ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
Dias depois…
-
Caro amigo Rique: como nem só de violência vive o homem, quero falar-te
novamente das madrinhas de guerra, e aproveito o ensejo, se mo permites, para
lembrar agradecido o bem que nos fizeram. O seu papel foi muito importante,
sobretudo no que diz respeito à suavização dos sacrifícios por nós suportados.
Quando chegávamos de uma «operação»
tínhamos à nossa espera as tão almejadas cartas, ou aerogramas, cuja agradável
leitura servia de bálsamo às tristezas e saudades dos familiares, da terra e
dos amigos.
- Como é que vocês obtinham as moradas?
– pergunta Henrique, intrigado.
- Fácil. Algumas raparigas eram da
nossa terra; logo, sabendo o seu nome completo, estava tudo resolvido. As que
não eram da nossa terra, conseguíamos a sua morada e nome através de soldados
seus conterrâneos.
- Havia trocas, então!
- Exactamente. Destarte, eu tive a felicidade
de me corresponder com madrinhas de Coimbra, do Porto, de Lisboa, do Minho, e
até de França! Ao todo foram sete, como noutro dia te contei.
- Eram uma espécie de namoradas?!
- Não as considerávamos tal, apesar de
alguns rapazes virem mais tarde a casar com a sua madrinha de guerra – penso
que se tratava de excepções. A nossa vida no ultramar era tão fugaz, tão
instável, que seria da nossa parte quase criminoso estar a fazer promessas e
juramentos a moças tão puras.
- Mas nem todos morriam, ou ficavam
feridos – concluiu Henrique.
- Tens toda a razão, a maioria
regressou a Portugal, mas essas raparigas da província não teriam, nessa época,
quaisquer dificuldades em casar-se com emigrantes, e não deveríamos ser nós,
egoisticamente, a evitá-lo ou a adiar tal acto.
Para aqueles que regressavam sem
mazelas, a vida profissional só se equilibraria passados anos – raros voltavam
ao trabalho ingrato do campo ou ao labor sujo e por vezes mal remunerado da
oficina. Aspirava-se a outros espaços, normalmente a cidade, a outros
horizontes.
- E o tal amor à terra de nascimento?!
- Nunca ouviste dizer: «santos da casa
não fazem milagres?» A nossa terra natal, quase sempre madrasta, já não nos cativava
com carácter permanente. A pobreza, aquela pobreza consentida e envergonhada,
deixava de fazer sentido. Tínhamos lutado numa guerra, depois dela iríamos
iniciar outra: esta, mais pacífica, mais previsível, mas nem por isso menos
dificultosa! Além disso, com o pronto-a-vestir, as alfaiatarias tendem a
encerrar – é o progresso!
- Já que quis abordar esse assunto,
pedia-lhe que me lesse mais uma carta dessa sua madrinha.
- Terei todo o gosto. Ouve:
Querido afilhado
Recebi o seu aerograma, no qual vi
que estava de boa saúde; dou graças a Deus, pois é esse o meu desejo.
Pelo que me mandou dizer, quanto a ser
jornalista, não me expliquei bem; nunca me passou pela cabeça ser tal coisa.
Que eu tivesse jeito está certo, pois como aqui na minha terra é um meio
pequeno a gente sabe tudo, e quando vou para casa conto essas novidades, e lá
dizem-me que podia ter essa prestigiada profissão.
Afilhado, a sua muito estimada madrinha
pede que lhe mande uma foto; já sei o seu nome, agora falta-me conhecê-lo.
Depois eu mando-lhe a minha, mas é quando tiver tempo para a tirar, pois sou um
pouco alérgica a tirar fotografias,
mas desde já o aviso que não sou nenhuma beldade, como as artistas de cinema.
Então o seu coração não o enganou quanto a
eu lhe escrever, mas também não se enganou ao pensar que sou muito sentimental;
há pessoas no emprego onde estou que me dizem que isso já passou de moda,
encolho os ombros e não me interessa o que dizem, gosto muito da solidão, pois
assim já a gente pensa à nossa vontade, mas também gosto de conviver com a
minha família e com os meus amigos.
Manda-me dizer que está no mato, por os
filmes que vejo, ou certos documentários, tenho verificado o que passam os
soldados. Isso aí é muito perigoso? Não se exponha muito aos perigos para eu cá
não estar em aflições, com receio que lhe aconteça alguma coisa de mal.
Agora vou-lhe dizer que quando me escrever
não me escreva pouco, quando recebo cartas gosto que elas sejam grandes.
Portanto, já sabe: quando me escrever quero ver os aerogramas bem recheados de
palavras e nada de muitos espaços vazios. Sou nova, mas você há-de pensar que
eu gosto de mandar; é verdade, pois o meu mal às vezes é ser muito franca com
as pessoas e depois quem fica prejudicada sou eu.
