quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha

porta fechada, destino adiado

VI

     A curiosidade é como uma doença: umas vezes cura-se, outras vezes não!

     Estou novamente com o meu irmão na cavaqueira, relembrando tempos passados, bons e maus momentos, quase sempre maus, pois quem vive no limite da pobreza, desamparados, carentes de comida, de roupa, e até de carinhos, não tem com certeza momentos bons para relembrar. Ponham então o ouvido à escuta:

- Por que é que viemos para a Vila? Não seria melhor para nós morar em Cendre?
- Tu és um idiota, não estás a compreender. A nossa família é da Vila, só nascemos em Cendre porque a tua mãe estava lá, fora para esse lugar tratar uma idosa, sogra de um soldado da guarda-fiscal. Os nossos avós maternos eram da Vila e foi na Vila que lhe nasceram todos os filhos, só que a tua mãe precisou procurar emprego e teve de arranjá-lo em Tronços, depois foi para São Bernardo, lá conheceu o Olavo Meliças, nosso pai, e por lá ficou, quando ele se pôs a mexer para a Galiza, com a tal galega, a tua mãe ficou desesperada, começou a beber, a emborrachar-se, e já nem dinheiro tinha para pagar a renda da casa; então o dono, o senhor Silva, às tantas disse-lhe para ficar de graça, não teve coragem de a pôr na rua com dois filhitos de tenra idade, teve bom coração, mas também a casa não valia dez réis, quem é que quereria ali habitar? Agora já nem telhado tem, só possuía uma divisão com pouco mais de vinte metros quadrados de área! Depois de tu nasceres ainda lá estivemos cerca de seis anos, depois fomos os três para a Vila, tínhamos direito a metade da casa, os avós já tinham morrido e a tua mãe era dona de metade. Ficámos nos baixos, em cima morava o tio Aurélio com a mulher, a Gertrudes, e a filharada, ele era barbeiro, mas as coisas não estavam a correr bem, estava-se a passar por uma grave crise e então resolveram ir para Lisboa, os dois filhos mais velhos, a Tânia e o Adolfo, já lá estavam. Acho que foram para os arredores, havia lá conterrâneos, julgo que os meteram em casa, claro que lhes pagavam parte da renda, mas assim já ficava mais barato a todos.
- Olha que eu passei maus bocados com eles!
- Passaste tu e eu. A mamã ia para as termas cozinhar, entre Junho e Setembro, e deixava-nos ficar com a tia, ela só nos dava caldo de farinha, os petiscos, se é que os havia, duvido, eram para os seus filhos, e se não comêssemos obrigava-nos a ficar de castigo na mesa, eu comia, que sempre tive bom estômago, tudo que vem à rede é peixe, mas tu vomitavas tudo, não conseguias ingerir aquela mixórdia, coitado de ti.
- E segundo parece a mamã não lhes ficava a dever nada, pagava-lhes e bem pago.
- Sim. Nessa ocasião ela ganhou algum juízo e trazia dinheiro e comida para casa; claro que a tia recebia parte, mas com tantos filhos… E que amizade eles nos tinham? Nunca tínhamos vivido juntos, éramos como que desconhecidos, só o sangue nos unia, mas não é suficiente, é preciso crescer juntos, eu gostava mais dos rapazes de Cendre do que deles, eram como nossos irmãos, estes não, se pudessem até nos batiam, que a mim não conseguiam, que eu sou forte desde criança, mas a ti, coitado, um “lingrinhas”, eras o bombo da festa, até eu te chegava às vezes! Mas tu também eras mauzinho, não obedecias a ninguém, eras um selvagem, um anarquista, um rebelde, andavas sempre a atirar pedras às pessoas, até parece que eram todos teus inimigos! Uma vez rachaste a cabeça ao filho do Nelo Santos, o guarda-fiscal, por vontade dele matava-te, tiveste sorte, que ele não era para brincadeiras, até se dizia que tinha abatido a tiro um contrabandista, quando ele ia a atravessar o rio com contrabando, disparou uma data de balas e atingiu-o mortalmente; olha que não se arrependeu, dizia que tinha sido em serviço, malandro, o desgraçado andava a ganhar a vida, olha que aos contrabandistas poderosos, àqueles que lhe pagavam bem, a esses não perseguia, deixava-os passar livremente.
- Os guardas também ganhavam mal, coitados.
- Defende-los porque o teu padrinho é guarda, mas olha que eles não eram boa rês, prejudicaram muita gente, sobretudo os mais pobres, que os outros sabiam defender-se, tinham rede montada, mas o coitado, aquele que só levava uma saca de café para Espanha, a esse, quando o apanhavam, não perdoavam. Deviam ser todos como a famosa «Ana Home», essa era tesa, até coça lhes dava, uma altura prendeu um carabineiro a uma árvore e tirou-lhe a espingarda, olha que lhe foram logo pedir para a devolver se não o desgraçado perdia o emprego, era uma mulher de armas, uma mulher de pelo na benta, dessas é que devia haver muitas.
- Eu não defendo ninguém, apenas faço um esforço para compreender aquela época, aquela gente, a sua maneira de viver, de agir. Dizias que os tios e os primos foram para Lisboa, então ficamos com a casa toda para nós?!
- Bem, ainda ficaram connosco duas primas: a Antónia e a Laura, que acabaram por se zangar com a tua mãe e irem morar, provisoriamente, com o Evaristo, um amigo chegado do tio Aurélio. Esse Evaristo, não sei porquê, por que cargas de água, veio cravar tábuas no rés-do-chão da casa, alegando que metade lhes pertencia, e que nós não a podíamos habitar na totalidade. A mamã reagiu de forma violenta, pegou numa machada e rebentou com as tábuas, eles também tinham lá estado sozinhos e a mamã não recebera nada, e jamais lhes exigiu fosse o que fosse; por outro lado, ainda não tinha havido partilhas, por isso ninguém sabia qual era a sua metade.
- Foram para tribunal?
- Não. Parece que o Evaristo meteu as pernas entre o rabo, como fazem os rafeiros, ou então recebeu instruções do tio, e as coisas ficaram por ali. As primas depois foram para Lisboa também e nós ficámos com a casa toda.
- Tu foste à escola…
- Em 1950 matriculei-me na primeira classe, passados quatro anos, em Julho de 1954, tinha a quarta feita.
- Eu matriculei-me no ano seguinte e acabei a quarta em 1955. E a asma, como é que te passou?
- A Santa Casa da Misericórdia de Melgaço enviava todos os anos para a praia de Âncora às suas custas crianças necessitadas e com dificuldades respiratórias; eu fui uma delas.
- E a praia fez-te bem.              
- Embora não acredite em milagres, o que aconteceu é de facto extraordinário – a partir desse ano nunca mais tive problemas de respiração!
- Foram os ares do mar e os banhos de sol. // continua...

