sexta-feira, 11 de setembro de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(dois anos na Guiné-Bissau)

Por Joaquim A. Rocha

4.º Capítulo

TREM-AUTO

     Os dois amigos, numa conversa amena, intercalada com olhares furtivos às moças que circulavam no passeio, umas elegantes e outras menos, ainda não estávamos no tempo da obesidade, bebendo umas “imperiais”, comendo uns amendoins ou tremoços, lá iam, paulatinamente, queimando as etapas da narrativa. Ouçamo-los:   

     - O quartel de Lisboa, chamado Trem Auto, para onde me recambiaram de Infantaria 6, estava instalado na Avenida de Berna, onde hoje existe, salvo erro, uma Universidade. Nele faríamos o estágio durante algum tempo. Depois… logo se veria! Não sei se por nos considerarem prontos ou profissionais (no bolso, novinha em folha, já repousava a carta de condução), se por qualquer outro motivo, o tratamento para com os novíssimos condutores passou a ser outro bem diferente – para melhor. Nem queria acreditar.
- Os lisboetas sabem receber bem – aproveitou a deixa Henrique, um alfacinha de gema.
- É verdade. E tinham obrigação disso, pois estávamos na capital do país. Mas escuta: eles tinham à nossa espera as novas viaturas, as famosas Berliet, carrões enormes (lá dentro sentia-me uma formiguinha, um dos anões da Branca de Neve), a fim de nós as experimentarmos. Providas de seis velocidades, bons amortecedores, arranque perfeito, silenciosas… uma maravilha!
- Bastante sofisticadas para a época – observou o jovem, com alguma admiração.
- Efetivamente. Eu estava espantado com tamanho avanço da tecnologia. Era mais fácil conduzir um carrão daqueles do que uma viatura ligeira.
- E deixaram os exercícios físicos e prática de tiro?
- Não completamente; continuamos, mas menos tempo. Tiro, praticávamo-lo num descampado, no local onde agora se encontra o Palácio da Justiça, na Rua Marquês de Fronteira, e também na Carregueira. Em termos teóricos, caso fôssemos mobilizados, nós não iríamos para a guerra como atiradores, mas sim como condutores auto; logo, as armas de fogo pouco seriam utilizadas por estes especialistas, julgava a gente. No entanto… Mais tarde dir-te-ei o que se passou na realidade.

