segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
Por Joaquim A. Rocha






Dias depois

 

 - Caro amigo Rique: como nem só de violência vive o homem, quero falar-te novamente das madrinhas de guerra, e aproveito o ensejo, se mo permites, para lembrar agradecido o bem que nos fizeram. O seu papel foi muito importante, sobretudo no que diz respeito à suavização dos sacrifícios por nós suportados. Quando chegávamos de uma «operação» tínhamos à nossa espera as tão almejadas cartas, ou aerogramas, cuja agradável leitura servia de bálsamo às tristezas e saudades dos familiares, da terra e dos amigos.

- Como é que vocês obtinham as moradas? – pergunta Henrique, intrigado.

- Fácil. Algumas raparigas eram da nossa terra; logo, sabendo o seu nome completo, estava tudo resolvido. As que não eram da nossa terra, conseguíamos a sua morada e nome através de soldados seus conterrâneos.

- Havia trocas, então!

- Exactamente. Destarte, eu tive a felicidade de me corresponder com madrinhas de Coimbra, do Porto, de Lisboa, do Minho, e até de França! Ao todo foram sete, como noutro dia te contei.  

- Eram uma espécie de namoradas?!

- Não as considerávamos tal, apesar de alguns rapazes virem mais tarde a casar com a sua madrinha de guerra – penso que se tratava de excepções. A nossa vida no ultramar era tão fugaz, tão instável, que seria da nossa parte quase criminoso estar a fazer promessas e juramentos a moças tão puras.

- Mas nem todos morriam, ou ficavam feridos – concluiu Henrique.

- Tens toda a razão, a maioria regressou a Portugal, mas essas raparigas da província não teriam, nessa época, quaisquer dificuldades em casar-se com emigrantes, e não deveríamos ser nós, egoisticamente, a evitá-lo ou a adiar tal acto.

     Para aqueles que regressavam sem mazelas, a vida profissional só se equilibraria passados anos – raros voltavam ao trabalho ingrato do campo ou ao labor sujo e por vezes mal remunerado da oficina. Aspirava-se a outros espaços, normalmente a cidade, a outros horizontes.   

- E o tal amor à terra de nascimento?!

- Nunca ouviste dizer: «santos da casa não fazem milagres?» A nossa terra natal, quase sempre madrasta, já não nos cativava com carácter permanente. A pobreza, aquela pobreza consentida e envergonhada, deixava de fazer sentido. Tínhamos lutado numa guerra, depois dela iríamos iniciar outra: esta, mais pacífica, mais previsível, mas nem por isso menos dificultosa! Além disso, com o pronto-a-vestir, as alfaiatarias tendem a encerrar – é o progresso!

- Já que quis abordar esse assunto, pedia-lhe que me lesse mais uma carta dessa sua madrinha.

- Terei todo o gosto. Ouve:

 

 

Querido afilhado

 

     Recebi o seu aerograma, no qual vi que estava de boa saúde; dou graças a Deus, pois é esse o meu desejo.

     Pelo que me mandou dizer, quanto a ser jornalista, não me expliquei bem; nunca me passou pela cabeça ser tal coisa. Que eu tivesse jeito está certo, pois como aqui na minha terra é um meio pequeno a gente sabe tudo, e quando vou para casa conto essas novidades, e lá dizem-me que podia ter essa prestigiada profissão.

     Afilhado, a sua muito estimada madrinha pede que lhe mande uma foto; já sei o seu nome, agora falta-me conhecê-lo. Depois eu mando-lhe a minha, mas é quando tiver tempo para a tirar, pois sou um pouco alérgica a tirar fotografias, mas desde já o aviso que não sou nenhuma beldade, como as artistas de cinema.

     Então o seu coração não o enganou quanto a eu lhe escrever, mas também não se enganou ao pensar que sou muito sentimental; há pessoas no emprego onde estou que me dizem que isso já passou de moda, encolho os ombros e não me interessa o que dizem, gosto muito da solidão, pois assim já a gente pensa à nossa vontade, mas também gosto de conviver com a minha família e com os meus amigos.

     Manda-me dizer que está no mato, por os filmes que vejo, ou certos documentários, tenho verificado o que passam os soldados. Isso aí é muito perigoso? Não se exponha muito aos perigos para eu cá não estar em aflições, com receio que lhe aconteça alguma coisa de mal.

     Agora vou-lhe dizer que quando me escrever não me escreva pouco, quando recebo cartas gosto que elas sejam grandes. Portanto, já sabe: quando me escrever quero ver os aerogramas bem recheados de palavras e nada de muitos espaços vazios. Sou nova, mas você há-de pensar que eu gosto de mandar; é verdade, pois o meu mal às vezes é ser muito franca com as pessoas e depois quem fica prejudicada sou eu.