domingo, 27 de dezembro de 2015

OS NOVOS LUSÍADAS

Por Joaquim A. Rocha



21

Porém, nem tudo estará perdido,
No ar restam sementes de esperança;
Algum povo não se deu por vencido,
Luta por justiça, perseverança;
Tendo por si a seta de Cupido,
A inocência de Sancho Pança.
De Vénus há-de vir ajuda grande
E tudo mais que o coração mande.

22

Este planeta, único e belo,
Voltará um dia ao seu normal.
Cairá a muralha, o castelo,
O sacrário, o vil pedestal.
Thor trará de novo o seu martelo,
Acabará com o todo o mal.
E o povo, o eterno sacrificado,
Será dos deuses novamente amado.

// continua...

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

LINA - Filha de Pã

romance

Por Joaquim A. Rocha



     Depois de um inverno rigoroso, com imensa chuva, faíscas mil, frio e neve, veio finalmente a primavera. Os dias já eram maiores, o sol surgia radiante, as flores nasciam e espalhavam-se por todo o lado com o seu aroma inebriante. Os pássaros cantavam satisfeitos os seus hinos à mãe natureza; os rouxinóis, os canários e os melros, além de outras aves cantadeiras, brindavam os rurais com os seus admiráveis gorjeios; os rostos das pessoas pareciam mais alegres, mais confiantes. As borboletas, com as suas cores garridas, davam um ar de festa à localidade. As abelhas ziguezagueavam por entre as flores, recolhendo o seu precioso pólen.
     Lina abandonara definitivamente a escola. O país estava de rastos – os políticos da República não se entenderam entre si e deram azo à Revolução Militar. Os governos caíam uns atrás dos outros. Com o advento da Ditadura Militar tudo acalmou. Chamaram-lhe depois a «paz podre», mas podre ou sã, era paz, comentava o povo, cansado de tanta agitação.
     O seu trabalho diário agora consistia em ajudar a mãe, desamparada, pois o seu homem continuava no Caramulo, bastante fraca, débil, já com mais dois filhos nos braços, levar as cabras e ovelhas para o monte, para se alimentarem com as ervas, folhas e raízes que iam surgindo… Era raro ir só: com ela iam outras raparigas, e também rapazes, da mesma idade, com os seus pequenos rebanhos, meia dúzia de animais. O gado bovino, por ser corpulento, era da responsabilidade dos adultos, sobretudo dos homens. Cantavam pelo caminho, conversavam, eram felizes à sua maneira.
      Dois ou três cães, de médio porte, acompanhavam as crianças e vigiavam a rês, não fosse aparecer um lobo por ali, o que era raro, pois essas feras tinham o seu habitat na alta serra, só descendo no tempo da neve, a ver se encontravam alguma comida, algum animal tresmalhado.


**

     Os anos foram passando e agora aquelas crianças de ontem já eram adolescentes. O país tinha sofrido, em Maio de 1926, uma revolução, perpetrada por militares idos de Braga; acabaram com a República num ápice e criaram uma Ditadura Militar, que durou até 1933, quando foi aprovada uma Constituição e fundado o Estado Novo, regime corporativista, ao leme do qual estava o antigo professor de Coimbra, Doutor António de Oliveira Salazar. A classe média de Melcarte: médicos, advogados, professores, padres, funcionários públicos, comerciantes, etc., apoiaram inteiramente o novo regime político, apesar da censura e das restrições impostas. Estavam fartos da bagunça, da instabilidade, do deixa andar. Vestiram a farda da legião, deram vivas a Salazar, estenderam longamente o braço, a fim de mostrarem a sua lealdade ao Chefe. Os rurais compunham, ou melhor, formavam, dois blocos: a) médios proprietários; b) pequenos proprietários e caseiros.
     Os primeiros alinhavam com a classe média; os segundos, que eram a maioria, não tinham opinião, devido sobretudo à sua desmedida ignorância, ao seu analfabetismo crónico e obsoleto, à sua mentalidade obnóxia.     

     Lina e seus companheiros de pastoreio nada sabiam de História. O que se passava em Portugal ou no estrangeiro era-lhes totalmente indiferente. O que queriam era brincadeira e, agora, até começavam a pensar no namoro. Quando, aos domingos, iam ao regato lavar-se miravam-se naquela água cristalina, puxavam um bocadinho as saias, para verem como estavam bonitas as suas pernas. Riam-se imenso com esses gestos ousados. Por perto andavam sempre rapazes, a espreitar, a imaginá-las sem roupa, a admirarem a beleza daqueles corpos tão naturais, sem pinturas, sem cremes… Elas ficavam desconfiadas com o mexer de ramos, não sabiam se era o vento ou se eram os rapazes, mas interiormente desejavam ser observadas, e uma ou outra mais atrevida levantava mais acima a sua saia e olhava de esguelha por entre a ramagem, na esperança de que alguns olhos gulosos vissem aquela pele branca, macia, pura, sem nunca ter sido tocada por mãos masculinas. Os garotos ficavam embevecidos, praticamente estáticos, com os olhos arregalados, começavam a ter visões, beijavam o rosto das meninas, os olhos, a testa, mexiam-lhe no cabelo, tudo acontecendo como num sonho magnífico. De repente acordavam daquela fuga para a ilusão e fugiam para longe. Olhavam uns para os outros, quase não acreditando naquilo que tinham visto.

