domingo, 29 de maio de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS

(dois anos de guerra na Guiné-Bissau) 

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Rui Nunes


11.º Capítulo


BOLAMA

     Desta vez o reencontro entre os dois amigos demorou mais do que o previsto. O trabalho e os estudos não permitiam grandes folgas. Henrique, contudo, estava ansioso por ouvir o relato daquela aventura que foi a guerra colonial. Logo que lhes foi possível encontraram-se. Ainda Cândido não aquecera o lugar, já o outro lhe perguntava:

- Como se sentiu ao pisar terras africanas? Teve receio?
- Nessa ilha, de uma beleza paradisíaca, não havia quaisquer confrontos armados. No entanto, já aí se respirava uma atmosfera de guerra. Barcos chegavam e partiam com contingentes para o “mato”, para o barulho, como na altura se dizia. Os rostos desses jovens, mas já experientes beligerantes, denunciavam fadiga; porém nos seus olhos, apesar de tudo, ainda se vislumbrava uma chama de esperança. Lembro-me de ter perguntado a um marinheiro, com aspecto de patriarca – grisalho, longas patilhas, bigode farfalhudo e pêra pontiaguda – se a guerra iria ou não durar muito. Sorriu, com aquele sorriso de quem sabe muito da vida e dos homens, e sentenciou em tom solene: «Talvez os teus filhos e netos, se os vieres a ter, cá venham batê-las
     Na sua rudeza, o marujo experimentado, cheio de tarimba, falava como um oráculo! Este tipo de conflito, mais tarde pude verificar isso mesmo, não tem um tempo determinado para a sua duração: aguenta até a causa que lhe deu origem desaparecer. São deveras complexas estas lutas de libertação. Os grupos, ou o grupo, que combatem são geralmente apoiados por este ou aquele país, por este ou por aquele movimento internacional, pela própria população. Aparecem armas, surgem apoios em alimentos, fardas, instrução. Os generais afectos ao poder pensam que determinada zona está controlada; pode estar, mas logo surge outra zona, não muito longe daquela, com problemas insolúveis. E assim sucessivamente. 
    
     Henrique, desejando intervir, pergunta:

- Acha que era possível não haver mais guerras?!
- Possível, sim; e desejável também. Mas não é provável que isso venha a acontecer em breve, embora correspondesse ao anseio da maioria esmagadora da humanidade. Quanto a mim, todas as pugnas são alimentadas por homens com cérebros bélicos, e enquanto estes existirem elas existirão também.  

     Era uma resposta razoável, mas insuficiente, pensou o rapaz. Por isso, perguntou-lhe:

- Como se definiria ideologicamente?
- Referes-te ao tempo presente, é óbvio. Bem, eu considero-me ecléctico, isto é, aproveito tudo que de bom têm os outros, rejeitando, se puder, tudo aquilo que acho errado. Exemplificando: já me pediram para me inscrever num Partido Político. Eu perguntei-lhes: «Concordam com a existência de Forças Armadas?» A resposta já eu a sabia de antemão:
     «Sim, concordamos.» «Entãodisse-lhesnão posso filiar-me no vosso Partido.» Ficaram irritados comigo: «Mas isso é uma utopia, onde se viu um país sem Forças Armadas, sem defesa, à mercê de qualquer bando que aparecesse por aí…»
- Ficou sem argumentos… - disse o amigo, convencido, também ele, de que tudo não passava de um devaneio.
- Pelo contrário. Respondi-lhes: «está provado que as guerras são prejudiciais à humanidade; só meia dúzia de capitalistas e generais sem escrúpulos ganha com elas; se elas acabarem é um bem e não um mal
- Radicalismo puro. Acha o meu amigo que no caso de se extinguirem as Forças Armadas terminam as guerras?!
- Exactamente. Então não tens reparado que são sempre os militares e os donos das fábricas de armamento a pressionar os políticos para estes declararem os conflitos armados?
- Hitler, Mussolini… - recordou Henrique.
- Esses monstros, embora civis, tinham espírito militarista. Não te apercebeste por acaso que usavam sempre farda? E não eram quaisquer fardas – feitas de óptimo tecido e à medida dos seus deformados corpos. E julgas que os grandes industriais de armamento não estavam por detrás disso tudo?
- Salazar nunca vestiu uma farda, penso eu, e no entanto provocou a chamada guerra colonial! - ripostou o moço, na ânsia de alimentar a fogueira da polémica.
- Contrafeito. Foi obrigado a isso. Nunca se sentiu bem nesse papel. Se ele gostasse dessas coisas, teria entrado na Segunda Grande Guerra. Por outro lado, não queria cometer os mesmos erros que cometeram os republicanos na 1.ª República. Era um ditador, mas dentro de casa; não um guerreiro, no campo de batalha. As Forças Armadas no seu regime nunca brilharam; bem pelo contrário, muitas vezes foram por ele enxovalhadas! O único militar que respeitou, de certo modo, foi o marechal Carmona. Por gratidão. Devia-lhe favores. Não sabes por acaso que o almirante Américo Tomás foi um joguete nas suas mãos? E que o general Craveiro Lopes lhe virou as costas, já farto de obedecer?               
    