     Por hoje é tudo, receba muitos abraços desta sua madrinha muito amiga.

                               

                                                    Fernanda

 

 

- E então, o meu amigo, mandou-lhe a fotografia…

- Sabes, as raparigas da Metrópole pensavam, decerto, que havia ali à mão fotógrafos ou coisa que o valha. Muitas vezes tínhamos de esperar um ror de tempo, pois era raro ver-se um estúdio fotográfico. Só nas cidades, e não era em todas!

- Mas existe muita fotografia desse tempo…

- Isso em parte é verdade, mas porque alguns militares, talvez os mais endinheirados e evoluídos, dispunham de uma máquina; outros ganhavam uns escudos com essa actividade extra – possivelmente já seriam amadores, ou profissionais, antes, não sei. O problema residia, sobretudo, em fazer chegar os negativos à cidade e obter os rolos para tirar novas fotos.         

 

*

      

     A luta armada tem o condão de endurecer o espírito dos humanos. Os mortos, os feridos, os desesperados, já quase não conseguiam comover-nos, impressionar-nos, como no início da comissão. O que agora ocupava todo o nosso cérebro era a ideia obsessiva da sobrevivência e do regresso. Os meses passavam, embora lentamente, e mais um dia de vida significava uma grande vitória individual. Ninguém falava em vencer a guerrilha, «os libertadores», pois sabíamos, ou pensávamos, por razões óbvias, que vencê-la seria praticamente impossível. Eles não precisavam de muita gente no terreno; poucos, bem treinados, conhecedores da zona, espalhavam o terror pela região.

- Estava a tornar-se um caso político…

- Acho que sim. Aliás, tenho a certeza disso. Somente os membros do governo e os deputados, em Lisboa, capital do decadente Império, poderiam, através de negociações, chegar a um acordo razoável com os líderes do PAIGC. Porém, o governo português, chefiado pelo ditador Salazar, não queria ouvir falar em tais coisas! A sua maneira de pensar e de agir tinham ficado bem claras aquando da «Abrilada», em 1961, esboço abortado de golpe, encabeçado pelo ministro da Defesa, general Botelho Moniz, cujo objectivo seria encontrar uma solução de tipo federativo para o Ultramar.

- Não queria estar na pele desse general…

- Não sei o que lhe aconteceu. O “iluminado” de Santa Comba pensava que o nosso exército, desde que bem apoiado e moralizado, com uma retaguarda eficaz, levaria de vencida «esses grupos terroristas» mal armados e insuficientemente preparados militarmente.

- O professor universitário beirão subestimava o inimigo.

 - Acho que sim. Esses “grupos” conheciam o terreno como ninguém, eram apoiados pelas populações, e alguns dos seus homens tinham sido treinados por soviéticos e cubanos; além disso, possuíam armamento desses países. Por outro lado, o exército português encontrava-se a combater em Angola desde 1961, Guiné-Bissau (1963) e Moçambique (1964): nada mais, nada menos, do que em três frentes simultaneamente!

- Era quase impossível manter essa situação por muito mais tempo… - assevera o interlocutor.

- Portugal, país pouco relevante e de influência reduzida no contexto das nações, se o compararmos com as grandes e poderosas potências, tão pouco e desarmoniosamente desenvolvido, não conseguiria com certeza aguentar por muitos mais anos essa desgastante guerra, quer em termos humanos (os jovens cada vez emigravam em maior quantidade para o estrangeiro), quer em meios económicos e financeiros, pese embora o facto de se dizer agora que nos cofres do Banco de Portugal se guardavam toneladas e toneladas de ouro!     

- Existia ainda a pressão internacional…

– Sim, sim; o nosso país estava a ficar isolado. Mais: tinha sido, no ano de 1961, humilhado pela União Indiana, de Neru. Como esquecê-lo?

- Uma coisa que nunca percebi foi o facto dos colonos brancos não se terem organizado num Partido forte e pegado em armas para defenderem as suas vilas e cidades, as suas propriedades, em suma…

- Nem eu, meu amigo, nem eu! Dependeram sempre daqueles que iam da Metrópole, como eu e outros, que nada tínhamos a ver com aquilo, e nem sequer cumpriam o serviço militar, e se o cumpriam ficavam normalmente em sítios onde não havia “porrada”! Não se queriam comprometer? Esperavam para verificar para que lado os pratos da balança pendiam? O governo central não o permitiu?

- No meu fraco entender, essas interrogações jamais terão resposta convincente…

- Havia muitos interesses em jogo. Muitos brancos já não se consideravam portugueses!
                                                         // continua...
 

Sem comentários:

Enviar um comentário