domingo, 29 de janeiro de 2017

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha 


Segundo consta, esta árvore tem seiscentos anos! 

 
     Chegar perto dos cem anos de idade, ou mesmo ultrapassar essa meta, está a ser relativamente fácil no concelho de Melgaço. A razão é simples: uma boa alimentação, ar puro, estabilidade financeira, graças sobretudo às pensões de aposentação recebidas de França, Suíça, Alemanha, etc. Além disso, os dois lares existentes, o da Santa Casa da Misericórdia e o de Paderne, e casas particulares que aceitam idosos mediante um certo pagamento, são considerados de primeira categoria, com funcionários que tratam com humanidade as pessoas idosas. Outrora as coisas eram diferentes, para pior.
 
 
 
 
Macróbios


ALVES, Venância. Filha de Manuel Alves e de Guilhermina Pires, lavradores, residentes no lugar de Aldeia Grande. Neta paterna de António Caetano Alves e de Albina Rodrigues; neta materna de António Luís Pires e de Maria Pires. Nasceu em Parada do Monte a 22/12/1909 e foi batizada na igreja paroquial a 24 desse mês e ano. Padrinhos: António Caetano Alves, casado, lavrador, e Albina Rodrigues, casada, lavradeira. // Casou na CRCM a 11/4/1928 com o seu conterrâneo Manuel Afonso. // O seu marido morreu na freguesia natal a 29/3/1976. // Ela faleceu na mesma freguesia de Parada do Monte a 2/4/2007, com 97 anos de idade. 

 *

ESTEVES, Manuel. Filho de António Esteves e de Maria Afonso, lavradores, residentes no lugar da Trigueira. Neto paterno de António Esteves e de Lina Cerqueira; neto materno de Francisco Afonso e de Maria Pereira. Nasceu em Parada do Monte a 9/6/1900 e no dia seguinte foi batizado na igreja paroquial. Padrinhos: o seu avô materno, casado, camponês, morador no lugar de Trigueira, e Maria Vieites, viúva, lavradeira, moradora no lugar de Aldeia Grande. // Faleceu na freguesia de Nogueira, concelho de Braga, a 11/11/1995, com 95 anos de idade.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

SONETOS
 
Por Joaquim A. Rocha






(141)

 
 

Escarafunchei a minha memória,

Em busca de segredos escondidos,

De momentos há muito ali esquecidos,

Coisas de nada, sem fama e sem glória.

 

Pouco reencontrei, nenhuma história,

Somente antigos álbuns perdidos,

Cartas de amor, beijos imerecidos,

Traições, ódio, promessas, vanglória. 

 

Não vale a pena escavar o passado,

Querer voltar ao ponto de partida,

Ressurgir o senil esquecimento…

 

Já não vislumbro o alvo procurado,

Vagueando pelas margens da vida,

Esmagando as pedras do tormento.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

