terça-feira, 31 de maio de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




Macróbios


  Este tema da longevidade atrai-me desde a minha juventude. Ficava fascinado quando uma pessoa atingia os cem anos de idade. No século XX o normal era o ser humano morrer com pouco mais de sessenta anos. O trabalho duro, a fraca alimentação, a ausência de férias para um descanso merecido, etc., enfraquecia o organismo, e a partir dos cinquenta anos já a pessoa era considerada velha. Com a entrada de Portugal na CEE, com a circulação de dinheiro, com o abandono da agricultura e o acesso aos serviços, mais ou menos bem remunerados (bancários, empregados de Companhias de Seguros, etc.), permitiu às populações melhorar a sua vida, estudar os filhos, deslocar-se para a cidade, onde os cuidados médicos são mais abundantes e sofisticados. O consumo de medicamentos aumentou exponencialmente, a consulta médica tornou-se uma rotina. Morria-se por causa da próstata, da diabetes, da tuberculose, de uma simples infeção; hoje é raro alguém finar-se devido a estas doenças. Enfim, melhorou-se a qualidade de vida em alguns aspetos, mas perdeu-se em parte o contacto com a mãe natureza. Não se pode ter tudo.  
Hoje dou-vos a conhecer mais duas melgacenses que atingiram idades consideráveis. 

DOMINGUES, Zulmira da Conceição. Filha de António Domingues e de Rosa Rodrigues, lavradores, residentes no lugar de Cima, freguesia de Lamas de Mouro. Neta paterna de António Domingues e de Clara Domingues; neta materna de Manuel Joaquim Rodrigues e de Ana Alves. Nasceu em Lamas de Mouro, Melgaço, a 6/5/1906, e foi batizada na igreja paroquial a 9 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel Joaquim Rodrigues, casado, e Maria Rodrigues, viúva, camponeses, moradores no lugar de Cima. // Casou na Conservatória do Registo Civil de Melgaço a 7/10/1924 com António Joaquim Pereira. // Enviuvou a 25 de Fevereiro de 1931. // Faleceu na freguesia de São José e São Lázaro, concelho de Braga, a 14/12/2003, com 97 anos de idade.  


GONÇALVES, Joaquina. Filha de Manuel Gonçalves e de Maria de Pinho, lavradores, lamacenses. Nasceu em Lamas de Mouro, concelho de Melgaço, por volta de 1831. // Faleceu no lugar do Casal, freguesia de Paços, concelho de Melgaço, a 22/6/1938, com 107 anos de idade, no estado de solteira, e foi sepultada no cemitério dessa freguesia ribeirinha. // (ver Notícias de Melgaço n.º 403). // Mãe de Constança Gonçalves

domingo, 29 de maio de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(dois anos de guerra na Guiné-Bissau) 

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes


11.º Capítulo


BOLAMA

     Desta vez o reencontro entre os dois amigos demorou mais do que o previsto. O trabalho e os estudos não permitiam grandes folgas. Henrique, contudo, estava ansioso por ouvir o relato daquela aventura que foi a guerra colonial. Logo que lhes foi possível encontraram-se. Ainda Cândido não aquecera o lugar, já o outro lhe perguntava:

- Como se sentiu ao pisar terras africanas? Teve receio?
- Nessa ilha, de uma beleza paradisíaca, não havia quaisquer confrontos armados. No entanto, já aí se respirava uma atmosfera de guerra. Barcos chegavam e partiam com contingentes para o “mato”, para o barulho, como na altura se dizia. Os rostos desses jovens, mas já experientes beligerantes, denunciavam fadiga; porém nos seus olhos, apesar de tudo, ainda se vislumbrava uma chama de esperança. Lembro-me de ter perguntado a um marinheiro, com aspecto de patriarca – grisalho, longas patilhas, bigode farfalhudo e pêra pontiaguda – se a guerra iria ou não durar muito. Sorriu, com aquele sorriso de quem sabe muito da vida e dos homens, e sentenciou em tom solene: «Talvez os teus filhos e netos, se os vieres a ter, cá venham batê-las
     Na sua rudeza, o marujo experimentado, cheio de tarimba, falava como um oráculo! Este tipo de conflito, mais tarde pude verificar isso mesmo, não tem um tempo determinado para a sua duração: aguenta até a causa que lhe deu origem desaparecer. São deveras complexas estas lutas de libertação. Os grupos, ou o grupo, que combatem são geralmente apoiados por este ou aquele país, por este ou por aquele movimento internacional, pela própria população. Aparecem armas, surgem apoios em alimentos, fardas, instrução. Os generais afectos ao poder pensam que determinada zona está controlada; pode estar, mas logo surge outra zona, não muito longe daquela, com problemas insolúveis. E assim sucessivamente. 
    
     Henrique, desejando intervir, pergunta:

- Acha que era possível não haver mais guerras?!
- Possível, sim; e desejável também. Mas não é provável que isso venha a acontecer em breve, embora correspondesse ao anseio da maioria esmagadora da humanidade. Quanto a mim, todas as pugnas são alimentadas por homens com cérebros bélicos, e enquanto estes existirem elas existirão também.  

     Era uma resposta razoável, mas insuficiente, pensou o rapaz. Por isso, perguntou-lhe:

