terça-feira, 17 de janeiro de 2017

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






VI JOGOS FLORAIS DE MELGAÇO

(continuação)
 

     Em primeiro lugar permitam-me que corrija o erro tipográfico (A Voz de Melgaço n.º 1015, página 7) que alterou um pouco o sentido da frase «A corrupção existe, ninguém o pode negar, mas não nestas coisas, seria simplesmente absurdo!» O plural dá-lhe outra dimensão; «coisas», neste contexto, significa concursos, jogos florais, «brincadeiras», havendo em jogo pequenos prémios, quantias insignificantes. O mais importante neste tipo de «coisas», o que está verdadeiramente em causa, é o prestígio de quem concorre.

     Outro erro, mas este não tipográfico, e que o júri “deixou passar”, encontra-se no texto em prosa «Viagens anuais de e para Melgaço». Onde se lê «… Portugal começou há cerca de dois mil anos» deve ler-se «… Portugal começou há cerca de 800 anos», ou seja, no século XII.

     Há dias estive a conversar com um amigo que tem o “vício” de concorrer a quase todos os jogos florais do país e confessou-me que não é o dinheiro que o atrai (é aposentado e tem uma pensão muito acima da média). Disse-me que ganhou um prémio em Silves. Eu, curioso, perguntei-lhe o montante do mesmo. - «Qual quê! Nem um tostão em dinheiro; apenas um fim-de-semana no hotel e visita guiada à cidade e arredores. Ficamos a conhecer em pormenor a cidade e a gostar dela. O presidente da Câmara Municipal almoçou connosco e falou-nos com paixão da sua bela terra.» E em Melgaço? Os laureados recebem um cheque de trinta e cinco, vinte e cinco, e quinze contos de réis, e o foral afonsino, posto a seguir à venda por 500$00! E missão cumprida: «voltem para o ano!» As pessoas que escrevem são extraordinariamente sensíveis e não gostam de ser maltratadas. Se o júri atribui prémios aos trabalhos concorrentes é porque eles têm de facto algum valor. Logo, os seus criadores são pessoas dignas de consideração e não de um quase desprezo. O presidente da Câmara e o vereador da Cultura deveriam disponibilizar um dia (sábado ou domingo) e almoçarem com os concorrentes que obtiveram prémios. No fim do almoço diriam algumas palavras amáveis e entregariam os diplomas. Não era mais bonito assim? O dinheiro dos prémios cobria as despesas do restaurante. Por outro lado, afastava todos aqueles que eventualmente participam na mira de um prémio pecuniário.

     A propósito: a Câmara Municipal de Melgaço vai inaugurar (julgo que em breve) a Casa da Cultura. Será que já dispõe de agentes culturais: bibliotecário, por exemplo? Ou vai ali colocar pessoas sem formação adequada?!

     Terminamos hoje a publicação dos textos selecionados:



 

A Promessa

 
     Desde aquela grande peste que as gentes de Melgaço, já de si tão devotas que eram de Nossa Senhora da Orada, se apegaram mais a Ela em sua devoção. Dava-se o caso de, à distância de algumas léguas em derredor, aquém e além da raia, as pessoas serem ceifadas por um mal que lhes dava de repente, que as prostrava logo de entrada com uma febre tão alta que não havia tisana, por mais revulsiva que fosse, com poderes para a debelar. Bem que os facultativos se esforçavam, com os limitados recursos médicos de antanho, por encontrar remédio para tão danoso mal. E, a par deles, os curandeiros e até mesmo mulheres de “virtude” se empenhavam, por suas artes naturais e sobrenaturais, para travar a moléstia causadora de tamanha mortandade. Chegavam à Vila notícias aterradoras e vivia-se no temor angustiante de que o mesmo mal se instalasse dentro dos seus muros. Sabia-se que toda e qualquer pessoa que era tocada por algum incómodo de saúde logo se apavorava com medo de ter chegado a sua vez na peste e isso quase sempre acontecia. Para evitar que mais terror se apossasse das populações afetadas, já as pessoas morriam e se enterravam sem que os sobrevivos dessem notícias aos doentes, daqueles que iam sucumbindo, mesmo que familiares fossem. Constava até que sob os lajedos das igrejas e dos adros já não havia mais lugar para novos sepultados; desse modo e pela força das circunstâncias se anteciparam muitos povos à lei que, por meados do século XIX, criava os cemitérios públicos. Foi assim que, pelo menos provisoriamente, os terreiros dos castelos e outros logradouros comuns, vieram a servir de campo santo tornando mais fácil a aceitação da referida lei de 1875 que nem por isso deixou de ser polémica.