DOMINGOS DA ROCHA - UMA VIDA ATRIBULADA

 
    Filho de Belchior Herculano da Rocha e de Maria Libânia Alves. Neto paterno de Gaspar de Brito e Rocha (*) e de Albina da Conceição Alves; neto materno de João António Alves e de Maria Teresa Lourenço. Nasceu na Rua Direita, Vila de Melgaço, a 6/7/1909, e foi batizado na igreja católica a 10 desse mês e ano. Padrinhos: José Pires Rodrigues, solteiro, trabalhador, e Amélia Rodrigues Vieita, solteira, trabalhadora. // Depois da escola primária empregou-se numa farmácia em Valença, mas foi sol de curta duração; voltou para a sua terra, onde aprendeu a arte de sapateiro com José de Brito, João Almeida (Cataluna), “Teixeira de Prado”… e, já mestre, montou oficina no Terreiro (Praça da República), ao lado da “Samaritana”. // O jornal “Melgacense” n.º 116, de 29/7/1928, fala-nos dele: «no passado dia 24 à noitinha foi vítima dum desastre Domingos da Rocha, filho do nosso amigo Sr. Melchior da Rocha, tendo-lhe rebentado na mão esquerda, quando se propunha acender uma bomba dum dos foguetes lançados por ocasião da festa do Sagrado Coração de Maria, e que tinha encontrado na rua Dr. António José de Almeida; ao pobre rapaz foi preciso amputar-lhe um dos dedos, ficando o resto da mão bastante ferida. O doente não inspira, porém, cuidados, sendo satisfatório o seu estado.» // Graças a esse pequeno defeito físico, livrou-se do serviço militar. // Casou a 16/8/1933 com Maria da Glória Gomes, natural de Queirão, Paderne, filha de Maria da Conceição Gomes (e, segundo consta, de Raul Gomes, nascido na freguesia de Paderne a 27/8/1894, o qual morreu em França, em combate, a 9/10/1917). // No dia 10/5/1934 ir-se-ia realizar a festa da Senhora da Orada; a comissão de festas era composta por Domingos da Rocha, Júlio César de Sousa, Flórido Augusto Esteves, e José Rodrigues (NM 230, de 22/4/1934). // Com a guerra civil espanhola (1936-1939) e a II Grande Guerra (1939-1945), as coisas complicaram-se, havia poucos clientes, a matéria-prima escasseava e tinha de ser paga a pronto, e por isso encerrou as portas em 1950 e mudou para o ramo dos comes e bebes. Tomou de trespasse a Adega Regional, que fora do seu sobrinho Henrique Fernandes, mas também aí tudo correu mal. A 4/2/1951 surge no “Notícias de Melgaço” o anúncio: «Por motivos imprevistos, trespassa-se a Adega Regional, sita num dos melhores locais desta Vila. Tratar com Domingos da Rocha.» Seguiram-se mais dois anúncios. Finalmente, no dito jornal, n.º 972 de 1/4/1951, alguém escreveu: «No passado dia 24 (de Março) reabriu ao público a Adega Regional que, mercê de uma grande transformação que a nova gerência lhe introduziu, fica sendo um dos melhores estabelecimentos do género que esta Vila possui. Com o maior conforto e higiene servem-se ali almoços e jantares a preços que, segundo nos consta, são bastante módicos. Esta casa modelar, para bem servir os seus clientes, tem sempre os melhores vinhos da região e o muito apreciado presunto de Melgaço…» Quem tomou conta da Adega foi uma filha de Jerónimo Rodrigues Rego (Cascalheiro), casada com António do Paço. // Assim, a 3/5/1952, Domingos da Rocha parte para Lisboa, tentando arranjar um emprego, por mais modesto que ele fosse, mas acabou por ir para Loures, onde continuou a trabalhar na sua antiga profissão, e noutros serviços mal remunerados e precários. Por fim, em 1957 é admitido como guarda do Museu de Arte Popular, então sob a alçada do SNI (Secretariado Nacional de Informação), onde, apesar do ordenado baixo, se foi aguentando. // Ficou viúvo a 24/11/1962. // Voltou a casar, a 19/6/1967, na igreja de Campolide, Lisboa, com Maria Eugénia da Conceição, viúva. // Logo a seguir à revolução dos cravos (25/4/1974), é promovido a 2.º oficial, categoria com que se aposentou, por limite de idade. // Morreu na sua casa de Campolide a 8/8/1999. Era domingo. O seu corpo está sepultado no cemitério de Benfica. // Foi pai de onze filhos – dois deles, Carlos e Luís, nasceram em Loures. // Apesar de só ter a 4.ª da instrução primária, ou 5.ª classe (admissão aos liceus), era um homem que gostava de ler; possuía alguma cultura, e tinha uma conversa bastante agradável; foi pena a vida ter-lhe pregado algumas partidas. /// (*) Gaspar de Brito e Rocha era solteiro, natural dos Arcos de Valdevez, responsável pela Alfândega em Melgaço, e gerou na sua empregada, Albina da Conceição Alves, melgacense, solteira, três crianças do sexo masculino: Baltazar, Belchior, e Gaspar, os quais foram autorizados a acrescentar ao seu nome o apelido «da Rocha».       

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
Por Joaquim A. Rocha






Dias depois

 

 - Caro amigo Rique: como nem só de violência vive o homem, quero falar-te novamente das madrinhas de guerra, e aproveito o ensejo, se mo permites, para lembrar agradecido o bem que nos fizeram. O seu papel foi muito importante, sobretudo no que diz respeito à suavização dos sacrifícios por nós suportados. Quando chegávamos de uma «operação» tínhamos à nossa espera as tão almejadas cartas, ou aerogramas, cuja agradável leitura servia de bálsamo às tristezas e saudades dos familiares, da terra e dos amigos.

