ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes
11.º
Capítulo
BOLAMA
Desta vez o reencontro entre os
dois amigos demorou mais do que o previsto. O trabalho e os estudos não permitiam
grandes folgas. Henrique, contudo, estava ansioso por ouvir o relato daquela
aventura que foi a guerra colonial. Logo que lhes foi possível encontraram-se.
Ainda Cândido não aquecera o lugar, já o outro lhe perguntava:
- Como se sentiu ao pisar terras
africanas? Teve receio?
- Nessa ilha, de uma beleza
paradisíaca, não havia quaisquer confrontos armados. No entanto, já aí se
respirava uma atmosfera de guerra. Barcos chegavam e partiam com contingentes
para o “mato”, para o barulho, como
na altura se dizia. Os rostos desses jovens, mas já experientes beligerantes,
denunciavam fadiga; porém nos seus olhos, apesar de tudo, ainda se vislumbrava
uma chama de esperança. Lembro-me de ter perguntado a um marinheiro, com
aspecto de patriarca – grisalho, longas patilhas, bigode farfalhudo e pêra
pontiaguda – se a guerra iria ou não durar muito. Sorriu, com aquele sorriso de
quem sabe muito da vida e dos homens, e sentenciou em tom solene: «Talvez os
teus filhos e netos, se os vieres a ter, cá venham batê-las!»
Na sua rudeza, o marujo experimentado, cheio de tarimba, falava como um
oráculo! Este tipo de conflito, mais tarde pude verificar isso mesmo, não tem
um tempo determinado para a sua duração: aguenta até a causa que lhe deu origem
desaparecer. São deveras complexas estas lutas de libertação. Os grupos, ou o
grupo, que combatem são geralmente apoiados por este ou aquele país, por este
ou por aquele movimento internacional, pela própria população. Aparecem armas,
surgem apoios em alimentos, fardas, instrução. Os generais afectos ao poder pensam
que determinada zona está controlada; pode estar, mas logo surge outra zona,
não muito longe daquela, com problemas insolúveis. E assim sucessivamente.
Henrique, desejando intervir,
pergunta:
- Acha que era possível não haver mais
guerras?!
- Possível, sim; e desejável também.
Mas não é provável que isso venha a acontecer em breve, embora correspondesse
ao anseio da maioria esmagadora da humanidade. Quanto a mim, todas as pugnas
são alimentadas por homens com cérebros bélicos, e enquanto estes existirem
elas existirão também.
Era uma resposta razoável, mas
insuficiente, pensou o rapaz. Por isso, perguntou-lhe:
- Como se definiria ideologicamente?
- Referes-te ao tempo presente, é
óbvio. Bem, eu considero-me ecléctico, isto é, aproveito tudo que de bom têm os
outros, rejeitando, se puder, tudo aquilo que acho errado. Exemplificando: já
me pediram para me inscrever num Partido Político. Eu perguntei-lhes: «Concordam
com a existência de Forças Armadas?» A resposta já eu a sabia de antemão:
«Sim, concordamos.» «Então – disse-lhes – não posso filiar-me no
vosso Partido.» Ficaram irritados comigo: «Mas isso é uma utopia, onde se viu
um país sem Forças Armadas, sem defesa, à mercê de qualquer bando que aparecesse
por aí…»
- Ficou sem argumentos… - disse o amigo, convencido, também ele, de
que tudo não passava de um devaneio.
- Pelo contrário. Respondi-lhes: «está
provado que as guerras são prejudiciais à humanidade; só meia dúzia de capitalistas
e generais sem escrúpulos ganha com elas; se elas acabarem é um bem e não um
mal.»
- Radicalismo puro. Acha o meu amigo que
no caso de se extinguirem as Forças Armadas terminam as guerras?!
- Exactamente. Então não tens reparado
que são sempre os militares e os donos das fábricas de armamento a pressionar
os políticos para estes declararem os conflitos armados?
- Hitler, Mussolini… - recordou Henrique.
- Esses monstros, embora civis, tinham
espírito militarista. Não te apercebeste por acaso que usavam sempre farda? E
não eram quaisquer fardas – feitas de óptimo tecido e à medida dos seus
deformados corpos. E julgas que os grandes industriais de armamento não estavam
por detrás disso tudo?
- Salazar nunca vestiu uma farda, penso
eu, e no entanto provocou a chamada guerra colonial! - ripostou o moço, na ânsia de alimentar a fogueira da polémica.