- Como se definiria ideologicamente?
- Referes-te ao tempo presente, é óbvio. Bem, eu considero-me ecléctico, isto é, aproveito tudo que de bom têm os outros, rejeitando, se puder, tudo aquilo que acho errado. Exemplificando: já me pediram para me inscrever num Partido Político. Eu perguntei-lhes: «Concordam com a existência de Forças Armadas?» A resposta já eu a sabia de antemão:
     «Sim, concordamos.» «Entãodisse-lhesnão posso filiar-me no vosso Partido.» Ficaram irritados comigo: «Mas isso é uma utopia, onde se viu um país sem Forças Armadas, sem defesa, à mercê de qualquer bando que aparecesse por aí…»
- Ficou sem argumentos… - disse o amigo, convencido, também ele, de que tudo não passava de um devaneio.
- Pelo contrário. Respondi-lhes: «está provado que as guerras são prejudiciais à humanidade; só meia dúzia de capitalistas e generais sem escrúpulos ganha com elas; se elas acabarem é um bem e não um mal
- Radicalismo puro. Acha o meu amigo que no caso de se extinguirem as Forças Armadas terminam as guerras?!
- Exactamente. Então não tens reparado que são sempre os militares e os donos das fábricas de armamento a pressionar os políticos para estes declararem os conflitos armados?
- Hitler, Mussolini… - recordou Henrique.
- Esses monstros, embora civis, tinham espírito militarista. Não te apercebeste por acaso que usavam sempre farda? E não eram quaisquer fardas – feitas de óptimo tecido e à medida dos seus deformados corpos. E julgas que os grandes industriais de armamento não estavam por detrás disso tudo?
- Salazar nunca vestiu uma farda, penso eu, e no entanto provocou a chamada guerra colonial! - ripostou o moço, na ânsia de alimentar a fogueira da polémica.
- Contrafeito. Foi obrigado a isso. Nunca se sentiu bem nesse papel. Se ele gostasse dessas coisas, teria entrado na Segunda Grande Guerra. Por outro lado, não queria cometer os mesmos erros que cometeram os republicanos na 1.ª República. Era um ditador, mas dentro de casa; não um guerreiro, no campo de batalha. As Forças Armadas no seu regime nunca brilharam; bem pelo contrário, muitas vezes foram por ele enxovalhadas! O único militar que respeitou, de certo modo, foi o marechal Carmona. Por gratidão. Devia-lhe favores. Não sabes por acaso que o almirante Américo Tomás foi um joguete nas suas mãos? E que o general Craveiro Lopes lhe virou as costas, já farto de obedecer?               
    
Henrique estava a ficar cansado de tanta verborreia. «Que diabo: isto não fazia parte da narrativa» – pensava ele.
     Cândido, óptimo observador, notou o aborrecimento do amigo e diz:

- Com toda essa conversa da treta ia-me esquecendo do essencial. Desculpa. Quanto ao marinheiro… Depois dele falar eu fiquei pensativo. Para quê ripostar se tinha ficado esclarecido? Teria, doravante, de arranjar calo, um pouco de coragem e paciência para suportar os tempos árduos que se avizinhavam.
     Os nossos camuflados verdes, do pouco uso, contrastavam com os amarelados, gastos, da tropa “velha”; a nossa pele, alva, parecia pertencer a bonecos de neve, comparada com a pele escura, queimada, dos que se encontravam em África, na Guiné, havia já algum tempo.    
     Ao contrário do que seria de esperar, os veteranos não riam do nosso aspecto, não riam dos maçaricos (assim chamados por a farda ainda manter a cor da pequena ave de nome maçarico verde); eles sabiam o que nos esperava e isso não podia de modo algum inspirar motivo para regozijo. Por outro lado, nós íamos substituir alguns deles, que assim poderiam regressar à sua amada terra, ao seu querido lar, abraçar filhos que possivelmente ainda não conheciam e esposas que deixaram banhadas em lágrimas!
     Nessa pequeníssima cidade, Bolama, quase terra de brancos nessa altura, havia um hotel, não sei de quantas estrelas. Nunca lá entrei. Por fora tinha bom aspecto. Enquanto houve guerra colonial esteve ao serviço das nossas Forças Armadas – era um pequeno quartel-general.
     Ali na zona estivemos algum tempo a exercitar o nosso instinto guerreador.
     Durante esse tempo, e a partir desse ponto, levámos a cabo algumas acções, com Companhias de Caçadores já bastante castigadas pela guerra. Iniciava-se, dessa maneira, a nossa odisseia e o nosso baptismo de fogo.
     Mas, para desanuviar um pouco o ambiente de guerra, vou-te contar um episódio engraçado no qual eu fui o principal actor. Certo dia o cozinheiro adoeceu e o seu ajudante ainda não chegara da metrópole – chegaria precisamente no dia seguinte. O comandante mandou reunir a Companhia e expôs o assunto: «hoje não temos jantar, o cozinheiro está de cama; se houver aí alguém que saiba cozinhar que o diga – não é preciso grande requinte, umas batatas com atum já serve.»   
     Todos ficaram calados. Eu, contudo, não podia ficar indiferente àquele silêncio. Lembrando-me que já cozinhara algumas vezes, mas para pouquíssimas pessoas, levantei a mão e disse: «eu faço o jantar.» Suponho que até bateram palmas! O pior foi depois. Quantos quilos de batatas eu ia colocar na panela? E a água – que quantidade? E o sal? Quanto ao atum era fácil, se fossem latas pequenas, mas se fossem grandes? Entrei em pânico.
     Bem: pôs-se o panelão ao lume, quase cheio de água, descascaram-se as batatas e puseram-se a ferver. Às tantas a água já deitava por fora, num borbulhar infernal. Para mexer aquilo, com a enorme colher de pau, era necessária a força de um gigante. Deitei alguma água fora e fui buscar o sal. Aqui é que o desastre se completou. Atirei-lhe com uns punhados lá para dentro, à sorte, ao calha, ultrapassaria o quilograma!  
     Quando as batatas já estavam cozidas chamei o pessoal e comecei a distribui-las. Um ajudante improvisado misturava o atum. Logo que começaram a comer desatam aos gritos: «isto é intragável, está salgado que nem uma pilha…»
     O tenente chegou esbaforido e disse: «Acalmem-se – comam apenas o atum com pão. Um dia não são dias.»
     As coisas serenaram, alguns até compreenderam a situação, mas a vergonha foi muita.          

     Henrique, que já estava calado havia algum tempo, riu-se com gosto, e depois interroga:

- E quanto ao clima? Dizem que era terrível!
- O clima da ex-colónia não podia ser pior. O ar, quente e húmido; as melgas existiam em tanta quantidade que se tornava inútil e frustrante combatê-las! Graças aos leves e transparentes mosquiteiros podíamos dormir umas horas, porque dormir durante esse período era de facto um verdadeiro privilégio, um luxo. Já sei que me vais perguntar: “os negros também eram atacados pelas temíveis melgas?” Respondo-te desde já: não, não eram, por mais incrível que isso pareça!
- E há alguma explicação para que tal facto acontecesse?! – pergunta o jovem, algo incrédulo, convencido talvez de que o amigo já confundia a realidade com a fábula.
- Ao princípio, embora esse “milagre” me tivesse chamado a atenção, não o entendia. Pensava que existiria uma espécie de pacto de boa vizinhança entre eles, ou então estávamos perante uma trégua, mais ou menos prolongada, depois de uma luta de séculos!
- Mas não era nada disso, suponho eu!
- Pudera! Mais tarde, bem mais tarde, soube tratar-se de um fenómeno natural. Os africanos negros possuem umas glândulas que exalam um odor especial, cheiro esse que consegue afastar da sua beira esses horripilantes bichinhos!

