LEMBRANÇAS AMARGAS
Romance
Por Joaquim A. Rocha
XII
As surpresas são o prazer do quotidiano
Mais ou menos duas horas
depois, extenuadíssimo, cheio de vergonha, com o coração amargurado, indeciso, eis
que a casa do espantado agricultor se mostra. Logo que ele me vê, pergunta-me:
- Tu por aqui, Cândido?!
- Senhor Norberto, desculpe, o meu patrão mandou-me receber o
dinheiro das meias-solas, disse-me para não sair de ao pé de si sem o dinheiro
ou os sapatos.
- O teu patrão é um filho de loba, um perro, diz-lhe isso mesmo,
quem pensa ele que eu sou: um ladrão, um vigarista, um trapaceiro? Eu sou um
homem de boas contas, não devo nada a ninguém, e se devo pagarei, agora não
tenho dinheiro, gastei o que tinha em adubos e sementes, não tenho um tostão em
casa, mas também preciso dos sapatos para ir à Vila, não posso ir de tamancos,
é uma vergonha, as botas estão a desfazer-se, maldita vida de lavrador, nem
para botar meias-solas nuns sapatos um homem tem dinheiro, no dia de feira já
lhe pago, vou vender umas cabeças de gado, já arranjo algum, diz-lhe que não
lhe fico a dever, eu sou um homem honrado, ele devia saber isso, ai o filho da mãe
que o pariu, pensa que eu não sou de contas, o cabrão veio de São Bernardo com
uma mão à frente e a outra atrás, ele pensa que eu não sei quem ele é, o
miserável, filho de um juiz de fora, ninguém gostava dele, pediu transferência
logo que a amásia ficou de barriga, se não fossem os outros dar-lhe alguma
coisa tinha morrido de fome, nem o pai o viu alguma vez, se calhar nunca soube
quem era, o filho da mãe, má rês, eu sei bem quem é o meu pai, tenho o nome na
cédula, ele não.
- Mas, senhor Norberto, ele ameaçou que me cascava se aparecesse na
loja sem os sapatos ou o dinheiro, o que é que eu posso fazer, se não levar os
sapatos fujo, não terei coragem de lhe aparecer de mãos vazias, quando se zanga
é uma verdadeira fera, esfrangalha-me todo! Por que é que o senhor não me dá os
sapatos e vai lá amanhã buscá-los? Se eu apareço de mãos a abanar, mata-me!
- Quem mata esse bandido, esse anormal, sou eu, levo um estadulho e
dou-lhe com ele pelo lombo abaixo, parto-lhe os ossos todos do corpo, que ele
bem merece, tu não tens culpa, que ele é teu patrão, tu obedeces-lhe, não tens
outro remédio, mas eu não sou empregado dele, não lhe tenho medo, diz-lhe a ele
isto, que ele quando me vir até se caga todo, dou-lhe uma coça que vai ver, nem
sabe de que terra é, leva os sapatos, leva, que eu até já nem os quero, que os
sirva à ceia, os marinheiros da nau Catrineta também rilharam sola, que se
empanturre com eles.
- Obrigado senhor Norberto, que Deus lhe pague, já não sabia o que
fazer à minha vida, mal de quem obedece, o senhor, apesar de tudo, é livre, não
tem quem mande em si.
- O meu patrão são os campos, o gado, o tempo, a natureza em geral,
os produtos que quero comprar e não arranjo capital, as dívidas, a colheita,
tudo, ninguém está bem nesta terra, só os ricos, os da Câmara, mas esses não
nos ajudam, ainda nos enterram, se puderem, décimas e mais décimas, esses
esbirros dos impostos não largam a gente; não te iludas, rapaz, os pequenos
agricultores não são senhores, são escravos! E os de Lisboa não vêm cá! O mais
certo é nem saberem que existimos. Que eu gosto do Salazar, se não fosse ele ainda
estaríamos pior, salvou o país da bancarrota e endireitou Portugal, claro que
nós os do campo nada beneficiamos com tudo isso, mas pelo menos o país continua
a ser dos portugueses, olha que esteve em vias de ir parar às mãos dos
comunistas, e dos estrangeiros, isto disse-mo um senhor importante.
- Ó senhor Norberto, eu não percebo nada dessas coisas, sou muito
novo, o que eu queria era os sapatos ou o dinheiro; para mim tanto me dá que
sejam uns ou outros, o meu país é a minha terra, nunca saí daqui.
- Tens razão, rapaz; na tua idade isso não interessa. Quando fores
mais crescido, quando tiveres de tomar decisões, de escolher, poderá vir a
interessar-te esse assunto, agora é ainda muito cedo para saberes dessas coisas. // Continua...
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