- Contrafeito. Foi obrigado a isso.
Nunca se sentiu bem nesse papel. Se ele gostasse dessas coisas, teria entrado
na Segunda Grande Guerra. Por outro lado, não queria cometer os mesmos erros
que cometeram os republicanos na 1.ª República. Era um ditador, mas dentro de
casa; não um guerreiro, no campo de batalha. As Forças Armadas no seu regime
nunca brilharam; bem pelo contrário, muitas vezes foram por ele enxovalhadas! O
único militar que respeitou, de certo modo, foi o marechal Carmona. Por gratidão.
Devia-lhe favores. Não sabes por acaso que o almirante Américo Tomás foi um
joguete nas suas mãos? E que o general Craveiro Lopes lhe virou as costas, já
farto de obedecer?
Henrique
estava a ficar cansado de tanta verborreia. «Que diabo: isto não fazia parte da
narrativa» – pensava ele.
Cândido, óptimo observador, notou
o aborrecimento do amigo e diz:
- Com toda essa conversa da treta ia-me
esquecendo do essencial. Desculpa. Quanto ao marinheiro… Depois dele falar eu
fiquei pensativo. Para quê ripostar se tinha ficado esclarecido? Teria,
doravante, de arranjar calo, um pouco de coragem e paciência para suportar os
tempos árduos que se avizinhavam.
Os nossos camuflados verdes, do pouco uso, contrastavam com os
amarelados, gastos, da tropa “velha”;
a nossa pele, alva, parecia pertencer a bonecos de neve, comparada com a pele
escura, queimada, dos que se encontravam em África, na Guiné, havia já algum
tempo.
Ao contrário do que seria de esperar, os veteranos não riam do nosso
aspecto, não riam dos maçaricos (assim chamados
por a farda ainda manter a cor da pequena ave de nome maçarico verde); eles
sabiam o que nos esperava e isso não podia de modo algum inspirar motivo para
regozijo. Por outro lado, nós íamos substituir alguns deles, que assim poderiam
regressar à sua amada terra, ao seu querido lar, abraçar filhos que
possivelmente ainda não conheciam e esposas que deixaram banhadas em lágrimas!
Nessa pequeníssima cidade, Bolama, quase terra de brancos nessa altura,
havia um hotel, não sei de quantas estrelas. Nunca lá entrei. Por fora tinha
bom aspecto. Enquanto houve guerra colonial esteve ao serviço das nossas Forças
Armadas – era um pequeno quartel-general.
Ali na zona estivemos algum tempo a
exercitar o nosso instinto guerreador.
Durante esse tempo, e a partir desse ponto, levámos a cabo algumas
acções, com Companhias de Caçadores já bastante castigadas pela guerra.
Iniciava-se, dessa maneira, a nossa odisseia e o nosso baptismo de fogo.
Mas, para desanuviar um pouco o
ambiente de guerra, vou-te contar um episódio engraçado no qual eu fui o principal
actor. Certo dia o cozinheiro adoeceu e o seu ajudante ainda não chegara da
metrópole – chegaria precisamente no dia seguinte. O comandante mandou reunir a
Companhia e expôs o assunto: «hoje não temos jantar, o cozinheiro está de cama;
se houver aí alguém que saiba cozinhar que o diga – não é preciso grande
requinte, umas batatas com atum já serve.»
Todos ficaram calados. Eu, contudo, não podia ficar indiferente àquele
silêncio. Lembrando-me que já cozinhara algumas vezes, mas para pouquíssimas
pessoas, levantei a mão e disse: «eu faço o jantar.» Suponho que até bateram
palmas! O pior foi depois. Quantos quilos de batatas eu ia colocar na panela? E
a água – que quantidade? E o sal? Quanto ao atum era fácil, se fossem latas
pequenas, mas se fossem grandes? Entrei em pânico.
Bem: pôs-se o panelão ao lume,
quase cheio de água, descascaram-se as batatas e puseram-se a ferver. Às tantas
a água já deitava por fora, num borbulhar infernal. Para mexer aquilo, com a
enorme colher de pau, era necessária a força de um gigante. Deitei alguma água
fora e fui buscar o sal. Aqui é que o desastre se completou. Atirei-lhe com uns
punhados lá para dentro, à sorte, ao calha, ultrapassaria o quilograma!
Quando as batatas já estavam cozidas chamei o pessoal e comecei a
distribui-las. Um ajudante improvisado misturava o atum. Logo que começaram a
comer desatam aos gritos: «isto é intragável, está salgado que nem uma pilha…»
O tenente chegou esbaforido e
disse: «Acalmem-se – comam apenas o atum com pão. Um dia não são dias.»