     Henrique estava maravilhado com essas explicações. Exterioriza:

- A natureza é, sem um grão de dúvida, quase perfeita!
- Vê lá tu: tão desprotegidos em termos de habitação e de vestuário, de assistência médica, os indígenas não teriam certamente quaisquer possibilidades de resistir àqueles “vampiros” ousados e nojentos.           
     Mas além desse cheiro característico, eles ainda se servem do fumo e do fogo para afastar potenciais perigos de feras e de outros inimigos naturais. A fogueira (espécie de fogo sagrado) acompanha-os praticamente toda a vida. Têm isso em comum com os povos primitivos e com os ciganos nómadas.
- Estiveram muito tempo em Bolama?
- Um mês, talvez mês e meio; já não me recordo exactamente. Daí, e após peripécias várias, entre elas a operação que levou ao hospital dezenas de camaradas...
- O que aconteceu? Foram atacados?
- Sim, mas pelas abelhas. Eu conto-te a impertinência das grandes produtoras de cera e mel, cujas armas, os ferrões, são tão temíveis como uma metralhadora: saímos de Bolama, ainda o sol não nascera, atravessando um pantanal imenso, e, afoitos, embrenhámo-nos na mata chamada de São João; às tantas, quase num golpe de magia, aparecem-nos milhares e milhares de abelhas, um enxame inteiro, sedentas de vingança, com o seu subtil ferrão em riste! Desordenadamente, fugimos, largámos as armas e munições, gritámos e até houve quem chorasse como autênticas crianças abandonadas. Os nossos camaradas radiotelegrafistas chamaram os helicópteros logo que isso lhes foi possível, e os mais atingidos foram evacuados para o hospital militar de Bissau.
- Dramático! – comenta Henrique.
- Não há, nem poderá jamais haver palavras que consigam descrever esta louca situação. Uma coisa é combater contra seres humanos armados, embora escondidos e conhecedores do terreno; outra coisa bem diferente é lutar contra ousados animais minúsculos, e aparentemente inofensivos, que apenas tentam defender desesperadamente as suas colmeias. Para nós, confesso, foi assaz humilhante. Até houve depois quem dissesse que tinha sido manobra do inimigo!
- O Cândido acredita nessa balela?
- Não acredito em tal: abelhas adestradas? A não ser que elas fossem nacionalistas, estivessem ao serviço da guerrilha!       
- Nunca se sabe! – riu-se com vontade o rapaz.
- Brinca, brinca; mas nós, desgraçados, é que sofremos na pele esse ataque. Nem a mascote nos valeu!
- O que era a vossa mascote? Um macaco?
    

     A resposta ficou no ar, pois o tempo escoou-se. Ambos se levantaram da mesa do Café e despediram-se amigavelmente.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

MAIS UMA VÍTIMA DO TABACO

Joaquim A. Rocha




LEITÃO, Pedro. Filho de Joaquim António Vieira Leitão e de Maria Manuela Ferreira de Araújo Leitão. Neto paterno de Joaquim dos Santos Leitão e de Eleusina Soledade das Dores Vieira; neto materno de José dos Santos Leitão e de Manuela Ferreira de Araújo (*). Nasceu em Lobito, Angola, a 16/12/1955. Veio para Braga com os pais ainda era criança. // Na sua juventude foi simpatizante do MRPP, movimento político dirigido pelo Dr. Arnaldo de Matos, que tinha como objetivo derrubar o regime corporativista de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano, e substituí-lo por um regime socialista (socialismo científico). // Fez alguns estudos, curso liceal, no Liceu Sá de Miranda, Braga, e foi admitido a 1/7/1974 como jornalista no Correio de Minho, depois no “Jornal de Notícias” (também colaborou no “Público”, no “Crime”, e no Alto Minho, na revista SIM, entre outras publicações). // Devido a divergências que surgiram no Jornal de Notícias, obrigando os seus responsáveis a reestruturações internas, chegou a um acordo com a administração, afastando-se definitivamente, recebendo em troca uma indemnização. // Em 2004 funda o jornal “Fronteira Notícias”, que tratava vários temas relacionados com alguns concelhos do Alto Minho (entre eles o de Melgaço) e da Galiza. // Possuía uma cultura vasta, sobretudo na área das ciências humanas, e uma inteligência viva e atuante. A prová-lo está a qualidade do jornal «Fronteira Notícias» – quase sozinho, apenas com a ajuda técnica dos seus dois filhos, Sérgio e Pedro, e de meia dúzia de colaboradores, apresentava todos os meses ao público um jornal excelente, igual, ou talvez melhor, do que alguns jornais de âmbito nacional. // Faleceu, devido a doença, provocada pelo excesso de tabaco, a 28/3/2016. Era casado com Ana do Sameiro Gomes Ferreira, natural de Braga.

        Nota: colaborei alguns anos com Pedro Leitão, no jornal «Fronteira Notícias», e pude comprovar que ele era de facto um grande jornalista, sobretudo na área da investigação e da entrevista. Um dia fomos os dois entrevistar Rui Solheiro, então presidente da Câmara Municipal de Melgaço, entrevista essa que depois foi publicada no referido jornal. Eu tirei as fotografias. // Tantas vezes lhe disse: «amigo, deixe de fumar, você assim mata-se.» Nunca quis ouvir os nossos conselhos, o vício era maior do que a sua vontade! Chegava a fumar três maços por dia! Morreu aos sessenta anos de idade, com cancro. Enfim, quando não se tem juízo «o corpo é que paga


     /// (*) Esta senhora era filha de Domingos Ferreira de Araújo, transmontano, formado em Farmácia no Porto, com estabelecimento farmacêutico em Melgaço, e de Maria de Sousa Viana, natural do lugar de São Gregório, freguesia de Cristóval, concelho de Melgaço. Ela, Manuela (ou Madalena), natural da vila de Melgaço, conheceu o seu marido quando ele foi para as Termas do Peso passar alguns dias.   

quarta-feira, 25 de maio de 2016

SONETOS

Por Joaquim A. Rocha



Por onde anda minha saudosa terra,
Há muitos séculos que não a vejo;
Fugiu de mim, do meu carente beijo,
Para sítio distante, agreste serra.

