terça-feira, 15 de setembro de 2015

LINA - Filha de Pã
romance

Por Joaquim A. Rocha


deus Pã

1.º Capítulo


     Naquela noite de inverno, 23 de Janeiro de 1920, ninguém conseguira dormir na casa do Ti Leopoldo. Uma agitação tremenda, uma azáfama incrível, obrigara aquela pobre gente a andar de um lado para o outro: a Engrácia a ferver água, o Joaquim a correr para a Vila a chamar o médico, um bom estiraço, pelo menos quatro quilómetros, caminhos cheios de lama e pedregulhos, o Alfredo a ir buscar lenha para o lume, toda a santa noite aceso, pessoas novas, tios maternos da criança, e a Gertrudes, vizinha prestimosa, de meia-idade, a ter de ir à capoeira escolher uma galinha gorda para fazer uma rica canja para a parturiente.
     Os deuses, senhores de todo o universo, pareciam estar deveras zangados: trovões, relâmpagos, faíscas, iluminavam o céu e assustavam todas as criaturas daquela aldeia entre a serra e o vale. Aquele minúsculo ser nascia sob o signo da violência celestial.
  
- Diachos! - gritava o avô materno da recém-nascida, Ti Leopoldo, assaz nervoso. – Ninguém me escuta. Sem um verdadeiro homem a mandar nada se resolve. É como uma nave sem piloto: fica no mar à deriva.
- Que queres, homem!? A Clarita teve a criança antes do tempo. Ninguém estava preparado. Tudo se há-de resolver. Não te enerves – disse a sua cara-metade, Clotilde.

     De facto o primeiro bebé de Clara nascera aos oito meses incompletos. Era uma rapariga enfezada, desfalecida, nem feia nem bonita, cinco réis de gente. Ninguém dava um tostão furado por ela.

- Que raio de criança! – disse de si para si a parteira improvisada, a tal Gertrudes. – Não me parece que chegue ao fim do inverno.
- Que venha na graça de Deus – desejou a avó paterna, Ambrósia, que rapidamente aparecera no local para ajudar naquilo que pudesse.
- Se a mãe tiver leite nos seus peitos, ela há-de crescer como as outras. Que a Senhora da Boa Hora a proteja – pediu a tia da menina, que estivera presente desde o primeiro momento.
- Há-de protegê-la, há-de protegê-la; a santinha nunca esquece aqueles que dela precisam – afirmou a senhora Gertrudes, para agradar aos da casa, convencida de que no fim teria a sua recompensa em batatas, feijão, milho, umas chouriças, e ainda um garrafãozito de vinho.

     Entretanto chegou o médico. Vinha estafado, exausto. Aquela chuva impertinente, o vento assobiando, os caminhos todos lamacentos e estreitos, com chão irregular, faziam desistir o mais afoito. Era um homem ainda na casa dos quarenta anos, alto, aparentemente frágil, com umas mãos longas, ágeis, nariz de judeu, aquilino, e olhos penetrantes como os das águias. Naquele tempo não havia ainda estrada para aquele lugar de meia montanha. Por isso o médico percorria todas as freguesias do concelho, que eram dezoito, montado no seu lindo cavalo. Depois de um breve momento, pergunta:

- Que raio aconteceu nesta casa? Até parece que estão a velar um morto! Onde está a paciente?
- Venha por aqui, Senhor Doutor. A minha filha Clara deu à luz uma menina, mas parece fraquita. Não sei se irá resistir – lamentou-se Clotilde.

     O clínico dirige-se ao pequeno quarto, não teria mais do que seis metros quadrados, mal iluminado, apenas um candeeiro a petróleo espalhava uma luz amarelada, e pergunta à doente:

- Como te sentes? Tens algumas dores?
- Ai Senhor Doutor: acho-me muito mal, muito fraquinha.
- Anima-te, rapariga. O primeiro parto é quase sempre problemático, quer pelas dores que provoca, quer pelo receio de perder a criança, e também pela ansiedade. Não te preocupes: os seguintes vão-te custar menos. Vou aplicar-te uma injeção e já ficas bem. Depois tens que te alimentar como deve ser. Bons caldos de galinha e muito descanso. Daqui a uns dias estás como nova. Parir é normal e saudável.
- E a minha menina, senhor doutor? Acha que vai sobreviver?

     O médico pegou com cuidado na recém-nascida, analisou-a minuciosamente, e disse com alguma convicção:

- Acho que sim; mas isso vai depender muito de ti: se a alimentares com o teu próprio leite, ela sobreviverá. Para isso precisas de estar forte. Come-lhe bem. E nada de vinho, e muito menos bagaço, por enquanto. Daqui a dias já lhe podes comer umas sopas de cavalo cansado, mas não abuses.