     E a epidemia, segundo constava, não mostrava jeitos de abrandar!... Os párocos, a conselho dos físicos, recomendavam abaixo dos altares que se evitassem os grandes ajuntamentos de pessoas a velar os defuntos e nos enterros para, de algum modo, travar os contágios. Mas os escrúpulos religiosos e os impulsos afetivos por aqueles que partiam eram tão fortes nos povos que estes não aceitavam de bom grado o prudente conselho e porfiavam nos seus hábitos tradicionais de promiscuidade gregária. Daí que, e à falta de recursos médicos que a ciência ainda não descobrira, quando começaram a chegar notícias de peste em povoações mais próximas, as pessoas devotas se voltassem para Deus. Foi assim que, por inspiração de uma alma piedosa que em determinado domingo daquela primavera atribulada, se fez a promessa que deu nome a esta história. Assistia ela à missa na igreja de Santa Maria da Porta quando reparou no círio pascal a lacrimejar a cera, lembrando-lhe então de aventar a ideia de um voto coletivo de levar à Senhora da Orada os resíduos de todos os círios pascais das freguesias do concelho, nos dez dias que medeiam em a quinta-feira da Ascenção do Senhor e o domingo do Divino Espírito Santo para que Deus se apiedasse de Melgaço e terras vizinhas, livrando-as de sofrer tão horrível flagelo. A esse voto se associaram depois outros povos como o de Monção e de Valadares.

     Tanto e tamanho fervor pôs a gente nessa súplica que o medo e o terror se dissiparam pela confiança cega na misericordiosa providência de Deus e, fosse pelo que fosse (a nossa fé nos salva) a moléstia não entrou em Melgaço! Também logo chegaram novas de que, lá longe, ela começava a declinar, e que muitas pessoas que – ao tempo de se fazer tal promessa – jaziam enfermas começaram a restabelecer-se, o que até ali não sucedera nunca, nem a ninguém, nos lugares infetados.

     O tempo correu no seu curso incessante, porém «sempre Melgaço ficou fiel ao seu voto; para ele, compromisso é compromisso, pois jamais se esqueceu da sua celestial protetora. E ainda hoje Melgaço, personificado nas suas gentes, lá vai ao seu santuário, se bem que de um modo menos formal, agradecer à Senhora da Orada tê-lo livrado de tamanha provação

     O conhecimento de tão extraordinária graça impressionou vivamente os povos a muitas léguas de distância onde a peste ceifou vidas, os quais, penitenciando-se talvez da sua falta de fé naqueles tempos, adotaram a mesma devoção e também ali acorrem agora em piedosa romaria, não só para lembrar o milagre como também para pedir-lhe socorro nas intempéries que às suas lavouras trazem dano. As vidas dos povos são assim «viagens no tempo» que deixam lá para trás searas de recordações onde, de vez em quando, gostamos de meter a foice.

       

                         Francisco Martins (3.º prémio).                   

                                              *


 
Ser Melgaço
 

Percorrer este concelho

É mergulhar na História,

Despertar do sono velho,

Entre as cinzas da Memória,

Os limites dum Condado,

Sobre um rio setentrional;

É sentir, emocionado,

Como nasceu Portugal…

É ser sopro, brisa, vento,

Ganhar asas de bonança;

Ser alma, ser pensamento,

Vogar de herança em herança

Do Passado que se hasteia,

Cintila e se ergue fanal,

Onde a Glória se norteia,

Flamejante, de imortal…

É ser aedo, jogral…

É cantar sobre a Muralha,

Melgaço medieval,

Em medieva batalha;

Ir à torre de menagem

E nutrir espectativas

De vislumbrar, na paisagem,

Longínquas sombras furtivas…

É ser monge velho e cano

- toga, capuz e missal –

E canto gregoriano,

Na Igreja Paroquial.

Desbravar trilhos velhinhos

De sandálias desgastadas,

P’ra pregar outros caminhos,

Na Senhora da Orada…

É ser um vilão, sem regra

- farrapo filho do nada –

Mas ser fã da Inês Negra

E apupar a Renegada…

Ser soldado que lutou,

Na heroica Restauração;

E ser povo que a Junot

Gritou o primeiro Não…

É ser o orgulho que ensopa

A amura setentrional

Desta proa da Europa

Que se chama Portugal!

 

José Domingos (2.º prémio).
 

*

Nota: o terceiro prémio foi ganho por mim próprio, com o poema «Perene Herança», o qual será publicado no meu livro «Poemas ao Vento».
 

  O artigo «VI Jogos Florais» foi publicado em A Voz de Melgaço n.º 1017, de 1/11/1994.

 

 

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