Toda a minha história em si encerra,
Aquele lugar que eu tanto desejo;
Tem um rio mais belo do que o Tejo,
 Por si a minha alma chora e berra.

Não vou ficar sentado à espera
Que ela venha até mim pela manhã;
Irei percorrer todo o universo, 

Transformado em nave, azul esfera,
Em estrela do céu, grande ou anã…
Trazê-la de novo para seu berço. 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

GENTES DE MELGAÇO
(microbiografias)

Por Joaquim A. Rocha


CASTRO, Frederico Justiniano. Filho de Luís José de Sousa e Castro, capitão da Casa Real, e de Rita Rosa de Sousa e Castro, dama da Real Câmara, da Casa e Quinta da Torre, sita em Paderne. Nasceu (*) em Lisboa (segundo o assento de óbito de sua filha Aurélia Augusta, falecida na Vila de Melgaço a 7/10/1902), por volta de 1809. 
desenho de Manuel Igrejas

     A 14/8/1836 foi padrinho (juntamente com sua irmã Adelaide) de Albano Augusto Gonçalves, nascido no lugar do Souto, freguesia de Paderne, dois dias antes. // A 11/5/1838 foi padrinho de Justiniano Augusto da Silva, nascido no lugar da Várzea a sete desse mês e ano. // A 16/5/1839 foi padrinho de Lucinda de Castro, nascida no dito lugar da Várzea a onze desse mês e ano. // Casou na igreja do mosteiro de Paderne a 7/2/1843 com Mariana Carolina, filha do capitão-mor da praça de Melgaço, João António de Abreu Cunha Araújo e de Maria Luísa dos Reis, da Casa do Rio do Porto, SMP, ele presente e ela por procuração passada a seu irmão, José Albano de Abreu Cunha Araújo. Testemunhas presentes: João António de Abreu Cunha Araújo, da Vila de Melgaço, e Manuel António de Sousa, natural de Chaviães, empregado na administração do concelho. // A 30/7/1851 foi padrinho de Justina Augusta Vaz, nascida dois dias antes. // Em 1874 pertencia ao grupo dos quarenta maiores contribuintes de Melgaço (ver Organização Judicial de Melgaço, de Augusto César Esteves, página 157). // A 17/6/1878, na igreja do mosteiro, ele e a esposa foram padrinhos de batismo de Albina da Glória de Sousa Monteiro. // Estava viúvo de Mariana Carolina quando voltou a casar, na igreja da freguesia de Remoães, a 10/4/1892, desta vez com Prudência Rosa, solteira, de 47 anos de idade, filha de Adão de Sousa e Castro e de Maria Vitória Marques, do lugar da Várzea, freguesia de Paderne. Testemunhas: Manuel Francisco Gonçalves, casado, lavrador, da Quinta da Torre, Paderne, e JAM, solteiro, do lugar de Canle, Remoães. // Foi recebedor do concelho de Melgaço, advogado nos auditórios do julgado, secretário da Câmara Municipal de Melgaço, de cujo cargo se aposentou em 1890. // Foi abastado proprietário na Calçada, SMP, possuindo, entre outros bens, a casa que depois seria do “brasileiro” João Pires Teixeira, e mais tarde, século XX, do comerciante Miguel Pereira (Macarrão). // Faleceu em sua casa de morada, sita na Quinta da Várzea, Paderne, a 28/7/1894, com todos os sacramentos da igreja católica, com 85 anos de idade, no estado de casado com Prudência Rosa de Castro, com testamento, com filhos, e foi sepultado dentro da igreja paroquial. 

    // Nota: só teve filhos da primeira esposa.         

     /// (*) No seu assento de óbito diz-se que ele era natural de Paderne.

sábado, 21 de maio de 2016

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues

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Ó Joana vai à missa,
O padre está esperando;
Já a vela acesa atiça,
Há muito vem jejuando.

*
Vi Roma, Canes, Milão,
E fiquei extasiado;
Deixei lá meu coração,
E parte do ordenado.

*
Quando eu era pequenino,
Do tamanho de um anão,
Gostava muito de ti,
Amor do meu coração.












quinta-feira, 19 de maio de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha


Um crime em Melgaço no século XIX

     Fevereiro de 1828. Miguel, irmão de Pedro IV, assume a regência do reino e jura a Carta Constitucional. Em Março do mesmo ano dissolve o parlamento; em 3 de Maio convoca as Cortes. Estas restauram o regime tradicionalista, isto é, proclamam Miguel rei absoluto! Os liberais não gostaram; organizam a oposição. É a guerra civil! Acaba em 1834, depois da derrota dos miguelistas. O “rei” parte para Viena de Áustria e nunca mais pôs os pés em território nacional.
     Estávamos em plena guerra fratricida; por todo o país Miguel perseguia incansavelmente os liberais; estes defendiam-se como sabiam e podiam. Pedro, imperador do Brasil, vendo que as coisas não se resolviam, abdica em 1831, a favor de seu filho, e dirige-se a França e Inglaterra em busca de auxílio, a fim de reconquistar o trono português para sua filha Maria da Glória (mais tarde Maria II).