- Eu vi – diz o Arnesto, prontamente. Vi-lhe as pernas, à Cláudia, quase até às coxas.
- Não, não viste nada! – observa o Lingrinhas, sempre pronto a provocar os outros. – Tudo o que viste aconteceu apenas em sonhos: as raparigas nem sequer lá estavam!
- Olha que tu és mesmo do contra! – atira o Zarolho, que apesar de só ter um olho via mais do que alguns com os dois!
- Está bem: até admito que estavam lá, que levantaram um bocadinho as saias, mas que raio vós vistes? Um bocadinho da perna, até ao joelho. Num filme que fui ver ao cinema da Vila vi muito mais do que isso – e eram mulheres, americanas, boas como o milho.
- Essas pintam-se todas! Até dizem que aparecem nuas – apressou-se a dizer o Fuinhas, com aquele focinho de furão. – Eu nunca vi nenhum filme; qualquer dia vamos todos ao cinema.
- E o dinheiro? Pensas que é de graça? – explode o Lingrinhas.
- De graça não é, mas também não há-de custar nenhuma fortuna, vamos para os lugares mais baratos – contrapõe o Sereno, mais ponderado do que os outros.  // continua...


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



Cartas de um castrejo

12.ª - «Senhor Redactor: escrevo da branda, para onde vim com a família estremecida, o cão amigo, as vacas auxiliares, a rês incómoda, mas produtiva, as galinhas, o gato, com pequerruchos, parte da copa (pois cá também usamos), o carro, a charrua duma aiveca, a agulhada, o bengalório, as polainas e as mantas de burel. Só nos faltou trazer um tonel das águas da inverneira (…). Que a fonte límpida que rumoreja vizinha não oiça da preferência (…)! E, como ainda estou pondo em ordem a minha nova habitação, só posso dizer-lhe (…) que aqui a vida é outra: - ar mais oxigenado (…); as cumeadas, como as encostas das serranias e cerros, apresentam um aspecto encantador – ora o amarelo dos tojais, ora o verde-negro das tapadas, entremeados do branco de jaspe das florinhas de giesta. E a urze e a carqueja? E os nossos prados, onde a flor silvestre viceja, qual princesa em luxuoso alcáçar? Alongo-me, simplesmente, para lhe dizer que estou cá em cima, bem, graças ao Eterno, que passei na vila, onde toda a gente – sem excepção (mesmo a Guarda-Fiscal) – me mostrou a cara das festas; que a feira de 15 foi relativamente concorrida – sem nenhuma [querela], como uma ou outra vez se dá; que os amigos Alves continuam no fabrico do mais puro chocolate que se fabrica em Portugal, a despeito de Carvalho e outros que tal; que o senhor professor continua melhor do seu reumatismo e de qualquer susto… (não é homem para sustos); que o amigo Ventura está no seu posto, prontinho à menor reclamação; que a Guarda-Fiscal, apesar das escopetas, tem receio de novas denúncias para o seu Chefe; que a primavera entrou com todas as honras de guerra; que o cuco já canta por estas bandas (viria de Bande?); que, por último, o criado muito grato a V. está com um sono de mil demónios e vai para entre as mantas – que cá são bem precisas!... Castro Laboreiro, 20/4/1916.»      

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

ANEDOTAS

Por Joaquim A. Rocha

desenho de Luís Filipe Gonzaga Pinto Rodrigues
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     No início de 2016 a RTP-1 convida todos os candidatos a presidente da República para um debate, à exceção de Maria de Belém. A senhora ficou irritadíssima e perguntou-lhes porque não a convidaram. Respondeu o diretor: 

- O convite foi feito só a gente crescida.  

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     A notícia correu célere: morrera o senhor Mário. Os parentes e amigos ficaram tristes, mas ainda mais tristes, e até zangados, ficaram os bichinhos da terra quando ele foi enterrado. Coitado, quando morreu estava esquelético, nem novecentos gramas de carne levava para a cova! Um dos tais vermes reclamou perante a bicheza local: 

- Não se admite isto; trazerem um humano para a nossa casa sem nada para rilhar; vamos expulsá-lo daqui, «quem lhe comeu a carne que lhe coma os ossos

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     Dois indivíduos conversavam animadamente na esplanada de um Café. Um deles lamenta-se:

- Jesus perdeu na Madeira!