    Quando o médico acabou o seu trabalho, despediu-se de Clara, olhou fixamente para a garotinha, e pensou: «É quase um milagre, nestas horríveis condições, esta criança vingar. Um milagre! O melhor seria sopeá-la em casa, mas não me arrisco a sugeri-lo, podem interpretar mal
     Quando se dirigia para a porta dá de caras com o Ti Leopoldo. O médico interroga-o:

- Então homem! Como vão as coisas por aqui?
- Muito mal, senhor doutor, muito mal. As chuvas não abrandam, os pastos estão todos alagados. O gado já está a ficar com fome. Se o tempo não melhorar, vai ser um ano maldito, um ano para esquecer.
- E o teu genro? Tem mandado algum dinheiro?
- Ultimamente não! Mas também lá pelo Douro, segundo dizem, as coisas não estão bem. Por todo lado miséria, pobreza, senhor doutor.
- É a República! Quiseram a República, agora aguentem com ela. Até, eu, monárquico convicto, fiel até ao âmago às cores da bandeira azul e branca, ao nosso querido rei D. Manuel II, simpatizei, no seu princípio, com a malvada. Eu, licenciado por Coimbra. Uma loucura! E então, esse Afonso Costa e seus camaradas: atiram com os portugueses para a guerra! Que fossem eles! Mandaram os desgraçados para a morte, para o sofrimento atroz, carne para canhão, e para agravar desbarataram os dinheiros públicos. Que ganhou Portugal com a entrada na grande guerra? Sabes dizer-me?
- Eu sou um coitado analfabeto, senhor doutor. Nem sequer uma letra do tamanho de uma carroça eu consigo ler. Sou um atrasado, um ignorante. A escola foi sempre para os meninos ricos, ou remediados; nós, os pobres, começámos a trabalhar mal nascemos!
- Isso é verdade Leopoldo, lá isso é verdade! Às vezes até me esqueço que vocês não sabem nada de política, de história, de nada! Só sabem trabalhar os campos, cultivar a vinha, tratar do gado… E aprenderam isso, porque os vossos pais e avós vos ensinaram. Pobre gente! O vosso mundo é a vossa aldeia, nada mais! Eu tive sorte. Nasci numa casa rica, farta, mas a minha mãe era apenas a governanta, só mais tarde o meu pai, um solteirão, casou com ela. Já eu era crescido. Mandou-me estudar e deu-me o seu apelido, respeitado e temido em todo o Alto Minho.     
- O seu paizinho, o sargento-mor Matias, que foi presidente da Câmara durante muitos anos, e também provedor da Santa Casa da Misericórdia, além de outros cargos de grande responsabilidade que teve, era um homem muito importante e distinto, senhor doutor. Ainda o conheci. Trabalhei para ele muitos anos. Pagou-me sempre. Nunca me ficou a dever cinco réis. Deus tenha em paz a sua alma. E a sua mãezinha era uma santa. Dava sempre esmolinha aos pobrezinhos, ajudou muito a minha família. Agora está no céu a rezar por nós. Uma santa!

     Estas palavras comoveram imenso o médico. O seu pai nunca lhe dera carinho, é certo; sempre distante, altivo, frio, com aquela irritante prosápia de fidalgo minhoto; mas a sua mãe amava-o até às entranhas, o seu amor era maior do que todo o universo. Claro que tivera de levar os primeiros filhos para a maldita Roda, mas jamais os abandonou: sabia onde estavam e logo que podia ia buscá-los e criava-os. Todos tiveram os apelidos do pai, à exceção daqueles que morreram na infância. Mas que queria? Uma humilde plebeia, filha de mãe solteira, não podia aspirar a ser esposa de um nobre, dum membro da fidalguia; mas ela obteve esse estatuto. Quase no fim da vida, é certo, mas conseguiu-o! E os seus rebentos eram respeitados como meninos de bem.

- Tenho de me ir embora, Leopoldo. O tempo foge, escoa-se perante nossos olhos, e ainda tenho que ir a outros lares; doença é coisa que não falta neste concelho. Toma estas moedas, é um empréstimo; quando o teu genro mandar dinheiro vais à Vila devolvê-las. Sabes onde me encontrar.            
- Seja por alma dos seus, senhor doutor. Que Deus lhe dê tudo em dobro.


     O médico montou no seu cavalo castanho, com uma mancha branca no lombo, ao qual dera o nome de Destemido, animal possante e vistoso, bem alimentado, e partiu rumo a outras casas das cercanias. Não cobrava um tostão aos camponeses, ainda dava algumas moeditas, mas quando os anos corriam fartos a sua casa ficava a abarrotar de tudo: centeio, feijão, vinho…; e até lampreias, salmões e sáveis, do rio Minho, tudo do melhor «para o senhor doutor». E aquelas toalhas lindas, feitas de linho puro, que as mulheres faziam propositadamente para lhe oferecer? Na sua Quinta, uns quantos hectares de terreno, produzia-se de tudo, mas mesmo assim nunca recusou as ofertas. «Não lhes fazia essa desfeita», costumava dizer. // (continua)...

Nota: este romance foi inspirado na vida de uma mulher de Melgaço, já falecida, a qual cometeu alguns crimes, o último dos quais de morte, tendo por isso passado quinze anos na Penitenciária de Lisboa.


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