     Melgaço vivia dias agitados. Tomás das Quingostas aterrorizava toda a gente. Ninguém sentia segura a vida nem a fazenda. Com a sua temível quadrilha, matava e roubava com o maior desplante. A lei era ele. Por onde passava deixava rastos de sangue e amargura. Uma das suas vítimas mortais foi o jovem João Vicente. Rapaz pouco dado a bens materiais e a folguedos, tencionava seguir, logo que as condições o permitissem, a carreira clerical. Só a sua mãe conhecia o segredo. A 17 de Março de 1829 esta faz-lhe saber que tudo está pronto para ele poder concretizar seu sonho. Enquanto não ingressa no Seminário vai tentando não se envolver em conflitos ideológicos ou bélicos. Ajuda na administração da casa e de vez em quando visita as pesqueiras que a família possui no rio Minho, fiscalizando também a faina dos pescadores. Nesse ano as lampreias, os sáveis e os salmões saíam em abundância. Era, sem dúvida, um bom ano de pescaria. João Vicente tinha a estima de toda a gente de Melgaço. A sua índole calma e generosa granjeava-lhe amizades e respeito. Parecia que a sua vida decorreria sempre assim: ajudando quem dele precisasse, materialmente ou com a sua palavra amiga e sábia. No entanto, o seu destino já estava traçado. A morte estava próxima. Naquela noite fatídica de 21 de Março de 1829, noite chuvosa, trilha o caminho que o leva ao rio. Parecia até um fantasma com a croça sobre o seu corpo miúdo. Não se via um palmo à frente do nariz, mas como ele conhecia bem o caminho não haveria qualquer problema. A croça não lhe serviria de muito com a chuva intensa, mas pelo menos ajudava a aquecer-lhe o corpo. Chega perto das pesqueiras, ouve o barulho amigo das águas do rio e, com seus olhos habituados à escuridão, perscruta-as. As redes lá estão. Tudo em ordem. Na tarde do mesmo dia um grupo de homens, à cabeça Tomás das Quingostas, combinava um assalto a uma aldeia galega. Tinham lá gente da mesma laia que com eles colaboravam e desse modo esperavam roubar o suficiente para uns longos dias. Depois de tudo combinado até ao pormenor, foram lentamente descendo o monte em direção ao rio. Aguardariam ali o sinal e a seguir atravessariam na batela que estava escondida sob umas espessas ramagens. Esperaram, esperaram, e nada de sinal. Pensaram então que algo se tinha passado com os seus amigos galegos. «Outro dia seria.» Tomás disse aos seus homens que se dispersassem; com ele ficariam Caetano Paulo e o Pitães. Virando-se para eles, diz-lhes: - Não regressaremos de mãos vazias! Vamos às pesqueiras ver se têm peixe, arranjaremos depois alguém que nos faça o jantar ou a ceia. Conhecedores das margens do Minho, avançam afoitamente, sem cautelas especiais. João apercebe-se do movimento, e das vozes, e pergunta: - «Quem vem lá?!» O Tomás, astuto como uma raposa, responde-lhe: - «Gente de bem e de paz.» O rapaz, confiante e contente por ter companhia, aproxima-se deles sem qualquer receio. O monstro, logo que vislumbra a silhueta esguia, aponta-lhe o bacamarte e dispara sem hesitar. Um segundo depois os restantes facínoras descarregam as suas armas num corpo cambaleante. Pum! Pum!
     O som dos disparos ecoou ao longo do rio durante momentos; a seguir, um silêncio pesado ficou pairando no ar. A besta aproximou-se do cadáver e com as suas botas de militar virou-o, confirmando assim a sua morte. Cruel, como abutre que era, disse aos outros: - «Agora temos o caminho livre, vamos ao trabalho.» A justiça, depois de avisada, foi ao local do crime. Junto ao corpo perfurado pelas balas assassinas encontrava-se a croça toda ensanguentada. // (ver «Melgaço e as Lutas Civis», I volume, páginas 87 a 92, de Augusto César Esteves).
     Já neste século, um poeta anónimo, escrevia estes versos acerca do Tomás das Quingostas:

Homem de muitas matanças,
Na guerra civil andou;
Herói das extravagâncias,
Vidas sem conta ceifou!

Mais dum século decorreu
Sobre a morte do malvado;
Que, por ironia, morreu
Sob as balas dum soldado!



Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1005, de 15/4/1994.

terça-feira, 17 de maio de 2016

POEMAS DO VENTO
Por Joaquim A. Rocha



Nos olhos de uma mulher
vejo esperanças perdidas,
vejo o nada dessas vidas,
verdades que quer reter!

Vejo um ribeiro que corre,
vejo a floresta de sonhos,
os pesadelos medonhos,
a esperança que morre.

Vejo um lago de águas mansas,
um mar bravo, a maré cheia;
  a luz forte que encandeia,
o voltar das esperanças.

Planícies de sonho, sol de verão,
estranha música de violinos;
tudo vejo em seus olhos cristalinos:
vejo, em seus olhos, seu coração!

domingo, 15 de maio de 2016

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves


continuação - ver em 12/4/2016...