Henrique estava a ficar cansado de tanta verborreia. «Que diabo: isto não fazia parte da narrativa» – pensava ele.
     Cândido, óptimo observador, notou o aborrecimento do amigo e diz:

- Com toda essa conversa da treta ia-me esquecendo do essencial. Desculpa. Quanto ao marinheiro… Depois dele falar eu fiquei pensativo. Para quê ripostar se tinha ficado esclarecido? Teria, doravante, de arranjar calo, um pouco de coragem e paciência para suportar os tempos árduos que se avizinhavam.
     Os nossos camuflados verdes, do pouco uso, contrastavam com os amarelados, gastos, da tropa “velha”; a nossa pele, alva, parecia pertencer a bonecos de neve, comparada com a pele escura, queimada, dos que se encontravam em África, na Guiné, havia já algum tempo.    
     Ao contrário do que seria de esperar, os veteranos não riam do nosso aspecto, não riam dos maçaricos (assim chamados por a farda ainda manter a cor da pequena ave de nome maçarico verde); eles sabiam o que nos esperava e isso não podia de modo algum inspirar motivo para regozijo. Por outro lado, nós íamos substituir alguns deles, que assim poderiam regressar à sua amada terra, ao seu querido lar, abraçar filhos que possivelmente ainda não conheciam e esposas que deixaram banhadas em lágrimas!
     Nessa pequeníssima cidade, Bolama, quase terra de brancos nessa altura, havia um hotel, não sei de quantas estrelas. Nunca lá entrei. Por fora tinha bom aspecto. Enquanto houve guerra colonial esteve ao serviço das nossas Forças Armadas – era um pequeno quartel-general.
     Ali na zona estivemos algum tempo a exercitar o nosso instinto guerreador.
     Durante esse tempo, e a partir desse ponto, levámos a cabo algumas acções, com Companhias de Caçadores já bastante castigadas pela guerra. Iniciava-se, dessa maneira, a nossa odisseia e o nosso baptismo de fogo.
     Mas, para desanuviar um pouco o ambiente de guerra, vou-te contar um episódio engraçado no qual eu fui o principal actor. Certo dia o cozinheiro adoeceu e o seu ajudante ainda não chegara da metrópole – chegaria precisamente no dia seguinte. O comandante mandou reunir a Companhia e expôs o assunto: «hoje não temos jantar, o cozinheiro está de cama; se houver aí alguém que saiba cozinhar que o diga – não é preciso grande requinte, umas batatas com atum já serve.»   
     Todos ficaram calados. Eu, contudo, não podia ficar indiferente àquele silêncio. Lembrando-me que já cozinhara algumas vezes, mas para pouquíssimas pessoas, levantei a mão e disse: «eu faço o jantar.» Suponho que até bateram palmas! O pior foi depois. Quantos quilos de batatas eu ia colocar na panela? E a água – que quantidade? E o sal? Quanto ao atum era fácil, se fossem latas pequenas, mas se fossem grandes? Entrei em pânico.
     Bem: pôs-se o panelão ao lume, quase cheio de água, descascaram-se as batatas e puseram-se a ferver. Às tantas a água já deitava por fora, num borbulhar infernal. Para mexer aquilo, com a enorme colher de pau, era necessária a força de um gigante. Deitei alguma água fora e fui buscar o sal. Aqui é que o desastre se completou. Atirei-lhe com uns punhados lá para dentro, à sorte, ao calha, ultrapassaria o quilograma!  
     Quando as batatas já estavam cozidas chamei o pessoal e comecei a distribui-las. Um ajudante improvisado misturava o atum. Logo que começaram a comer desatam aos gritos: «isto é intragável, está salgado que nem uma pilha…»
     O tenente chegou esbaforido e disse: «Acalmem-se – comam apenas o atum com pão. Um dia não são dias.»
     As coisas serenaram, alguns até compreenderam a situação, mas a vergonha foi muita.          