- Como é que vocês obtinham as moradas? – pergunta Henrique, intrigado.

- Fácil. Algumas raparigas eram da nossa terra; logo, sabendo o seu nome completo, estava tudo resolvido. As que não eram da nossa terra, conseguíamos a sua morada e nome através de soldados seus conterrâneos.

- Havia trocas, então!

- Exactamente. Destarte, eu tive a felicidade de me corresponder com madrinhas de Coimbra, do Porto, de Lisboa, do Minho, e até de França! Ao todo foram sete, como noutro dia te contei.  

- Eram uma espécie de namoradas?!

- Não as considerávamos tal, apesar de alguns rapazes virem mais tarde a casar com a sua madrinha de guerra – penso que se tratava de excepções. A nossa vida no ultramar era tão fugaz, tão instável, que seria da nossa parte quase criminoso estar a fazer promessas e juramentos a moças tão puras.

- Mas nem todos morriam, ou ficavam feridos – concluiu Henrique.

- Tens toda a razão, a maioria regressou a Portugal, mas essas raparigas da província não teriam, nessa época, quaisquer dificuldades em casar-se com emigrantes, e não deveríamos ser nós, egoisticamente, a evitá-lo ou a adiar tal acto.

     Para aqueles que regressavam sem mazelas, a vida profissional só se equilibraria passados anos – raros voltavam ao trabalho ingrato do campo ou ao labor sujo e por vezes mal remunerado da oficina. Aspirava-se a outros espaços, normalmente a cidade, a outros horizontes.   

- E o tal amor à terra de nascimento?!

- Nunca ouviste dizer: «santos da casa não fazem milagres?» A nossa terra natal, quase sempre madrasta, já não nos cativava com carácter permanente. A pobreza, aquela pobreza consentida e envergonhada, deixava de fazer sentido. Tínhamos lutado numa guerra, depois dela iríamos iniciar outra: esta, mais pacífica, mais previsível, mas nem por isso menos dificultosa! Além disso, com o pronto-a-vestir, as alfaiatarias tendem a encerrar – é o progresso!

- Já que quis abordar esse assunto, pedia-lhe que me lesse mais uma carta dessa sua madrinha.

- Terei todo o gosto. Ouve:

 

 

Querido afilhado

 

     Recebi o seu aerograma, no qual vi que estava de boa saúde; dou graças a Deus, pois é esse o meu desejo.

     Pelo que me mandou dizer, quanto a ser jornalista, não me expliquei bem; nunca me passou pela cabeça ser tal coisa. Que eu tivesse jeito está certo, pois como aqui na minha terra é um meio pequeno a gente sabe tudo, e quando vou para casa conto essas novidades, e lá dizem-me que podia ter essa prestigiada profissão.

     Afilhado, a sua muito estimada madrinha pede que lhe mande uma foto; já sei o seu nome, agora falta-me conhecê-lo. Depois eu mando-lhe a minha, mas é quando tiver tempo para a tirar, pois sou um pouco alérgica a tirar fotografias, mas desde já o aviso que não sou nenhuma beldade, como as artistas de cinema.

     Então o seu coração não o enganou quanto a eu lhe escrever, mas também não se enganou ao pensar que sou muito sentimental; há pessoas no emprego onde estou que me dizem que isso já passou de moda, encolho os ombros e não me interessa o que dizem, gosto muito da solidão, pois assim já a gente pensa à nossa vontade, mas também gosto de conviver com a minha família e com os meus amigos.

     Manda-me dizer que está no mato, por os filmes que vejo, ou certos documentários, tenho verificado o que passam os soldados. Isso aí é muito perigoso? Não se exponha muito aos perigos para eu cá não estar em aflições, com receio que lhe aconteça alguma coisa de mal.

     Agora vou-lhe dizer que quando me escrever não me escreva pouco, quando recebo cartas gosto que elas sejam grandes. Portanto, já sabe: quando me escrever quero ver os aerogramas bem recheados de palavras e nada de muitos espaços vazios. Sou nova, mas você há-de pensar que eu gosto de mandar; é verdade, pois o meu mal às vezes é ser muito franca com as pessoas e depois quem fica prejudicada sou eu.

