LINA - Filha de Pã
romance
Por Joaquim A. Rocha
deus Pã
1.º
Capítulo
Naquela noite de inverno, 23 de Janeiro de
1920, ninguém conseguira dormir na casa do Ti Leopoldo. Uma agitação tremenda,
uma azáfama incrível, obrigara aquela pobre gente a andar de um lado para o
outro: a Engrácia a ferver água, o Joaquim a correr para a Vila a chamar o
médico, um bom estiraço, pelo menos quatro quilómetros, caminhos cheios de lama
e pedregulhos, o Alfredo a ir buscar lenha para o lume, toda a santa noite
aceso, pessoas novas, tios maternos da criança, e a Gertrudes, vizinha
prestimosa, de meia-idade, a ter de ir à capoeira escolher uma galinha gorda
para fazer uma rica canja para a parturiente.
Os deuses, senhores de todo o universo,
pareciam estar deveras zangados: trovões, relâmpagos, faíscas, iluminavam o céu
e assustavam todas as criaturas daquela aldeia entre a serra e o vale. Aquele
minúsculo ser nascia sob o signo da violência celestial.
- Diachos! - gritava o avô
materno da recém-nascida, Ti Leopoldo, assaz nervoso. – Ninguém me
escuta. Sem um verdadeiro homem a mandar nada se resolve. É como uma nave sem
piloto: fica no mar à deriva.
- Que queres,
homem!? A Clarita teve a criança antes do tempo. Ninguém estava preparado. Tudo
se há-de resolver. Não te enerves – disse a sua cara-metade, Clotilde.
De facto o primeiro bebé de Clara nascera
aos oito meses incompletos. Era uma rapariga enfezada, desfalecida, nem feia
nem bonita, cinco réis de gente. Ninguém dava um tostão furado por ela.
- Que raio de
criança! – disse
de si para si a parteira improvisada, a tal Gertrudes. – Não me
parece que chegue ao fim do inverno.
- Que venha na
graça de Deus – desejou a avó paterna, Ambrósia, que rapidamente aparecera no local
para ajudar naquilo que pudesse.
- Se a mãe
tiver leite nos seus peitos, ela há-de crescer como as outras. Que a Senhora da
Boa Hora a proteja – pediu a tia da menina, que estivera presente desde o
primeiro momento.
- Há-de
protegê-la, há-de protegê-la; a santinha nunca esquece aqueles que dela precisam
– afirmou
a senhora Gertrudes, para agradar aos da casa, convencida de que no fim teria a
sua recompensa em batatas, feijão, milho, umas chouriças, e ainda um garrafãozito
de vinho.
Entretanto chegou o médico. Vinha estafado,
exausto. Aquela chuva impertinente, o vento assobiando, os caminhos todos
lamacentos e estreitos, com chão irregular, faziam desistir o mais afoito. Era
um homem ainda na casa dos quarenta anos, alto, aparentemente frágil, com umas
mãos longas, ágeis, nariz de judeu, aquilino, e olhos penetrantes como os das
águias. Naquele tempo não havia ainda estrada para aquele lugar de meia montanha.
Por isso o médico percorria todas as freguesias do concelho, que eram dezoito,
montado no seu lindo cavalo. Depois de um breve momento, pergunta:
- Que raio
aconteceu nesta casa? Até parece que estão a velar um morto! Onde está a
paciente?
- Venha por
aqui, Senhor Doutor. A minha filha Clara deu à luz uma menina, mas parece
fraquita. Não sei se irá resistir – lamentou-se Clotilde.
O clínico dirige-se ao pequeno quarto, não
teria mais do que seis metros quadrados, mal iluminado, apenas um candeeiro a
petróleo espalhava uma luz amarelada, e pergunta à doente:
- Como te
sentes? Tens algumas dores?
- Ai Senhor
Doutor: acho-me muito mal, muito fraquinha.
- Anima-te,
rapariga. O primeiro parto é quase sempre problemático, quer pelas dores que
provoca, quer pelo receio de perder a criança, e também pela ansiedade. Não te
preocupes: os seguintes vão-te custar menos. Vou aplicar-te uma injeção e já
ficas bem. Depois tens que te alimentar como deve ser. Bons caldos de galinha e
muito descanso. Daqui a uns dias estás como nova. Parir é normal e saudável.
- E a minha menina, senhor doutor? Acha que vai sobreviver?
O médico pegou com cuidado na recém-nascida,
analisou-a minuciosamente, e disse com alguma convicção:
- Acho que
sim; mas isso vai depender muito de ti: se a alimentares com o teu próprio leite,
ela sobreviverá. Para isso precisas de estar forte. Come-lhe bem. E nada de
vinho, e muito menos bagaço, por enquanto. Daqui a dias já lhe podes comer umas
sopas de cavalo cansado, mas não abuses.
Quando o médico acabou o seu trabalho,
despediu-se de Clara, olhou fixamente para a garotinha, e pensou: «É quase um
milagre, nestas horríveis condições, esta criança vingar. Um milagre! O melhor seria sopeá-la em casa, mas não me
arrisco a sugeri-lo, podem interpretar mal.»