     Henrique, que já estava calado havia algum tempo, riu-se com gosto, e depois interroga:

- E quanto ao clima? Dizem que era terrível!
- O clima da ex-colónia não podia ser pior. O ar, quente e húmido; as melgas existiam em tanta quantidade que se tornava inútil e frustrante combatê-las! Graças aos leves e transparentes mosquiteiros podíamos dormir umas horas, porque dormir durante esse período era de facto um verdadeiro privilégio, um luxo. Já sei que me vais perguntar: “os negros também eram atacados pelas temíveis melgas?” Respondo-te desde já: não, não eram, por mais incrível que isso pareça!
- E há alguma explicação para que tal facto acontecesse?! – pergunta o jovem, algo incrédulo, convencido talvez de que o amigo já confundia a realidade com a fábula.
- Ao princípio, embora esse “milagre” me tivesse chamado a atenção, não o entendia. Pensava que existiria uma espécie de pacto de boa vizinhança entre eles, ou então estávamos perante uma trégua, mais ou menos prolongada, depois de uma luta de séculos!
- Mas não era nada disso, suponho eu!
- Pudera! Mais tarde, bem mais tarde, soube tratar-se de um fenómeno natural. Os africanos negros possuem umas glândulas que exalam um odor especial, cheiro esse que consegue afastar da sua beira esses horripilantes bichinhos!

     Henrique estava maravilhado com essas explicações. Exterioriza:

- A natureza é, sem um grão de dúvida, quase perfeita!
- Vê lá tu: tão desprotegidos em termos de habitação e de vestuário, de assistência médica, os indígenas não teriam certamente quaisquer possibilidades de resistir àqueles “vampiros” ousados e nojentos.           
     Mas além desse cheiro característico, eles ainda se servem do fumo e do fogo para afastar potenciais perigos de feras e de outros inimigos naturais. A fogueira (espécie de fogo sagrado) acompanha-os praticamente toda a vida. Têm isso em comum com os povos primitivos e com os ciganos nómadas.
- Estiveram muito tempo em Bolama?
- Um mês, talvez mês e meio; já não me recordo exactamente. Daí, e após peripécias várias, entre elas a operação que levou ao hospital dezenas de camaradas...
- O que aconteceu? Foram atacados?
- Sim, mas pelas abelhas. Eu conto-te a impertinência das grandes produtoras de cera e mel, cujas armas, os ferrões, são tão temíveis como uma metralhadora: saímos de Bolama, ainda o sol não nascera, atravessando um pantanal imenso, e, afoitos, embrenhámo-nos na mata chamada de São João; às tantas, quase num golpe de magia, aparecem-nos milhares e milhares de abelhas, um enxame inteiro, sedentas de vingança, com o seu subtil ferrão em riste! Desordenadamente, fugimos, largámos as armas e munições, gritámos e até houve quem chorasse como autênticas crianças abandonadas. Os nossos camaradas radiotelegrafistas chamaram os helicópteros logo que isso lhes foi possível, e os mais atingidos foram evacuados para o hospital militar de Bissau.
- Dramático! – comenta Henrique.
- Não há, nem poderá jamais haver palavras que consigam descrever esta louca situação. Uma coisa é combater contra seres humanos armados, embora escondidos e conhecedores do terreno; outra coisa bem diferente é lutar contra ousados animais minúsculos, e aparentemente inofensivos, que apenas tentam defender desesperadamente as suas colmeias. Para nós, confesso, foi assaz humilhante. Até houve depois quem dissesse que tinha sido manobra do inimigo!
- O Cândido acredita nessa balela?
- Não acredito em tal: abelhas adestradas? A não ser que elas fossem nacionalistas, estivessem ao serviço da guerrilha!       
- Nunca se sabe! – riu-se com vontade o rapaz.
- Brinca, brinca; mas nós, desgraçados, é que sofremos na pele esse ataque. Nem a mascote nos valeu!
- O que era a vossa mascote? Um macaco?
    

     A resposta ficou no ar, pois o tempo escoou-se. Ambos se levantaram da mesa do Café e despediram-se amigavelmente.

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