LINA, FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
castrejas |
7.º Capítulo
O tempo continuou
a sua viagem interminável. Agora a Lina na intimidade já tratava o seu patrão
por tu, como se fosse seu marido. A casa estava um brinco, ele andava mais
limpinho, até parecia mais novo. Habituara-se a cortar a barba todos os dias «uma chatice», como ele dizia, a mudar de
roupa, sobretudo interior, a dormir em lençóis lavados, a comer com outros
modos mais urbanos, enfim, até já parecia um cavalheiro, homem da cidade. Os
outros castrejos brincavam com ele:
- Ó Manuel, a tua amásia trata-te bem. Até cheiras a
água-de-colónia. Daqui a pouco até te obriga a pintar as unhas!
- Que quereis! As mulheres querem-nos escorreitos e asseados.
Vós sois uns porcos, cheirais a fumo e a esterco. Andais arredados da limpeza. As
damas da Ribeira não vos querem por isso. Tendes que ter novos hábitos de
higiene. Eu tenho à venda tudo o que precisardes, aqui na loja, por que não comprais?
- Isso era o que tu querias, que nós gastássemos o
nosso dinheirinho em luxos. Custou-nos muito a ajuntá-lo. Deixa-o estar no
mealheiro. Eu dou-me bem com a porcaria. Sempre vivi assim e não é agora que
vou mudar. Até o gado fugia de mim, se cheirasse como tu. E a minha
cara-metade? Essa ficava cheia de ciúmes, pensava logo que lhe estava a ser
infiel.
E a conversa
continuou, sempre naquele tom galhofeiro, com gargalhadas pelo meio. O certo é
que o negócio melhorou. As raparigas de Castro da Serra gostavam de fazer
compras na loja do “Ti Manel”, e algumas até lhe andavam a arrastar a asa:
rico, com bom aspecto, era um bom partido. Mas aquela criada estava a levá-lo à
certa, por este andar ainda casava com ela. «Não está certo», comentavam algumas. «Um castrejo deve contrair matrimónio com uma castreja, foi sempre assim».
E juravam vingança.
A Lina
notou alguma hostilidade nos olhos das conterrâneas do amante e patrão. À ceia
disse ao seu homem:
- Ó Manuel, as tuas patrícias parece que estão zangadas
comigo. Olham-me com ódio, com inveja, até parece que lhes fiz mal.
- E fizeste. Roubaste-me o coração. Sou teu e até pode
ser que venha a casar contigo. Elas invejam-te. De acordo com os nossos
costumes ancestrais eu devia ter por esposa uma castreja, mulher da minha raça,
mas gosto de ti e pronto. Ninguém me vai obrigar a mudar de ideias. No meu
coração mando eu.
- Temos uma maneira de mudar isto: já que gostamos um
do outro, e nunca nos vamos separar, tu vendes aqui o estabelecimento e abres
outro na Vila, na sede do concelho. Eu conheço bem aquele sítio e sei que vais
ter êxito. Não quero que os nossos filhos vivam aqui no inferno, quer pelo
clima, quer pelo ódio e desprezo das tuas conterrâneas.
- Não me digas que andas de esperanças?!
- Que esperavas, meu querido? Depois de tanto tempo a
dormirmos juntos querias que isto não acontecesse? Não estás contente?
- Nesta idade já não esperava ter filhos. Que venha
por bem.
- Aceitas a minha ideia? Ah! Se for rapaz pomos-lhe o
nome do teu falecido pai; se for rapariga, o da tua falecida mãe.
- Do nome, aceito; mas quanto a vender isto! Nasci
aqui, ausentei-me por uns anos, mas voltei sempre. É a minha terra, eu gosto de
Castro da Serra, sinto-me bem neste lugar. À Vila vou só para mercar; não gosto
muito daquela gente emproada, interesseira e atrevida.
- É porque não os conheces bem; depois de os conhecer
vais achá-los iguais aos outros, as diferenças não são muitas, vais ver. Eu já
passei por essa experiência. Por outro lado, agora com a estrada, é um salto de
cabra de lá aqui. Quando quiseres podes vir à tua aldeia visitar os teus
parentes e amigos. Eles também vão ver-te.
- Estás a convencer-me. Vou tratar disso. Não quero
que os nossos filhos passem o frio e as dificuldades que nós passamos aqui no
inverno. Está decidido, vamos viver lá para baixo, onde o clima é mais ameno.
O senhor
Manuel trespassou rapidamente a loja, bem afreguesada, a um seu parente
afastado, do lugar de Marreco, que estava a enriquecer com o contrabando. «Cem notas, está bem?» - propôs o
comprador. «É barato, mas está bem,
negócio fechado!» O conterrâneo puxa da carteira, já ia preparado, e
entrega-lhe o dinheiro. O vendedor nem sequer o contou. Os castrejos eram
assim: confiavam cegamente uns nos outros. Não era necessário ir ao Notário, papelada,
a palavra de um castrejo, a honradez secularmente provada, chegavam. // continua...
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