto… Mais tarde dir-te-ei o que se passou na realidade.

     Pelas manobras encetadas, pelo cochichar da caserna, tudo nos levava a crer que o objectivo principal das chefias militares era preparar-nos para a maldita guerra colonial. Aliás, em Lisboa tomavam-se todas as decisões, por isso já estava tudo decidido a nosso respeito.
- Do Trem Auto não tem grandes críticas a fazer, pelos vistos.
- Bem, apesar de estar num quartel, receber ordens, comer mal, embora melhor do que no Porto, não me posso queixar muito. Uma boa notícia foi terem-nos aumentado o pré: passamos a ganhar 30$00 por mês, um escudo por dia! Andávamos nos carros dum lado para o outro, conduzíamos Berliets, Jipes, Unimogs, etc. (quem mais conduzia era o monitor, um verdadeiro apaixonado pela condução); corríamos a cidade duma ponta à outra; parávamos, antes de regressar ao pequeno quartel, para bebermos uma cervejinha. Fazíamos uns serviços: guardas, faxinas, o normal, já estávamos habituados a isso tudo.
- Rica vida! – ironizou Henrique.
- Não se pode dizer que fosse uma vida insuportável. Por outro lado, como tinha irmãos em Lisboa e na Amadora, de vez em quando visitava-os e lá comia e dormia. Mas vou contar-te uma historieta que aconteceu comigo:
     Certo dia, depois do jantar, talvez fossem umas sete horas da tarde, no verão, como sabes, ainda é dia alto, saindo como de costume com um camarada transmontano, o “Vila Real”, fomos abordados por duas estrangeiras, ainda novas, altas, bonitas, elegantes, olhos azuis e cabelos loiros, ali para os lados do Parque Eduardo VII. Pelo seu aspecto e sotaque pareciam nórdicas: suecas ou norueguesas. Uma delas, toda sorrisos, pergunta-nos qualquer coisa em inglês. Com gestos teatrais, de duvidosa mímica, dei-lhe a entender que não sabíamos falar essa língua. A outra, com um à-vontade surpreendente, insiste: «hablan espanhol?!» Armado em poliglota, respondo: «Sim, um pouco
     Eu lembrei-me das galegas, quando atravessava o rio Minho para ir falar com elas, mas o galego e o espanhol são diferentes, agora é que eu compreendia o que me tinham dito das línguas que se falavam na Espanha: do catalão, do basco... De qualquer modo, a gente havia de se entender. Então ela informa-nos que estavam no Hotel Ritz e que andavam por ali a passear, a fim de conhecerem melhor Lisboa… e os muchachos lusos! Continua, insinuando: «Los chicos portugueses nos agradam muchíssimo!)
     O meu colega, impaciente, sugere: «despacha as gajas, ou então vamos com elas para o Hotel.» Encontrava-me num dilema: tinha a percepção que elas queriam mais do que conversar, andavam certamente à procura de novas e empolgantes aventuras, mas eu, coitado de mim, não possuía nenhuma experiência neste tipo de coisas, tímido e moralista, já me estava a apetecer fugir…
- Fugir?! – pergunta Henrique, horrorizado.
- Sim! Isso já me acontecera numa das freguesias do meu concelho, teria eu uns dezoito anos de idade. A um domingo de tarde, numa daquelas festas de aldeia, eu e um amigo, o Mário, é agora emigrante na França, “arranjamos” duas moças bonitinhas, lavradeiras, e começamos a passear à volta da igreja, como era hábito, pois o resto do espaço para a dita festa está normalmente ocupado pelos tendeiros, taberneiros, doceiras, etc. Eu e a cachopa separamo-nos do outro casal e às tantas não tínhamos absolutamente nada para dizer um ao outro. Beijá-la estava fora de questão, pois nesse tempo nem um olhar atrevido seria permitido, quanto mais um beijo. Ela ainda me disse que tinha comido três malgas de caldo ao almoço, com toucinho e broa, comia bem porque trabalhava muito, levantava-se cedo para tratar do gado, tinha um rebanhozito, cabras e ovelhas, eram caseiros, mas também possuíam uns campitos próprios. Eu ainda lhe falei do último filme que tinha visto, com o Cantinflas, mas ela nunca fora ao cinema, não lhe interessava essa conversa. Nem sequer Joselito e Marisol lhe diziam alguma coisa! De que lhe havia de falar?! Disse-lhe então que ia fazer uma necessidade, ali a um campo, e ainda hoje espera por mim!