     Responde-lhe o outro:

- Coitado! Agora vai ter de arrastar a cruz... 

- ... feita de madeira!

     

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sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

ENTRE MORTOS E FERIDOS


6.º Capítulo

SANTA MARGARIDA


  
     Naquela tarde calma, serena, nem sequer uma folha das árvores do Rossio bulia. O calor começava a apertar, convidando as pessoas a ingerir mais líquidos. Toda a gente procurava uma sombra, a fim de fugir à torreira do sol. Na mesa do Café Suíça, onde já tanta gente se sentara antes, os dois amigos cavaqueiam animadamente. Dizia Cândido:

- Da Academia Militar parti, ai de mim, triste e cabisbaixo, mais infeliz do que uma viúva, para Santa Margarida, freguesia do concelho de Constância, distrito de Santarém. Nome de santa e de flor, nome lindíssimo, mas sem nenhuma santidade, além da capela inaugurada em 1959, e com cheiro a pólvora e a gasolina, não a capela, claro está, essa cheirava a incenso, unidade bem conhecida nos círculos castrenses, por ser palco de manobras militares.
     Estávamos em Novembro. O outono, nesse ano de 1965, mostrava-se mais agressivo do que em anos anteriores, segundo a meteorologia e informações de militares que ali já estavam desde 1964. A chuva e o frio, coniventes, de uma cumplicidade demoníaca, davam as mãos na sua luta sem tréguas contra o desgraçado do magala que não possuía meios suficientes para deles se defender. Ainda por cima os treinos eram longos, fastidiosos, e pouco ortodoxos: simulavam-se ambientes de guerra; saíamos à noite nas viaturas, luzes apagadas, pelos montes da região.
     Não havia estradas, mas sim caminhos de cabras, íngremes, e até regatos sinuosos tínhamos de atravessar! Numa terrível noite, mais negra do que o breu, tombei o meu Unimog, viatura mais feia do que um dinossauro carnívoro. Não houve feridos graves, pois a velocidade a que íamos não o justificaria, contudo não pudemos tirá-lo do buraco onde caiu. Somente no dia imediato, pela madrugada, o guindaste arrancou aquele monstro pré-histórico da ridícula posição em que ficara.
- E foi castigado? – perguntou Henrique, com dó do amigo.
- Querias maior castigo do que ir para a Guiné-Bissau? Para uma luta armada? Eu, que só usara a fisga para caçar pássaros, e mesmo assim sem qualquer pontaria, rindo-se eles de mim, sobretudo os pardais e os melros, velozes, desconfiados – não conseguindo apanhar nenhum.
- Bons tempos! – comenta Henrique, sonhando tempos que não vivera.
- Em parte, sim; brincava, trabalhava, andava na escola, mas havia muitas carências…
- A riqueza em Portugal esteve sempre muito mal distribuída – lembra Henrique, com pesar.
- É verdade. Desde Afonso Henriques que isso acontece no nosso país. Poucos têm muito, e muitos pouco ou nada têm! Mas continuando: o Campo de Treinos de Santa Margarida lembrava, nessa ocasião, o verdadeiro inferno. Escassa comida, e mal confeccionada, hostilidade, atmosfera psicológica pesada. O medo pairava à nossa volta, anunciando o próximo futuro: violento e incerto. A guerra, esse mostrengo de sete cabeças, esperava-nos ansiosamente.
     Santa Margarida: fome e frio, ódio e desprezo. Antro de duros, estéril, árida. Aí não havia lugar para a ternura. Os soldados, mesmo querendo sair nas suas curtíssimas folgas, não tinham para onde, embora os mandões dissessem que existia perto um barracão no qual se exibiam uns filmes – nunca lá fui. Provavelmente seriam fitas de propaganda corporativista, onde se destacariam as caras sinistras dos governantes: Salazar, Tomás e companhia.         
- Parece que esses rostos o marcaram!
- Bem podes crer. Ainda hoje sinto náuseas quando vejo aquelas caretas horríveis, cujos olhos espalham ódio e vingança.
- Mas não houve nenhuma personagem simpática durante aqueles anos todos?!
- Quanto a mim, a figura mais simpática do regime saído da ditadura militar de Maio de 1926 talvez tenha sido Duarte Pacheco, que morreu em 1943, ainda eu não nascera, com apenas quarenta e quatro anos de idade. Era um homem de iniciativas, dinâmico, com personalidade vincada. Não obedecia cegamente ao «Chefe» e talvez daí a sua morte prematura.
- Está a insinuar que foi assassinado?!
- Quem sabe… Mas voltando a Santa Margarida: era, nessa altura, um lugar ermo e sombrio. Matagais e mais matagais; fardas e mais fardas; manobras e mais manobras! Mas, mesmo que houvesse zonas de divertimento ou lazer, o cansaço não convidava ao passeio, nem as moedas tilintavam em nossos vazios bolsos. O pouco que havia era para enganar a fome.
- Custa a acreditar naquilo que estou a ouvir!
- Tudo isso é a pura verdade. Corpos mal alimentados, exercícios que se prolongavam pela noite dentro, obrigavam-nos a esquecer o exterior, o outro “mundo” – nós tínhamos sido seleccionados pelo tenebroso deus Marte: deveríamos tudo fazer para merecermos essa distinção.