     Por hoje é tudo, receba muitos abraços desta sua madrinha muito amiga.

                               

                                                    Fernanda

 

 

- E então, o meu amigo, mandou-lhe a fotografia…

- Sabes, as raparigas da Metrópole pensavam, decerto, que havia ali à mão fotógrafos ou coisa que o valha. Muitas vezes tínhamos de esperar um ror de tempo, pois era raro ver-se um estúdio fotográfico. Só nas cidades, e não era em todas!

- Mas existe muita fotografia desse tempo…

- Isso em parte é verdade, mas porque alguns militares, talvez os mais endinheirados e evoluídos, dispunham de uma máquina; outros ganhavam uns escudos com essa actividade extra – possivelmente já seriam amadores, ou profissionais, antes, não sei. O problema residia, sobretudo, em fazer chegar os negativos à cidade e obter os rolos para tirar novas fotos.         

 

*

      

     A luta armada tem o condão de endurecer o espírito dos humanos. Os mortos, os feridos, os desesperados, já quase não conseguiam comover-nos, impressionar-nos, como no início da comissão. O que agora ocupava todo o nosso cérebro era a ideia obsessiva da sobrevivência e do regresso. Os meses passavam, embora lentamente, e mais um dia de vida significava uma grande vitória individual. Ninguém falava em vencer a guerrilha, «os libertadores», pois sabíamos, ou pensávamos, por razões óbvias, que vencê-la seria praticamente impossível. Eles não precisavam de muita gente no terreno; poucos, bem treinados, conhecedores da zona, espalhavam o terror pela região.

- Estava a tornar-se um caso político…

- Acho que sim. Aliás, tenho a certeza disso. Somente os membros do governo e os deputados, em Lisboa, capital do decadente Império, poderiam, através de negociações, chegar a um acordo razoável com os líderes do PAIGC. Porém, o governo português, chefiado pelo ditador Salazar, não queria ouvir falar em tais coisas! A sua maneira de pensar e de agir tinham ficado bem claras aquando da «Abrilada», em 1961, esboço abortado de golpe, encabeçado pelo ministro da Defesa, general Botelho Moniz, cujo objectivo seria encontrar uma solução de tipo federativo para o Ultramar.

- Não queria estar na pele desse general…

- Não sei o que lhe aconteceu. O “iluminado” de Santa Comba pensava que o nosso exército, desde que bem apoiado e moralizado, com uma retaguarda eficaz, levaria de vencida «esses grupos terroristas» mal armados e insuficientemente preparados militarmente.

- O professor universitário beirão subestimava o inimigo.

 - Acho que sim. Esses “grupos” conheciam o terreno como ninguém, eram apoiados pelas populações, e alguns dos seus homens tinham sido treinados por soviéticos e cubanos; além disso, possuíam armamento desses países. Por outro lado, o exército português encontrava-se a combater em Angola desde 1961, Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964): nada mais, nada menos, do que em três frentes simultaneamente!

- Era quase impossível manter essa situação por muito mais tempo… - assevera o interlocutor.

- Portugal, país pouco relevante e de influência reduzida no contexto das nações, se o compararmos com as grandes e poderosas potências, tão pouco e desarmoniosamente desenvolvido, não conseguiria com certeza aguentar por muitos mais anos essa desgastante guerra, quer em termos humanos (os jovens cada vez emigravam em maior quantidade para o estrangeiro), quer em meios económicos e financeiros, pese embora o facto de se dizer agora que nos cofres do Banco de Portugal se guardavam toneladas e toneladas de ouro!     

- Existia ainda a pressão internacional…

– Sim, sim; o nosso país estava a ficar isolado. Mais: tinha sido, no ano de 1961, humilhado pela União Indiana, de Neru. Como esquecê-lo?