         Era respeitado, mas nunca foi rico Belchior Rodrigues Torres. E as suas terrinhas, no último decénio da vida, eram tão poucas que não chegavam para pagar o capital e juros devidos à Misericórdia, uns parcos 405$000 réis, ao todo, falidos como estavam seus fiadores. Mas se algum dia lhe entrou a fome no lar, dele não fugiu a virtude e precisamente por isso e por ter sob o pátrio poder quatro filhas, todas donzelas e virtuosas, Lina, Josefa, Vitória e Maria Joaquina, a Mesa da Santa Casa, espontaneamente, perdoou-lhe cem mil réis, exigindo embora daqueles e de seus irmãos a segurança do resto da dívida com dinheiro e dentro de dois meses, como o fez consignar na acta de 20/3/1795. Desta crise safou-se; contudo, antes de morrer…, e as situações (sic), económica e financeira do filho António Xavier, foram já muito outras. À sua morte partilharam-se bens nas Carvalhiças e em São Paio, afora as casas da vila, uma delas na rua da Lágea.
       Era tal a situação económica e o seu aprumo na sociedade, que ambos lhe permitiram colocar bem os filhos. Um, José Joaquim, foi presbítero secular e outro, João Manuel, um dos boticários da terra e seu sucessor na escrivania dos órfãos, para cujo exercício o afiançou seu irmão doutor em 30/10/1833. // A filha, D. Joaquina, casou-a com o fidalgo da Quinta da Moreira, D. Pedro Vasques de Puga, Cavaleiro Mor da Real Mestrança e o mais velho, o Dr. Miguel Caetano, como advogado distinto, estava a criar a sua nobreza por via das letras. Mas se pelo lado paterno a nobreza era forjada diariamente pelo advogado, por sua mãe D. Gaspara Joaquina Podré, o Dr. Miguel Caetano estava aparentado com várias casas fidalgas da terra e podia gloriar-se de sentir girar nas veias dos pulsos o sangue herdado de bons servidores da pátria e de outras grandes figuras deste cantinho minhoto.
       O autor destas linhas, melgacense como ele e, como ele, bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, no mesmo tribunal grilheta do cargo exercido pelo pai e pelo avô, presta agora sentido preito de homenagem às suas nobres virtudes de bondade e de patriotismo, relatando aqui, singelamente, feitos de seus antepassados maternos.
       O Padre Lorenzo Pereira de Araújo – no tempo dos Filipes muitos padres portugueses pastorearam ovelhas galegas e este foi um deles – abade de Santa Maria de Leirado, na Galiza, instituiu em 9/10/1641 em São Pedro da Torre, junto de Valença, uma capela a Nossa Senhora do Rosário e às Almas do Purgatório, com os bens que ali possuía. Duas missas em cada semana, uma às segundas-feiras pelas almas e a outra aos sábados a Nossa Senhora, Virgem Santíssima.
        O padre Lorenzo tinha uma irmã, D. Constança Rodrigues Pereira de Araújo, já casada com João Lopes Ribas. Um seu filho, João Lopes Ribas de Araújo casou com Sabina da Ribeira por volta de 1640 e uma sua neta, Isabel de nome, consorciou-se com Domingos Rodrigues de Araújo, escrivão dos armazéns e mantimentos da praça de Melgaço durante trinta anos, seis meses e um dia, contados desde 1/1/1665 até 1/7/1705, isto é, desde o princípio do ano da batalha de Montes Claros, na guerra da Restauração, no reinado de D. Afonso VI até quase ao final do reinado de D. Pedro II, em plena guerra da sucessão ao trono de Espanha. / No ciclo de ambas estas guerras, no termo de Melgaço aquartelaram-se, por vezes, muitas tropas. Nas épocas mais acesas das lutas houve trincheiras abertas e guarnecidas de soldados nos Montes de Prado e Remoães, desde Cevide, junto a São Gregório, até ao Porto dos Asnos ou dos Cavaleiros, lá para as terras de Lamas de Mouro. Mais a bem que a mal os lavradores do termo e dos vizinhos, e sobretudo de Paredes de Coura, forneciam aos serviços auxiliares da tropa a carne de porco e as galinhas vadias, criadas no decurso do ano, mais o trigo e o milho, o feijão e as couves, tudo quanto, afinal, arrancara do seio ubérrimo da terra minhota a família deixada livre dos lazeres da guerra pelos recrutamentos. Reuniam-se na vila todos estes abastecimentos e conforme as necessidades repartiam-se pelas tropas. // Numa destas épocas, dia a dia frei Domingos Gomes de Abreu apresentava ao Juiz de Fora, Licenciado Brás Rodrigues Pereira, as requisições de gentes para a condução dos mesmos ao Porto de Cavaleiros e a fazer os lançamentos nos livros mestres da escrita esteve sempre aquele Rodrigues de Araújo, mudasse muito embora o requisitante dos carregadores ou o juiz.
   Domingos era filho de João Rodrigues de Araújo e de sua mulher Isabel Gomes, moradores no Campo da Feira, que em 12/4/1615 compraram alguns bens sitos no Viso, freguesia de Chaviães, como o documentaram num livro de notas de Gonçalo Rodrigues de Araújo. Da sua numerosa prole, Mariana de Jesus casou com o capitão João de Araújo Azevedo, natural dos Bouços, de Prado, filho de Francisco Trancoso. Em 1703 viviam eles na quinta de Carvalho do Lobo, constituída por alguns campos de rega e lima e por montado.
   João de Araújo Azevedo desempenhou o cargo de capitão de Ordenanças desde os fins do reinado de D. Pedro II até 1/3/1715, já depois de ter findado a Guerra da Sucessão ao trono de Espanha. Era um bravo. Em 1706, logo no início da campanha, foi destacado para o Porto de Cavaleiros e aí, abertos troços de trincheiras sob a sua direcção e com o fim de impedir a invasão de Portugal pelos galegos, guarneceu o posto de Ramais, que deve ficar por ali. Numa madrugada, porém, o inimigo intentou assaltá-lo, empregando até peças de artilharia. Sob o seu comando, a custo embora, e com muito risco, foi o mesmo rechaçado, porque a sua companhia conseguiu ocupar debaixo de fogo o lugar de mor perigo, o posto mais vizinho da bateria atacante, mas nesta acção uma bala o feriu numa das pernas.
   Em mil setecentos e sete, comandando trezentos homens, acompanhou o próprio Comandante das Armas da Província, D. Sancho de Faro e Sousa que, com cavalaria e infantaria, invadiu a Galiza, saqueando alguns lugares. E como as forças inimigas se acolheram ao forte de Monte Redondo, o capitão as sitiou com uma força de cem homens da sua companhia e de forma tal se houve que os contrários logo se renderam. Na ânsia de os dominar fez-lhes uma investida e, levado pelo entusiasmo, foi o primeiro a saltar para dentro do reduto inimigo e embora a sua vida tivesse corrido sérios riscos, desta proeza trouxe ele consigo mais de cinquenta prisioneiros.

   Da acção, todavia, saiu com duas feridas na cabeça, mas coberto de glória e de tanto prestígio, que ao seu cuidado se confiou logo a guarnição de duas léguas da raia. Desinteressado como era, de qualquer destas campanhas a sua fazenda saiu sempre com grande detrimento. Foi do casamento de seu filho Francisco de Araújo Podré com D. Maria Rosa Puga Saavedra, da falada quinta da Moreira em Cecliños, que nasceu a mãe do Dr. Miguel Caetano. Por outro lado, no pequeno recanto da Barbosa, naquele ridente mirante sobranceiro à Calçada, vivia descuidada Paula de Abreu, moça solteira e galante. A lindar com o pequeno quintal de sua casa, para os lados do velho caminho da Vila, pela Orada, para Puente Barjas, frente a São Gregório, em declive e socalcada estendia-se a pequena Quinta de São Gião, já no tempo de D. Sancho II retiro forçado dos gafos do termo, como se induz deste documento extraído do Livro das Datas do Mosteiro de Fiães:   // continua...