     Pelas manobras encetadas, pelo cochichar da caserna, tudo nos levava a crer que o objectivo principal das chefias militares era preparar-nos para a maldita guerra colonial. Aliás, em Lisboa tomavam-se todas as decisões, por isso já estava tudo decidido a nosso respeito.
- Do Trem Auto não tem grandes críticas a fazer, pelos vistos.
- Bem, apesar de estar num quartel, receber ordens, comer mal, embora melhor do que no Porto, não me posso queixar muito. Uma boa notícia foi terem-nos aumentado o pré: passamos a ganhar 30$00 por mês, um escudo por dia! Andávamos nos carros dum lado para o outro, conduzíamos Berliets, Jipes, Unimogs, etc. (quem mais conduzia era o monitor, um verdadeiro apaixonado pela condução); corríamos a cidade duma ponta à outra; parávamos, antes de regressar ao pequeno quartel, para bebermos uma cervejinha. Fazíamos uns serviços: guardas, faxinas, o normal, já estávamos habituados a isso tudo.
- Rica vida! – ironizou Henrique.
- Não se pode dizer que fosse uma vida insuportável. Por outro lado, como tinha irmãos em Lisboa e na Amadora, de vez em quando visitava-os e lá comia e dormia. Mas vou contar-te uma historieta que aconteceu comigo:
     Certo dia, depois do jantar, talvez fossem umas sete horas da tarde, no verão, como sabes, ainda é dia alto, saindo como de costume com um camarada transmontano, o “Vila Real”, fomos abordados por duas estrangeiras, ainda novas, altas, bonitas, elegantes, olhos azuis e cabelos loiros, ali para os lados do Parque Eduardo VII. Pelo seu aspecto e sotaque pareciam nórdicas: suecas ou norueguesas. Uma delas, toda sorrisos, pergunta-nos qualquer coisa em inglês. Com gestos teatrais, de duvidosa mímica, dei-lhe a entender que não sabíamos falar essa língua. A outra, com um à-vontade surpreendente, insiste: «hablan espanhol?!» Armado em poliglota, respondo: «Sim, um pouco
     Eu lembrei-me das galegas, quando atravessava o rio Minho para ir falar com elas, mas o galego e o espanhol são diferentes, agora é que eu compreendia o que me tinham dito das línguas que se falavam na Espanha: do catalão, do basco... De qualquer modo, a gente havia de se entender. Então ela informa-nos que estavam no Hotel Ritz e que andavam por ali a passear, a fim de conhecerem melhor Lisboa… e os muchachos lusos! Continua, insinuando: «Los chicos portugueses nos agradam muchíssimo!)
     O meu colega, impaciente, sugere: «despacha as gajas, ou então vamos com elas para o Hotel.» Encontrava-me num dilema: tinha a percepção que elas queriam mais do que conversar, andavam certamente à procura de novas e empolgantes aventuras, mas eu, coitado de mim, não possuía nenhuma experiência neste tipo de coisas, tímido e moralista, já me estava a apetecer fugir…
- Fugir?! – pergunta Henrique, horrorizado.
- Sim! Isso já me acontecera numa das freguesias do meu concelho, teria eu uns dezoito anos de idade. A um domingo de tarde, numa daquelas festas de aldeia, eu e um amigo, o Mário, é agora emigrante na França, “arranjamos” duas moças bonitinhas, lavradeiras, e começamos a passear à volta da igreja, como era hábito, pois o resto do espaço para a dita festa está normalmente ocupado pelos tendeiros, taberneiros, doceiras, etc. Eu e a cachopa separamo-nos do outro casal e às tantas não tínhamos absolutamente nada para dizer um ao outro. Beijá-la estava fora de questão, pois nesse tempo nem um olhar atrevido seria permitido, quanto mais um beijo. Ela ainda me disse que tinha comido três malgas de caldo ao almoço, com toucinho e broa, comia bem porque trabalhava muito, levantava-se cedo para tratar do gado, tinha um rebanhozito, cabras e ovelhas, eram caseiros, mas também possuíam uns campitos próprios. Eu ainda lhe falei do último filme que tinha visto, com o Cantinflas, mas ela nunca fora ao cinema, não lhe interessava essa conversa. Nem sequer Joselito e Marisol lhe diziam alguma coisa! De que lhe havia de falar?! Disse-lhe então que ia fazer uma necessidade, ali a um campo, e ainda hoje espera por mim!
- Isso não se faz a uma menina – reprova Henrique, quase zangado.
- Eu queria ver-te no meu lugar. O nervosismo era tanto, que até suava!
- E quanto às suecas?
- Bem, eu permanecia indeciso, elas certamente notaram. De repente, por artes mágicas, surge, pertíssimo de nós, um táxi. Pára ao nosso lado e o chauffeur pergunta-nos: «Querem levar as estrangeiras para Monsanto
     Respondo-lhe, meio a rir, meio a sério, inibido: «Nem dinheiro temos para mandar cantar um cego
     O motorista, com cara de mafioso, já acostumado a essas coisas, acusa-nos: «Saloios! Não vêem que elas é que pagam?
     Exige, dono do mundo e arredores, abruptamente: «Se não querem, deixem o campo aberto para outros
     De facto, e só agora me apercebia, ali perto rondavam grupos de homens que nos olhavam com um certo descaramento – alguma coisa se passava! A rapariga que falava espanhol solicita-nos: «Vamos embora daqui.»
     Fomos somente com elas até à entrada do Hotel; antes de entrarem pediram-nos amavelmente que esperássemos – já voltavam. Fiquei com a sensação que iam buscar dinheiro. Ainda não tinham desaparecido por completo da nossa vista e já eu dizia ao meu colega: «Ó Vila Real, cavemos, antes que isto dê para o torto!» Agradou-lhe a ideia. Respondeu-me: «Vamos, é comida boa demais para os nossos dentes!»                     
- E foram embora! É inacreditável!
- É verdade, fomos! Avenida da Liberdade abaixo, até ao Rossio, vendo estátuas, montras, admirando as últimas novidades da moda, piscando o olho e sorrindo aos manequins femininos, por sinal muito bem feitos – pareciam autênticos! Aquilo sim: regalava os nossos olhos, não custava dinheiro, não provocava sarilhos, não corríamos quaisquer perigos. Os prazeres viriam a seu tempo. Quando fôssemos livres e com algum dinheiro no bolso pensaríamos nisso. Agora era época de hibernação.