- Uma coisa que nunca percebi foi o facto dos colonos brancos não se terem organizado num Partido forte e pegado em armas para defenderem as suas vilas e cidades, as suas propriedades, em suma…

- Nem eu, meu amigo, nem eu! Dependeram sempre daqueles que iam da Metrópole, como eu e outros, que nada tínhamos a ver com aquilo, e nem sequer cumpriam o serviço militar, e se o cumpriam ficavam normalmente em sítios onde não havia “porrada”! Não se queriam comprometer? Esperavam para verificar para que lado os pratos da balança pendiam? O governo central não o permitiu?

- No meu fraco entender, essas interrogações jamais terão resposta convincente…

- Havia muitos interesses em jogo. Muitos brancos já não se consideravam portugueses!
                                                         // continua...
 

sábado, 21 de janeiro de 2017

OS NOVOS LUSÍADAS
(tentativa de continuação de Os Lusíadas, de Camões)
 
Por Joaquim A. Rocha








54

 

Tomam a fortaleza de Safim,

À cabeça Diogo de Azambuja…

Mas que malta tão afoita e ruim

Que faz que aquela boa gente fuja. 

Roubaram pimenta, ouro, marfim…

Eis a bestial festa da maruja!

E para que mais nada reste

Deixaram lá escorbuto e peste.

 

55

 

E diziam-se eles homens cristãos,

Aquelas verdadeiras feras à solta;

Os olhos vítreos, sujas as mãos,

Sempre em pé de guerra, em revolta.

Matavam por prazer, os cidadãos

Daquelas pobres terras ali à volta.

Não tinham pena, dó, nem consciência,

Cultivavam no lazer a violência.

 

56

 

Ai rei de Portugal e dos Algarves,

Senhor da Guiné, daquém, dalém mar,

Ente vaidoso, chefe dos alarves,

Perito em mentiras, em intrujar;

Pede perdão aos céus, não tardes,

Porque o teu tempo está a terminar.

Entrega a satanás a tua alma

Pra ele te dar na morte paz e calma.

 

57

 

Quantas mulheres tornaste viúvas,

Quantos seres roubaste à natureza,

Tuas mãos rudes, vestidas de luvas,

Levaram aos lares fome e tristeza;

Nas praias vemos homens sem peúgas

Sustentando os luxos da realeza.

Antes que a revolta estale em seu peito

Urge mudar a lei e o direito.

 

58

 

Vamos dar ao povo o que é do povo,

Esqueçamos reis, príncipes, rainha,

Ofereça-se ao pobre um mundo novo,

Arroz de pato, canja de galinha,

Um ordenado que seja o dobro

Dessa insignificância mesquinha.

Pra que o trabalhador seja feliz

Não o obriguem a dobrar a cerviz.

 

59

 

Mísera terra, e míseros sóis,

Que cobrem com seu manto essa gente;

Giram na onda como girassóis,

A nenhum deus do Olimpo são temente.

Alimentam-se de ótimos rissóis,

São donos da ilha e do continente.

Controlam o tempo, a luz, a chuva,

Bebem espumante da pura uva.
 
 
// continua...

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha 







Eu não sou rico nem pobre,

Só tenho o suficiente;

Pra não pedir a ninguém,

E olhar todos de frente.

 
*

 
Meu sogro é homem rico,

Nada em rios de dinheiro;

Tem quintas no Alentejo,

E terças no mundo inteiro.

 
*

 
Roubaram o meu relógio

Lá pràs bandas do Rossio;

Deve ter sido o Ambrósio,

Esse gatuno do Rio.


*

Dizei-me senhora minha

Se gostais do meu cantar;

É pobre, eu sei-o bem,

Só serve para assustar.

 


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






VI JOGOS FLORAIS DE MELGAÇO

(continuação)
 

     Em primeiro lugar permitam-me que corrija o erro tipográfico (A Voz de Melgaço n.º 1015, página 7) que alterou um pouco o sentido da frase «A corrupção existe, ninguém o pode negar, mas não nestas coisas, seria simplesmente absurdo!» O plural dá-lhe outra dimensão; «coisas», neste contexto, significa concursos, jogos florais, «brincadeiras», havendo em jogo pequenos prémios, quantias insignificantes. O mais importante neste tipo de «coisas», o que está verdadeiramente em causa, é o prestígio de quem concorre.