Quando se dirigia para a porta dá de caras
com o Ti Leopoldo. O médico interroga-o:
- Então homem!
Como vão as coisas por aqui?
- Muito mal, senhor doutor, muito mal. As chuvas não abrandam, os pastos estão todos alagados. O
gado já está a ficar com fome. Se o tempo não melhorar, vai ser um ano maldito,
um ano para esquecer.
- E o teu
genro? Tem mandado algum dinheiro?
- Ultimamente
não! Mas também lá pelo Douro, segundo dizem, as coisas não estão bem. Por todo
lado miséria, pobreza, senhor doutor.
- É a
República! Quiseram a República, agora aguentem com ela. Até, eu, monárquico
convicto, fiel até ao âmago às cores da bandeira azul e branca, ao nosso
querido rei D. Manuel II, simpatizei, no seu princípio, com a malvada. Eu,
licenciado por Coimbra. Uma loucura! E então, esse Afonso Costa e seus
camaradas: atiram com os portugueses para a guerra! Que fossem eles! Mandaram
os desgraçados para a morte, para o sofrimento atroz, carne para canhão, e para
agravar desbarataram os dinheiros públicos. Que ganhou Portugal com a entrada
na grande guerra? Sabes dizer-me?
- Eu sou um coitado
analfabeto, senhor doutor. Nem sequer uma letra do tamanho de uma carroça eu
consigo ler. Sou um atrasado, um ignorante. A escola foi sempre para os meninos
ricos, ou remediados; nós, os pobres, começámos a trabalhar mal nascemos!
- Isso é verdade
Leopoldo, lá isso é verdade! Às vezes até me esqueço que vocês não sabem nada
de política, de história, de nada! Só sabem trabalhar os campos, cultivar a
vinha, tratar do gado… E aprenderam isso, porque os vossos pais e avós vos
ensinaram. Pobre gente! O vosso mundo é a vossa aldeia, nada mais! Eu tive
sorte. Nasci numa casa rica, farta, mas a minha mãe era apenas a governanta, só
mais tarde o meu pai, um solteirão, casou com ela. Já eu era crescido.
Mandou-me estudar e deu-me o seu apelido, respeitado e temido em todo o Alto
Minho.
- O seu
paizinho, o sargento-mor Matias, que foi presidente da Câmara durante muitos
anos, e também provedor da Santa Casa da Misericórdia, além de outros cargos de
grande responsabilidade que teve, era um homem muito importante e distinto, senhor doutor. Ainda o conheci. Trabalhei para ele muitos anos. Pagou-me sempre. Nunca
me ficou a dever cinco réis. Deus tenha em paz a sua alma. E a sua mãezinha era
uma santa. Dava sempre esmolinha aos pobrezinhos, ajudou muito a minha família.
Agora está no céu a rezar por nós. Uma santa!
Estas palavras comoveram imenso o médico.
O seu pai nunca lhe dera carinho, é certo; sempre distante, altivo, frio, com
aquela irritante prosápia de fidalgo minhoto; mas a sua mãe amava-o até às
entranhas, o seu amor era maior do que todo o universo. Claro que tivera de
levar os primeiros filhos para a maldita Roda, mas jamais os abandonou: sabia
onde estavam e logo que podia ia buscá-los e criava-os. Todos tiveram os apelidos
do pai, à exceção daqueles que morreram na infância. Mas que queria? Uma humilde
plebeia, filha de mãe solteira, não podia aspirar a ser esposa de um nobre, dum
membro da fidalguia; mas ela obteve esse estatuto. Quase no fim da vida, é
certo, mas conseguiu-o! E os seus rebentos eram respeitados como meninos de
bem.
- Tenho de me
ir embora, Leopoldo. O tempo foge, escoa-se perante nossos olhos, e ainda tenho
que ir a outros lares; doença é coisa que não falta neste concelho. Toma estas
moedas, é um empréstimo; quando o teu genro mandar dinheiro vais à Vila
devolvê-las. Sabes onde me encontrar.
- Seja por
alma dos seus, senhor doutor. Que Deus lhe dê tudo em dobro.
O médico montou no seu cavalo castanho, com
uma mancha branca no lombo, ao qual dera o nome de Destemido, animal possante e
vistoso, bem alimentado, e partiu rumo a outras casas das cercanias. Não
cobrava um tostão aos camponeses, ainda dava algumas moeditas, mas quando os
anos corriam fartos a sua casa ficava a abarrotar de tudo: centeio, feijão,
vinho…; e até lampreias, salmões e sáveis, do rio Minho, tudo do melhor «para o senhor doutor». E aquelas toalhas
lindas, feitas de linho puro, que as mulheres faziam propositadamente para lhe
oferecer? Na sua Quinta, uns quantos hectares de terreno, produzia-se de tudo,
mas mesmo assim nunca recusou as ofertas. «Não
lhes fazia essa desfeita», costumava dizer. // (continua)...
Nota: este romance foi inspirado na vida de uma mulher de Melgaço, já falecida, a qual cometeu alguns crimes, o último dos quais de morte, tendo por isso passado quinze anos na Penitenciária de Lisboa.
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