- Não me digam que não gastavam um tostão?!
- Nós não éramos turistas; esses sim, podiam gastá-lo, ganhavam bem; ora nós, a auferir qualquer coisa como trinta escudos por mês… Olha, gastávamo-lo no bar do quartel, a comer umas sandes e a beber cerveja. Quase que nem sequer para isso dava! Nos primeiros quatro meses de tropa deram-me três ou quatro escudos por mês, e sobre esse astronómico vencimento ainda incidiam descontos!
- Miseráveis, unhas-de-fome! E em África, pagavam bem?
- Claro que comparado com o que vencíamos em Portugal significava um aumento enorme: de trinta escudos passamos a receber quinhentos e cinquenta, isto é, dezoito escudos por dia! Na minha humilde oficina tirava entre mil e oitocentos a dois mil escudos todos os meses, qualquer coisa como sessenta escudos diários. Trabalhava muitas horas, mas com gosto, e não corria perigo de vida…
- Não querendo ser indiscreto, que profissão tinha na sua terra?
- Era alfaiate, trabalhava por conta própria.
- Não me diga!
- Sim, desde os dezassete anos. O meu patrão emigrara para França, fora à caça dos francos, e eu abri uma modesta oficina nos baixos da casa onde morava.
- Nunca mais voltou a exercer essa arte?
- Não. Até porque eu nunca cheguei a ser um verdadeiro artista, apenas fui um remendão; mestres eram considerados aqueles que sabiam preparar moldes, cortar o tecido, fazer fatos por medida. Esses, sim! Eu nunca passei de aprendiz, nunca fui além da calça. Uma altura atrevi-me a fazer um casaco e o resultado foi catastrófico: uma manga mais curta do que outra, os chumaços uma miséria! Nunca mais o tentei. O que me valeu foi que o pano tinha sido barato, comprara-o na feira, o prejuízo não se verificou elevado. Depois da disponibilidade, isto é, depois de deixar o exército, fiquei em Lisboa, continuei a estudar à noite, e o pouco que sabia da antiga profissão já esqueci, quase que nem um botão sei pregar!
- Também não exagere. Mas voltando à sua vida militar. Apesar de crítico acérrimo, de só dizer mal, julgo que não era tão ruim assim: tinha roupa de graça, calçado, comida, alojamento… Aprendeu a dirigir um carro, conheceu terras…
- Já vejo que estás a brincar. Só pode. Essa expressão irónica nunca te abandona, mesmo quando estás a falar de assuntos sérios?!      
- Desculpe a ironia, mas não resisto. Tudo isto me parece ter acontecido na Idade Média, no tempo de Carlos Magno… ou até antes, no período em que os lusitanos, comandados por Viriato, resistiam heroicamente aos legionários de Roma.
- Se essas comparações absurdas te divertem e te libertam a bílis, tudo bem! Também eu estou de acordo que não se deve dramatizar o que não é passível de dramatização: o que lá vai, lá vai, e águas passadas não movem moinhos, não ajudam o moer o grão! Deixa continuar o meu relato:
     Um dia entrou para o Trem Auto um jovem de etnia cigana. Ninguém sabia de que quartel vinha. Ficamos todos com inexcedível curiosidade. Era a primeira vez que a gente via um cigano fardado. Em tudo se assemelhava a nós, mas aquela pele avermelhada, a pronúncia, tornava-o diferente. Uma raridade! Perguntamos a um sargento a razão daquela presença, sabíamos que os zíngaros não cumpriam o serviço militar, muito menos agora, que estávamos em guerra. Disse-nos que viera voluntariamente, queria ver como era a tropa, romper com a tradição étnica.
- Aceitaram-no bem, espero.
- Certamente; ninguém ali era racista. Nascera em Portugal, tinha nacionalidade portuguesa… Quanto a mim até tinham obrigação de cumprir o serviço militar, por quê o privilégio?! Por outro lado, esse tempo podiam aproveitá-lo para estudar, para adquirir conhecimentos técnicos, enfim, tornarem-se cidadãos como os outros.
- E depois?...
- Não vais acreditar! Nessa noite ficou aquartelado, mas de manhã, logo após o pequeno-almoço, pôs-se a andar. Com a farda no corpo!
- Foram logo atrás dele?
- Nem penses. O assunto ficou encerrado, por ordem superior. E ninguém falou mais nisso.
     Mas há outro caso também curioso: um filho do proprietário duma grande companhia de transportes, que possuía uma, ou mais agências de viagens, era nosso camarada. Como não tinha estudos, apenas a 4.ª classe da instrução primária, e não quis emigrar, teve de vestir a farda de soldado raso. Acontece que entrava e saía da unidade militar com a maior displicência e facilidade! Umas vezes fardado, outras vezes à paisano. Não comia no quartel, não fazia serviços, nada! Nós estávamos de boca aberta!
- Que tropa fandanga! Assim até dava gosto…
- Pudera! Rico e importante, fazia o que queria. Mas espera: ao cabo de uns dias desapareceu, tal como o gitano. Perguntando nós o que se tinha passado, fomos informados que já passara à disponibilidade – cumprira dois ou três meses! Provavelmente nem um tiro dera!
- Afinal, o rigor no tempo de Salazar é um mito!
- Isto é só aquilo a que assisti. Não fazemos sequer ideia do que se passou na realidade. A podridão alastra em qualquer regime; onde houver humanos há corrupção, há vítimas e privilegiados. Quem tinha dinheiro não permitia que os filhos fossem para a guerra – íamos nós, os pobres, a tal carne para canhão. Daqueles que morreram e ficaram mutilados quantos eram filhos de ricos?
- Nenhum! – afirmou Henrique, peremptoriamente.
- Podes ter a certeza. Até podia haver um caso isolado, a exceção à regra, um jovem família, fascista, que se alistara por ideologia, para defender a “pátria sagrada”, ou empurrado pela família, militarista, mas que eu saiba não.



     Dois meses passam depressa quando as coisas correm mais ou menos de feição. Certo dia chamam Cândido à Secretaria e o amanuense diz-lhe que tinha sido destacado para a Academia Militar, na Rua Gomes Freire, Lisboa, a fim de prestar serviços de condutor. Teria de levar os cadetes para os seus exercícios em Sintra, e arredores, bem como para outros lados; seria, quando a escala assim o determinasse, condutor dia, isto é, nesse dia estaria ao dispor da Academia para ir aonde fosse necessário.                

                                                // (continua)...

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