Por hoje é tudo, receba muitos abraços
desta sua madrinha muito amiga.
Fernanda
- E então, o meu amigo, mandou-lhe a
fotografia…
- Sabes, as raparigas da Metrópole
pensavam, decerto, que havia ali à mão fotógrafos ou coisa que o valha. Muitas
vezes tínhamos de esperar um ror de tempo, pois era raro ver-se um estúdio fotográfico.
Só nas cidades, e não era em todas!
- Mas existe muita fotografia desse
tempo…
- Isso em parte é verdade, mas porque
alguns militares, talvez os mais endinheirados e evoluídos, dispunham de uma
máquina; outros ganhavam uns escudos com essa actividade extra – possivelmente
já seriam amadores, ou profissionais, antes, não sei. O problema residia,
sobretudo, em fazer chegar os negativos à cidade e obter os rolos para tirar
novas fotos.
*
A luta armada tem o condão de endurecer o espírito dos humanos. Os
mortos, os feridos, os desesperados, já quase não conseguiam comover-nos,
impressionar-nos, como no início da comissão. O que agora ocupava todo o nosso
cérebro era a ideia obsessiva da sobrevivência e do regresso. Os meses
passavam, embora lentamente, e mais um dia de vida significava uma grande vitória
individual. Ninguém falava em vencer a guerrilha, «os libertadores», pois sabíamos, ou pensávamos, por razões óbvias,
que vencê-la seria praticamente impossível. Eles não precisavam de muita gente
no terreno; poucos, bem treinados, conhecedores da zona, espalhavam o terror
pela região.
- Estava a tornar-se um caso político…
- Acho que sim. Aliás, tenho a certeza
disso. Somente os membros do governo e os deputados, em Lisboa, capital do
decadente Império, poderiam, através de negociações, chegar a um acordo
razoável com os líderes do PAIGC. Porém, o governo português, chefiado pelo
ditador Salazar, não queria ouvir falar em tais coisas! A sua maneira de pensar
e de agir tinham ficado bem claras aquando da «Abrilada», em 1961, esboço abortado de golpe, encabeçado pelo ministro
da Defesa, general Botelho Moniz, cujo objectivo seria encontrar uma solução de
tipo federativo para o Ultramar.
- Não queria estar na pele desse
general…
- Não sei o que lhe aconteceu. O “iluminado” de Santa Comba pensava que o
nosso exército, desde que bem apoiado e moralizado, com uma retaguarda eficaz,
levaria de vencida «esses grupos
terroristas» mal armados e insuficientemente preparados militarmente.
- O professor universitário beirão
subestimava o inimigo.
-
Acho que sim. Esses “grupos”
conheciam o terreno como ninguém, eram apoiados pelas populações, e alguns dos
seus homens tinham sido treinados por soviéticos e cubanos; além disso,
possuíam armamento desses países. Por outro lado, o exército português
encontrava-se a combater em Angola desde 1961, Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964): nada mais, nada menos, do que em três frentes simultaneamente!
- Era quase impossível manter essa
situação por muito mais tempo… - assevera o interlocutor.
- Portugal, país pouco relevante e de
influência reduzida no contexto das nações, se o compararmos com as grandes e
poderosas potências, tão pouco e desarmoniosamente desenvolvido, não
conseguiria com certeza aguentar por muitos mais anos essa desgastante guerra,
quer em termos humanos (os jovens cada
vez emigravam em maior quantidade para o estrangeiro), quer em meios económicos
e financeiros, pese embora o facto de se dizer agora que nos cofres do Banco de
Portugal se guardavam toneladas e toneladas de ouro!
- Existia ainda a pressão
internacional…
– Sim, sim; o nosso país estava a ficar
isolado. Mais: tinha sido, no ano de 1961, humilhado pela União Indiana, de
Neru. Como esquecê-lo?
- Uma coisa que nunca percebi foi o
facto dos colonos brancos não se terem organizado num Partido forte e pegado em
armas para defenderem as suas vilas e cidades, as suas propriedades, em suma…
- Nem eu, meu amigo, nem eu! Dependeram
sempre daqueles que iam da Metrópole, como eu e outros, que nada tínhamos a ver
com aquilo, e nem sequer cumpriam o serviço militar, e se o cumpriam ficavam
normalmente em sítios onde não havia “porrada”!
Não se queriam comprometer? Esperavam para verificar para que lado os pratos da
balança pendiam? O governo central não o permitiu?
- No meu fraco entender, essas
interrogações jamais terão resposta convincente…
- Havia muitos interesses em jogo.
Muitos brancos já não se consideravam portugueses!
// continua...
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