quinta-feira, 12 de maio de 2016

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Concebido e organizado por Joaquim A. Rocha



escritores melgacenses


- SOARES, Aldomar Rodrigues (Mário de Prado). Filho de Emília dos Prazeres [Rodrigues], solteira, doméstica, do lugar do Cerdedo, Prado, e de Luís Cândido Soares, solteiro, lavrador, do lugar do Buraco, Prado, onde morava. Neto paterno de Florêncio Soares (Pata), lavrador, da Vila, e de Ludovina Rosa Alves, do lugar do Buraco, Prado, onde moravam; neto materno de Vitória da Purificação Fernandes, doméstica, de Prado. Bisneto pela parte paterna de Maria Teresa de Magalhães. Nasceu no lugar do Cerdedo, Prado, a 10/9/1913, tendo por parteira Joana Rosa Gomes, do lugar da Breia, e foi batizado a 3 de Outubro desse ano. Padrinhos: Abílio Augusto Domingues e Felicidade Pinheiro. Testemunhas do seu registo na Conservatória do Registo Civil de Melgaço: António da Silva Cintrão, casado, lavrador, Isidoro Artur do Paço, cocheiro, ambos moradores na Vila, e Manuel José Ferreira, solteiro, lavrador, de Sante, Paderne. (A declaração de nascimento foi feita pelos seus pais, os quais declararam reconhecê-lo como seu filho para todos os efeitos legais). Todos assinaram, à exceção da mãe do Aldomar, por não saber. // A 17/11/1918 foi admitido na Confraria das Almas de Prado. // Aprendeu as primeiras letras na escola do Pombal com o professor José Caetano Gomes, transitando em seguida para a escola da Vila, cuja professora era Ana Cândida Magalhães de Barros. Dali mudou-se para a escola de Rouças, tendo por professor Rodolfo Augusto Esteves, sendo por este proposto a exame em 1925. Frequentou também o ensino particular, recebendo aulas de Agostinho Fernandes de Barros. // Fez a 1.ª comunhão na igreja de SMP a 30/5/1922. // Entre 1925 e 1927 foi aprendiz de serralheiro na oficina de Manuel Pereira, mais conhecido por “Manuel dos Ovos”, que nesse ano de 1927 encerrou a oficina a fim de emigrar para o Brasil. // Aprendeu música com Mestre Morais em 1928 e 1929, tocando clarinete e depois saxofone. Fez parte do “Orfeão Melgacense.“ // Residiu sucessivamente nos lugares de Cerdedo, Ferreiros, e Buraco, da freguesia de Prado, e na freguesia da Vila: Carvalhiças, Galvão, Corujeiras, e de novo em Galvão, até Janeiro de 1930, data em que emigrou para a Galiza, onde residiu em Mandelos e Eira, lugares da freguesia de Cecrinhos; depois em Quintela, e finalmente em Berducido de Redondela. Emigrou para França a 8/8/1930, fixando-se em Toulouse, onde se encontrava seu pai, regressando a Portugal a 5/8/1935. // Assentou praça na Escola Prática de Engenharia, em Tancos, a 3/3/1936, ficando com o n.º 90, tendo sido colocado na 1.ª Companhia (Transmissões), onde – a 22/5/1936 – fez exame do 1.º curso de habilitação das escolas regimentais. A 8/7/1937 fez exame do 2.º curso, e em 16 do mesmo mês e ano foi promovido a 2.º cabo; a 26/1/1938 foi promovido a 1.º cabo. A 15/6/1940 fez exame do 3.º curso, obtendo 12,5 valores. Passou à disponibilidade a 1/2/1941, sendo nessa data promovido a furriel miliciano. // Alistou-se na Polícia de Segurança Pública de Lisboa a 4/2/1941 (Notícias de Melgaço n.º 530). // Casou na 4.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa a 25/11/1943 com Aurora Augusta, também de Prado, filha de José Faustino e de Maria Francisca Domingues, ficando a residir na Rua Maestro António Taborda, 68-1.º; casaram na igreja de Prado a 28/2/1952, tendo sido celebrantes os padres Justino Domingues, pároco da Vila, e Firmino Augusto Gonçalves, pároco de Prado. // Adoeceu com meningite a 16/12/1946, do que lhe havia de resultar surdez total e paralisia do flanco direito. Foi tratado no hospital Curry Cabral, Rego, Lisboa. Lê-se no “Notícias de Melgaço n.º 815, de 27/4/1947: «do hospital Curry Cabral, onde sentia umas ligeiras melhoras, transitou para o Serviço II do hospital de Santo António dos Capuchos.» // Devido à doença, foi dispensado da PSP, a 7/7/1947, regressando a Melgaço a 18/7/1947, passando a residir sucessivamente em Galvão, freguesia da Vila, Serra e Rego, freguesia de Prado. // Entrou no hospital de Santo António do Porto a 19/4/1955, do qual regressou a 17 de Maio desse ano. // Faleceu na sua casa, em Prado, na noite de 6 para 7/9/1962. // A sua viúva finou-se a 23/6/1999, com 81 anos de idade, em Queluz, em casa da filha (A Voz de Melgaço n.º 1118). // Pai de dois filhos: Carlos Alberto, nascido em Lisboa em 1944, e Maria Luísa, nascida em Prado alguns anos depois. // Colaborara em “A Voz de Melgaço” desde o primeiro número, onde deixou escritos de grande interesse histórico; alguns desses artigos foram reunidos pelo padre Júlio Vaz, e editados em livro em 1996 com o título “Padre Júlio Vaz Apresenta Mário”. Também deixou alguns poemas, revelando-nos o seu sentir face às coisas que o atormentavam. Soube, como poucos, suportar a dor, a adversidade, transformando a desgraça em hino à capacidade de realização. Este homem, com a sua imensa vontade e talento, teria sido tudo, desde que as oportunidades surgissem; mas como nasceu pobre, e os poderosos a estes fecham sempre a porta, o “Mário” só furou até onde pôde, mesmo assim legou-nos mais, muito mais, do que lhe seria exigido. Outros, ricos e anafados, na hora da morte só deixam os cofres abarrotados de notas de banco. Ele deixou-nos a sua obra, embora incompleta e imperfeita, como todas as obras.           


segunda-feira, 9 de maio de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha


// continuação (ver em 5/4/2016).