     Outro erro, mas este não tipográfico, e que o júri “deixou passar”, encontra-se no texto em prosa «Viagens anuais de e para Melgaço». Onde se lê «… Portugal começou há cerca de dois mil anos» deve ler-se «… Portugal começou há cerca de 800 anos», ou seja, no século XII.

     Há dias estive a conversar com um amigo que tem o “vício” de concorrer a quase todos os jogos florais do país e confessou-me que não é o dinheiro que o atrai (é aposentado e tem uma pensão muito acima da média). Disse-me que ganhou um prémio em Silves. Eu, curioso, perguntei-lhe o montante do mesmo. - «Qual quê! Nem um tostão em dinheiro; apenas um fim-de-semana no hotel e visita guiada à cidade e arredores. Ficamos a conhecer em pormenor a cidade e a gostar dela. O presidente da Câmara Municipal almoçou connosco e falou-nos com paixão da sua bela terra.» E em Melgaço? Os laureados recebem um cheque de trinta e cinco, vinte e cinco, e quinze contos de réis, e o foral afonsino, posto a seguir à venda por 500$00! E missão cumprida: «voltem para o ano!» As pessoas que escrevem são extraordinariamente sensíveis e não gostam de ser maltratadas. Se o júri atribui prémios aos trabalhos concorrentes é porque eles têm de facto algum valor. Logo, os seus criadores são pessoas dignas de consideração e não de um quase desprezo. O presidente da Câmara e o vereador da Cultura deveriam disponibilizar um dia (sábado ou domingo) e almoçarem com os concorrentes que obtiveram prémios. No fim do almoço diriam algumas palavras amáveis e entregariam os diplomas. Não era mais bonito assim? O dinheiro dos prémios cobria as despesas do restaurante. Por outro lado, afastava todos aqueles que eventualmente participam na mira de um prémio pecuniário.

     A propósito: a Câmara Municipal de Melgaço vai inaugurar (julgo que em breve) a Casa da Cultura. Será que já dispõe de agentes culturais: bibliotecário, por exemplo? Ou vai ali colocar pessoas sem formação adequada?!

     Terminamos hoje a publicação dos textos selecionados:



 

A Promessa

 
     Desde aquela grande peste que as gentes de Melgaço, já de si tão devotas que eram de Nossa Senhora da Orada, se apegaram mais a Ela em sua devoção. Dava-se o caso de, à distância de algumas léguas em derredor, aquém e além da raia, as pessoas serem ceifadas por um mal que lhes dava de repente, que as prostrava logo de entrada com uma febre tão alta que não havia tisana, por mais revulsiva que fosse, com poderes para a debelar. Bem que os facultativos se esforçavam, com os limitados recursos médicos de antanho, por encontrar remédio para tão danoso mal. E, a par deles, os curandeiros e até mesmo mulheres de “virtude” se empenhavam, por suas artes naturais e sobrenaturais, para travar a moléstia causadora de tamanha mortandade. Chegavam à Vila notícias aterradoras e vivia-se no temor angustiante de que o mesmo mal se instalasse dentro dos seus muros. Sabia-se que toda e qualquer pessoa que era tocada por algum incómodo de saúde logo se apavorava com medo de ter chegado a sua vez na peste e isso quase sempre acontecia. Para evitar que mais terror se apossasse das populações afetadas, já as pessoas morriam e se enterravam sem que os sobrevivos dessem notícias aos doentes, daqueles que iam sucumbindo, mesmo que familiares fossem. Constava até que sob os lajedos das igrejas e dos adros já não havia mais lugar para novos sepultados; desse modo e pela força das circunstâncias se anteciparam muitos povos à lei que, por meados do século XIX, criava os cemitérios públicos. Foi assim que, pelo menos provisoriamente, os terreiros dos castelos e outros logradouros comuns, vieram a servir de campo santo tornando mais fácil a aceitação da referida lei de 1875 que nem por isso deixou de ser polémica.