As coisas serenaram, alguns até compreenderam a situação, mas a vergonha
foi muita.
Henrique, que já estava calado havia algum
tempo, riu-se com gosto, e depois interroga:
- E quanto ao clima? Dizem que era
terrível!
- O clima da ex-colónia não podia ser
pior. O ar, quente e húmido; as melgas existiam em tanta quantidade que se tornava
inútil e frustrante combatê-las! Graças aos leves e transparentes mosquiteiros
podíamos dormir umas horas, porque dormir durante esse período era de facto um
verdadeiro privilégio, um luxo. Já sei que me vais perguntar: “os negros também
eram atacados pelas temíveis melgas?” Respondo-te desde já: não, não eram, por
mais incrível que isso pareça!
- E há alguma explicação para que tal
facto acontecesse?! – pergunta o jovem,
algo incrédulo, convencido talvez de que o amigo já confundia a realidade com a
fábula.
- Ao princípio, embora esse “milagre” me tivesse chamado a atenção,
não o entendia. Pensava que existiria uma espécie de pacto de boa vizinhança
entre eles, ou então estávamos perante uma trégua, mais ou menos prolongada,
depois de uma luta de séculos!
- Mas não era nada disso, suponho eu!
- Pudera! Mais tarde, bem mais tarde,
soube tratar-se de um fenómeno natural. Os africanos negros possuem umas glândulas
que exalam um odor especial, cheiro esse que consegue afastar da sua beira
esses horripilantes bichinhos!
Henrique estava maravilhado com essas
explicações. Exterioriza:
- A natureza é, sem um grão de dúvida,
quase perfeita!
- Vê lá tu: tão desprotegidos em termos
de habitação e de vestuário, de assistência médica, os indígenas não teriam
certamente quaisquer possibilidades de resistir àqueles “vampiros” ousados e nojentos.
Mas além desse cheiro característico, eles ainda se servem do fumo e do
fogo para afastar potenciais perigos de feras e de outros inimigos naturais. A
fogueira (espécie de fogo sagrado)
acompanha-os praticamente toda a vida. Têm isso em comum com os povos primitivos
e com os ciganos nómadas.
- Estiveram muito tempo em Bolama?
- Um mês, talvez mês e meio; já não me recordo
exactamente. Daí, e após peripécias várias, entre elas a operação que levou ao
hospital dezenas de camaradas...
- O que aconteceu? Foram atacados?
- Sim, mas pelas abelhas. Eu conto-te a
impertinência das grandes produtoras de cera e mel, cujas armas, os ferrões,
são tão temíveis como uma metralhadora: saímos de Bolama, ainda o sol não
nascera, atravessando um pantanal imenso, e, afoitos, embrenhámo-nos na mata
chamada de São João; às tantas, quase num golpe de magia, aparecem-nos milhares
e milhares de abelhas, um enxame inteiro, sedentas de vingança, com o seu
subtil ferrão em riste! Desordenadamente, fugimos, largámos as armas e munições,
gritámos e até houve quem chorasse como autênticas crianças abandonadas. Os
nossos camaradas radiotelegrafistas chamaram os helicópteros logo que isso lhes
foi possível, e os mais atingidos foram evacuados para o hospital militar de
Bissau.
- Dramático! – comenta Henrique.
- Não há, nem poderá jamais haver
palavras que consigam descrever esta louca situação. Uma coisa é combater contra
seres humanos armados, embora escondidos e conhecedores do terreno; outra coisa
bem diferente é lutar contra ousados animais minúsculos, e aparentemente inofensivos,
que apenas tentam defender desesperadamente as suas colmeias. Para nós,
confesso, foi assaz humilhante. Até houve depois quem dissesse que tinha sido
manobra do inimigo!
- O Cândido acredita nessa balela?
- Não acredito em tal: abelhas
adestradas? A não ser que elas fossem nacionalistas, estivessem ao serviço da
guerrilha!
- Nunca se sabe! – riu-se com vontade o rapaz.
- Brinca, brinca; mas nós, desgraçados,
é que sofremos na pele esse ataque. Nem a mascote nos valeu!
- O que era a vossa mascote? Um macaco?
A resposta ficou no ar, pois o
tempo escoou-se. Ambos se levantaram da mesa do Café e despediram-se amigavelmente.
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