- Todos sofremos ao longo da vida… - filosofa Henrique – mas...
- Uns mais, outros menos. Muitas pessoas minhas conterrâneas, alguns anos mais tarde, contaram-me que muito padeceram e aguentaram em França, na Alemanha, no Canadá, e noutros países, a esgalhar dez e doze horas por dia, nas obras de construção civil, nos caminhos-de-ferro, aeroportos e auto-estradas, nas minas, nos vários trabalhos pesados, que lembravam os tempos da escravatura, e até antes já tinham padecido, quando tiveram de ir a “salto” para lá chegarem. Eu, a esses, falei-lhes assim:
     «Acredito sinceramente que tenham passado maus momentos, isso não está sequer em causa; mas o vosso sofrimento estava impregnado de esperança, visionavam o futuro e iam enchendo o peteiro. Nós, não! O nosso futuro durava apenas um minuto, uma hora, quando muito um dia! Esfumava-se! Vós sofrestes para ganhar a vida; o nosso padecimento servia para merecermos, segundo a ideologia dominante – militarista /corporativista – a morte com “honra”. Talvez tenhais sido escravos, mas de seres humanos, de capitalistas; nós fomos escravos robots de uma poderosa máquina, de um pensamento ignominioso, de um sistema cruel e ultrapassado! Os vossos músculos tiveram de enrijecer para poderdes assim construir; os nossos tornaram-se fortes para poderem desse modo melhor destruir! Além disso, vocês podiam voltar para Portugal, para junto da família, ou mudar de trabalho, caso não aguentassem o esforço, ou por outro motivo qualquer; nós só regressaríamos no fim da comissão. Se viéssemos antes era mau sinal: tínhamos sido gravemente feridos ou então estávamos mortos, dentro de um caixão de chumbo!»
- Discurso inflamado, mas realista. Permita-me, contudo, que discorde de si num pormenor – solicita o amigo.
- À vontade. Entre nós não há cerimónias. Diz tudo o que te vai na alma.
- É o seguinte: quando diz que os emigrantes podiam voltar a qualquer momento não é cem por cento verdade. Por um lado, tinham que cumprir os contratos que assinavam com a entidade patronal; por outro lado, a maioria deles, se regressasse a Portugal, teria de cumprir o serviço militar!
- Tens razão. Reconheço que me falhou esse pormenor; no entanto, acho que estavam numa situação mais vantajosa do que a minha.
     Mas continuando: em Santa Margarida encontrava-se também um primo meu, mais velho um ano, já tinha quase todo o tempo militar cumprido. Escapara da malvada guerra! E nem sei como!
- Nem todos iam…
- Sim, isso é verdade. Mas hoje penso que foi por pedido, ou “cunha”. O pai dele, meu tio, trabalhava no Secretariado Nacional de Informação e Propaganda, órgão muito influente no regime salazarista. Já livrara outro filho mais velho.
- E por que não o safou a si?!
- O meu tio saiu da terra era eu uma criança, fora residir primeiro para Loures, depois para Lisboa, mal nos conhecíamos. Nem sequer me passou pela cabeça pedir-lhe tal coisa!
- Fez mal; podia ter dado certo.
- Nessa altura eu era muito tímido, um bicho-do-mato, não ousaria fazer-lhe um tal pedido. Além disso, quando eu era pequeno disseram-me que o nosso destino já está traçado no berço. Por outro lado, sabendo ele que eu estava na tropa, por que não tomou a iniciativa?
- Não se lembrou – insinua Henrique, ironicamente.
- Ou não quis lembrar-se. Sobrinhos não são filhos, e não digo isto com azedume.
- Mas são do mesmo sangue, pertencem à mesma estirpe.
- Segundo a bíblia, o livro sagrado dos cristãos e dos judeus, somos todos descendentes de Adão!
- E se nós acreditarmos nos cientistas, a nossa espécie descende do macaco!
- Talvez Adão fosse macaco! Mas, sejamos filhos de uns ou de outros, o certo é que os seres humanos estão constantemente a esquecer a origem comum e matam-se com a mesma facilidade e frieza com que se abate um boi no talho. São autênticos magarefes!
- Concordo consigo. E esse tal primo, foi-lhe ao menos prestável?
- Bem, ele era apenas soldado como eu, condutor de tanques. Uma ou outra vez ainda me procurou e juntos comemos uma toucinhada com pão de milho e centeio. Manjar frugal, mas gerador de algumas calorias. Ficamo-nos a conhecer melhor, ganhamos amizade. Mais tarde encontrei-o, já libertos da canga tropeira. Tinha estudado alguma coisa, o equivalente ao segundo ano do liceu, salvo erro, mais por necessidade do que por prazer, e depois ingressou num banco. Foi colocado na província do Minho. Bom rapaz.
- Quanto tempo esteve em Santa Margarida?
- Deixei para trás, após vinte turbulentos dias, sem qualquer laivo de saudade, meio desfalecido, esse ninho de víboras, covil de chacais, esse malvado, infernal, aquartelamento, antecâmara da morte e do aviltamento.