     E a epidemia, segundo constava, não mostrava jeitos de abrandar!... Os párocos, a conselho dos físicos, recomendavam abaixo dos altares que se evitassem os grandes ajuntamentos de pessoas a velar os defuntos e nos enterros para, de algum modo, travar os contágios. Mas os escrúpulos religiosos e os impulsos afetivos por aqueles que partiam eram tão fortes nos povos que estes não aceitavam de bom grado o prudente conselho e porfiavam nos seus hábitos tradicionais de promiscuidade gregária. Daí que, e à falta de recursos médicos que a ciência ainda não descobrira, quando começaram a chegar notícias de peste em povoações mais próximas, as pessoas devotas se voltassem para Deus. Foi assim que, por inspiração de uma alma piedosa que em determinado domingo daquela primavera atribulada, se fez a promessa que deu nome a esta história. Assistia ela à missa na igreja de Santa Maria da Porta quando reparou no círio pascal a lacrimejar a cera, lembrando-lhe então de aventar a ideia de um voto coletivo de levar à Senhora da Orada os resíduos de todos os círios pascais das freguesias do concelho, nos dez dias que medeiam em a quinta-feira da Ascenção do Senhor e o domingo do Divino Espírito Santo para que Deus se apiedasse de Melgaço e terras vizinhas, livrando-as de sofrer tão horrível flagelo. A esse voto se associaram depois outros povos como o de Monção e de Valadares.

     Tanto e tamanho fervor pôs a gente nessa súplica que o medo e o terror se dissiparam pela confiança cega na misericordiosa providência de Deus e, fosse pelo que fosse (a nossa fé nos salva) a moléstia não entrou em Melgaço! Também logo chegaram novas de que, lá longe, ela começava a declinar, e que muitas pessoas que – ao tempo de se fazer tal promessa – jaziam enfermas começaram a restabelecer-se, o que até ali não sucedera nunca, nem a ninguém, nos lugares infetados.

     O tempo correu no seu curso incessante, porém «sempre Melgaço ficou fiel ao seu voto; para ele, compromisso é compromisso, pois jamais se esqueceu da sua celestial protetora. E ainda hoje Melgaço, personificado nas suas gentes, lá vai ao seu santuário, se bem que de um modo menos formal, agradecer à Senhora da Orada tê-lo livrado de tamanha provação

     O conhecimento de tão extraordinária graça impressionou vivamente os povos a muitas léguas de distância onde a peste ceifou vidas, os quais, penitenciando-se talvez da sua falta de fé naqueles tempos, adotaram a mesma devoção e também ali acorrem agora em piedosa romaria, não só para lembrar o milagre como também para pedir-lhe socorro nas intempéries que às suas lavouras trazem dano. As vidas dos povos são assim «viagens no tempo» que deixam lá para trás searas de recordações onde, de vez em quando, gostamos de meter a foice.

       

                         Francisco Martins (3.º prémio).                   

                                              *


 
Ser Melgaço
 

Percorrer este concelho

É mergulhar na História,

Despertar do sono velho,

Entre as cinzas da Memória,

Os limites dum Condado,

Sobre um rio setentrional;

É sentir, emocionado,

Como nasceu Portugal…

É ser sopro, brisa, vento,

Ganhar asas de bonança;

Ser alma, ser pensamento,

Vogar de herança em herança

Do Passado que se hasteia,

Cintila e se ergue fanal,

Onde a Glória se norteia,

Flamejante, de imortal…

É ser aedo, jogral…

É cantar sobre a Muralha,

Melgaço medieval,

Em medieva batalha;

Ir à torre de menagem

E nutrir espectativas

De vislumbrar, na paisagem,

Longínquas sombras furtivas…

É ser monge velho e cano

- toga, capuz e missal –

E canto gregoriano,

Na Igreja Paroquial.

Desbravar trilhos velhinhos

De sandálias desgastadas,

P’ra pregar outros caminhos,

Na Senhora da Orada…

É ser um vilão, sem regra

- farrapo filho do nada –

Mas ser fã da Inês Negra

E apupar a Renegada…

Ser soldado que lutou,

Na heroica Restauração;

E ser povo que a Junot

Gritou o primeiro Não…

É ser o orgulho que ensopa

A amura setentrional

Desta proa da Europa

Que se chama Portugal!

 

José Domingos (2.º prémio).
 

*

Nota: o terceiro prémio foi ganho por mim próprio, com o poema «Perene Herança», o qual será publicado no meu livro «Poemas ao Vento».
 

  O artigo «VI Jogos Florais» foi publicado em A Voz de Melgaço n.º 1017, de 1/11/1994.