- Isso não se faz a uma menina – reprova Henrique, quase zangado.
- Eu queria ver-te no meu lugar. O nervosismo era tanto, que até suava!
- E quanto às suecas?
- Bem, eu permanecia indeciso, elas certamente notaram. De repente, por artes mágicas, surge, pertíssimo de nós, um táxi. Pára ao nosso lado e o chauffeur pergunta-nos: «Querem levar as estrangeiras para Monsanto
     Respondo-lhe, meio a rir, meio a sério, inibido: «Nem dinheiro temos para mandar cantar um cego
     O motorista, com cara de mafioso, já acostumado a essas coisas, acusa-nos: «Saloios! Não vêem que elas é que pagam?
     Exige, dono do mundo e arredores, abruptamente: «Se não querem, deixem o campo aberto para outros
     De facto, e só agora me apercebia, ali perto rondavam grupos de homens que nos olhavam com um certo descaramento – alguma coisa se passava! A rapariga que falava espanhol solicita-nos: «Vamos embora daqui.»
     Fomos somente com elas até à entrada do Hotel; antes de entrarem pediram-nos amavelmente que esperássemos – já voltavam. Fiquei com a sensação que iam buscar dinheiro. Ainda não tinham desaparecido por completo da nossa vista e já eu dizia ao meu colega: «Ó Vila Real, cavemos, antes que isto dê para o torto!» Agradou-lhe a ideia. Respondeu-me: «Vamos, é comida boa demais para os nossos dentes!»                     
- E foram embora! É inacreditável!
- É verdade, fomos! Avenida da Liberdade abaixo, até ao Rossio, vendo estátuas, montras, admirando as últimas novidades da moda, piscando o olho e sorrindo aos manequins femininos, por sinal muito bem feitos – pareciam autênticos! Aquilo sim: regalava os nossos olhos, não custava dinheiro, não provocava sarilhos, não corríamos quaisquer perigos. Os prazeres viriam a seu tempo. Quando fôssemos livres e com algum dinheiro no bolso pensaríamos nisso. Agora era época de hibernação.

- Não me digam que não gastavam um tostão?!
- Nós não éramos turistas; esses sim, podiam gastá-lo, ganhavam bem; ora nós, a auferir qualquer coisa como trinta escudos por mês… Olha, gastávamo-lo no bar do quartel, a comer umas sandes e a beber cerveja. Quase que nem sequer para isso dava! Nos primeiros quatro meses de tropa deram-me três ou quatro escudos por mês, e sobre esse astronómico vencimento ainda incidiam descontos!
- Miseráveis, unhas-de-fome! E em África, pagavam bem?
- Claro que comparado com o que vencíamos em Portugal significava um aumento enorme: de trinta escudos passamos a receber quinhentos e cinquenta, isto é, dezoito escudos por dia! Na minha humilde oficina tirava entre mil e oitocentos a dois mil escudos todos os meses, qualquer coisa como sessenta escudos diários. Trabalhava muitas horas, mas com gosto, e não corria perigo de vida…
- Não querendo ser indiscreto, que profissão tinha na sua terra?
- Era alfaiate, trabalhava por conta própria.
- Não me diga!
- Sim, desde os dezassete anos. O meu patrão emigrara para França, fora à caça dos francos, e eu abri uma modesta oficina nos baixos da casa onde morava.
- Nunca mais voltou a exercer essa arte?
- Não. Até porque eu nunca cheguei a ser um verdadeiro artista, apenas fui um remendão; mestres eram considerados aqueles que sabiam preparar moldes, cortar o tecido, fazer fatos por medida. Esses, sim! Eu nunca passei de aprendiz, nunca fui além da calça. Uma altura atrevi-me a fazer um casaco e o resultado foi catastrófico: uma manga mais curta do que outra, os chumaços uma miséria! Nunca mais o tentei. O que me valeu foi que o pano tinha sido barato, comprara-o na feira, o prejuízo não se verificou elevado. Depois da disponibilidade, isto é, depois de deixar o exército, fiquei em Lisboa, continuei a estudar à noite, e o pouco que sabia da antiga profissão já esqueci, quase que nem um botão sei pregar!