- Quem foi o pai, desta vez?!
- O Rodolfo de Tronços, filho do dono da mercearia, era todo atiradiço, enganou uma data de raparigas, espero que não lhe façam o mesmo às filhas, não respeitava ninguém.
- Não me diga que ele a forçou?!
- Não, de maneira nenhuma, mas prometeu-me casamento, fartou-se de dizer mal do outro, e eu fui no engodo; desejava arrumar a minha vida, mas dava sempre com estes garotos, engravidavam-me e depois já não queriam nada comigo, até parece que eu tinha lepra.
- Seis anos depois nasceu o Olavo.
- Nessa altura já eu deixara Tronços, fui servir para Cendre, para casa de uma velhota, isto por volta de 1939. Ali perto trabalhavam como caseiros de uma quinta os pais do teu pai, o Agostinho Meliças e a sua mulher, Mariana. Só tinham um filho, o Olavo Augusto, que depois veio a ser o vosso pai. Eu não lhe ligava nenhuma, porque ele era uma criança à minha beira, tinha menos doze anos do que eu, nascera em 1920. Andava atrás de mim como o gato anda atrás da gata na época do cio, não me largava, dizia-me que a diferença de idades não interessava, que casava comigo, podíamos viver ali em Cendre, ele ganhava algum dinheiro no contrabando e eu trataria da casa.
- Mais uma vez caiu na esparrela!
- Dizem que gato escaldado até do frio tem medo, mas eu não aprendia, cabeça oca, pensava que devia haver no mundo alguém, um homem bom e sincero que gostasse verdadeiramente de mim, que não me enganaria, que me respeitaria como mulher, apesar de já ter tido quatro filhos de quatro homens diferentes; enganei-me mais uma vez, fiquei grávida do teu irmão; em Setembro de 1941 ele nasceu e eu continuava solteira como antes. Eu chorava, mas ele não se comovia. Arrendámos uma velha casa, muita pequeninha, perto do posto da Guarda-Fiscal, e passámos a viver ali, embora ele poucas vezes lá ficasse, dizia que tinha de dormir em casa dos pais, ajudá-los na lavoura, porque estavam a ficar velhos. Conversa, ele tinha era outra, uma da idade dele, eu já devia calcular.
- Passou então a haver cenas de ciúmes.
- Bueno, bueno! Quase todos os dias; o estroina aparecia, vinha encher a mula, andava sempre esfomeado, e depois dizia que tinha de ir aqui ou ali, só para não me ouvir. Eu enchia-me de esgaravatar: a vender peixe, a contrabandear, e ele não me ajudava nada, ao invés, vinha comer o suor do meu rosto.
- Acabou por ficar grávida de mim!
- Tu foste o último filho que eu tive, um meia-leca, e era para não teres nascido, ainda pensei em abortar, as vizinhas aconselharam-mo: «ó mulher, não sejas doida, mais um filho arruína-te, desgraça-te; o melhor será abortares, ali a Dolores tem mão para isso.» O teu pai já estava zangado comigo, a bem dizer já nem nos víamos, ele passava muito tempo com a namorada galega, ela já devia estar grávida também, até parece que o embruxou, ele nunca mais foi o mesmo para mim depois de a conhecer.
- Por que é que ele não perfilhou o vosso primeiro filho, o Olavo?
- Bem, nós estávamos a muita distância, quase a dez quilómetros da sede do concelho, onde se encontrava o Registo Civil, e ele era muito comodista, não queria lá ir, prometia sempre, nunca disse que não ia, mas quando chegava a altura, dava sempre uma desculpa, eu também não insistia muito porque toda a gente sabia que o teu irmão era filho dele.
- Quando eu nasci…
- Quando tu nasceste fui falar com ele e implorei-lhe que vos perfilhasse, não figurardes com nome de pai podia ter implicações no vosso futuro, mas ele fez uma cena dos diabos, disse-me que o primeiro ainda vá lá, podia ser filho dele, ora o segundo, nem pensar, sabia lá ele quem era o pai! Eu fiquei cega de raiva, o filho da púcara, que a mãe não o era, pois olha que enquanto andei com ele não tive outro homem, sacana, era um cachorro, o que ele queria era arranjar um pretexto, uma desculpa tola, para se separar, desvincular definitivamente de mim. Chamei-lhe todos os nomes, e ainda foram poucos, quis bater-me, mas eu gritei por socorro e logo veio gente defender-me; o teu padrinho, o Flávio Ferreira, ainda tentou dar-lhe umas arrochadas, mas eu não deixei, impedi-o, apesar de tudo ainda gostava dele!            
- Eu nunca o vi!
- Pois não, depois de tu nasceres, terias uns três meses de vida, ele foi-se embora para Espanha com a outra, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima.
- E assim ficámos os dois, eu e o Olavo, como sendo filhos de pai incógnito!
- Infelizmente assim é; todos ficaram sendo de pais incógnitos, mas olha que eu não tive culpa, é o destino, eu nem queria nada com o teu pai, nem sei como isso aconteceu, eu era uma mulher só, já não era nova, queria tentar pelo menos constituir o meu lar, mas quem nasce malfadado tarde ou nunca encontrará uma migalha de felicidade; coitada de mim, nunca tive sorte com os homens, fizeram pouco de mim, aproveitaram-se da minha fragilidade, e o azar sempre me acompanhou na vida. Nasci pobre; e quem nasce pobre acabará quase sempre por morrer da mesma maneira. A minha única riqueza é a liberdade e os filhos. Sobretudo tu que és o mais novo e tens estado sempre ao meu lado, a aturar os meus infortúnios, as minhas infelicidades.
- Os dois meus irmãos mais velhos só são seus filhos de nome, deu-os à luz mas não os criou, não viveu com eles; o Olavo foi para Lisboa aos trezes anos de idade. Restei eu, mas você não me tem dado grandes alegrias, podia emendar-se.    
- É tarde para isso, demasiado tarde. Passei muita desgraça, sofri muito, nunca compreendi o mundo e as suas gentes, hoje sou um farrapo humano; não me peças impossíveis. // continua...