- Também não exagere. Mas voltando à sua vida militar. Apesar de crítico acérrimo, de só dizer mal, julgo que não era tão ruim assim: tinha roupa de graça, calçado, comida, alojamento… Aprendeu a dirigir um carro, conheceu terras…
- Já vejo que estás a brincar. Só pode. Essa expressão irónica nunca te abandona, mesmo quando estás a falar de assuntos sérios?!      
- Desculpe a ironia, mas não resisto. Tudo isto me parece ter acontecido na Idade Média, no tempo de Carlos Magno… ou até antes, no período em que os lusitanos, comandados por Viriato, resistiam heroicamente aos legionários de Roma.
- Se essas comparações absurdas te divertem e te libertam a bílis, tudo bem! Também eu estou de acordo que não se deve dramatizar o que não é passível de dramatização: o que lá vai, lá vai, e águas passadas não movem moinhos, não ajudam o moer o grão! Deixa continuar o meu relato:
     Um dia entrou para o Trem Auto um jovem de etnia cigana. Ninguém sabia de que quartel vinha. Ficamos todos com inexcedível curiosidade. Era a primeira vez que a gente via um cigano fardado. Em tudo se assemelhava a nós, mas aquela pele avermelhada, a pronúncia, tornava-o diferente. Uma raridade! Perguntamos a um sargento a razão daquela presença, sabíamos que os zíngaros não cumpriam o serviço militar, muito menos agora, que estávamos em guerra. Disse-nos que viera voluntariamente, queria ver como era a tropa, romper com a tradição étnica.
- Aceitaram-no bem, espero.
- Certamente; ninguém ali era racista. Nascera em Portugal, tinha nacionalidade portuguesa… Quanto a mim até tinham obrigação de cumprir o serviço militar, por quê o privilégio?! Por outro lado, esse tempo podiam aproveitá-lo para estudar, para adquirir conhecimentos técnicos, enfim, tornarem-se cidadãos como os outros.
- E depois?...
- Não vais acreditar! Nessa noite ficou aquartelado, mas de manhã, logo após o pequeno-almoço, pôs-se a andar. Com a farda no corpo!
- Foram logo atrás dele?
- Nem penses. O assunto ficou encerrado, por ordem superior. E ninguém falou mais nisso.
     Mas há outro caso também curioso: um filho do proprietário duma grande companhia de transportes, que possuía uma, ou mais agências de viagens, era nosso camarada. Como não tinha estudos, apenas a 4.ª classe da instrução primária, e não quis emigrar, teve de vestir a farda de soldado raso. Acontece que entrava e saía da unidade militar com a maior displicência e facilidade! Umas vezes fardado, outras vezes à paisano. Não comia no quartel, não fazia serviços, nada! Nós estávamos de boca aberta!
- Que tropa fandanga! Assim até dava gosto…
- Pudera! Rico e importante, fazia o que queria. Mas espera: ao cabo de uns dias desapareceu, tal como o gitano. Perguntando nós o que se tinha passado, fomos informados que já passara à disponibilidade – cumprira dois ou três meses! Provavelmente nem um tiro dera!
- Afinal, o rigor no tempo de Salazar é um mito!
- Isto é só aquilo a que assisti. Não fazemos sequer ideia do que se passou na realidade. A podridão alastra em qualquer regime; onde houver humanos há corrupção, há vítimas e privilegiados. Quem tinha dinheiro não permitia que os filhos fossem para a guerra – íamos nós, os pobres, a tal carne para canhão. Daqueles que morreram e ficaram mutilados quantos eram filhos de ricos?
- Nenhum! – afirmou Henrique, peremptoriamente.
- Podes ter a certeza. Até podia haver um caso isolado, a exceção à regra, um jovem família, fascista, que se alistara por ideologia, para defender a “pátria sagrada”, ou empurrado pela família, militarista, mas que eu saiba não.



     Dois meses passam depressa quando as coisas correm mais ou menos de feição. Certo dia chamam Cândido à Secretaria e o amanuense diz-lhe que tinha sido destacado para a Academia Militar, na Rua Gomes Freire, Lisboa, a fim de prestar serviços de condutor. Teria de levar os cadetes para os seus exercícios em Sintra, e arredores, bem como para outros lados; seria, quando a escala assim o determinasse, condutor dia, isto é, nesse dia estaria ao dispor da Academia para ir aonde fosse necessário.                

                                                // (continua)...