***

// continua...

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha







MACRÓBIOS


     Quando eu cumpria o serviço militar dizia-se por brincadeira àqueles que chegavam: «a velhice é um posto». O objetivo dessa frase era conseguir que os mais novos respeitassem os mais velhos, os que já tinham algum tempo de tropa. Em nossos dias já não resulta: os jovens, de uma maneira geral, já não têm o mesmo respeito pelos de mais idade, como outrora existiu. Houve uma mudança de paradigma, de mentalidade, eu sei lá. Não devemos, no entanto, ser pessimistas, teremos de nos adaptar aos novos tempos. Hoje em dia existem condições para os humanos viverem mais uns anos, ultrapassar os cem já não é novidade, por isso vamos todos aproveitar essa oportunidade que a mãe natureza nos concede, aliada à ciência médica.     


Fiães


OLIVEIRA, Conceição. Filha de Manuel Vicente de Oliveira e de Mariana Esteves. Nasceu em Fiães a 1/5/1901. // Faleceu na sua freguesia natal a 1/3/2002, com cem anos de idade.

PEREIRA, Albina. Filha de José Joaquim Pereira e de Joaquina Domingues. Nasceu em Fiães por volta de 1912. // Casou com Augusto José Alves. // Faleceu a 7/9/2014, com 102 anos de idade.

  
Gave


AFONSO, Clementina. Filha de Manuel Maria Afonso e de Maria Rosa Rodrigues, lavradores, residentes no lugar do Pombal. Neta paterna de Manuel Joaquim Afonso e de Isabel Rodrigues, do dito lugar; neta materna de Manuel Luís Rodrigues e de Luísa Domingues, do lugar de Cerdeiral. Nasceu na Gave a 15/2/1885 e no dia seguinte foi batizada na igreja paroquial. Padrinhos: Vitorino Manuel Rodrigues e Marcelina Rodrigues, tios maternos da neófita, solteiros, camponeses, moradores no lugar do Cerdeiral. // Casou na igreja da sua freguesia natal a 29/7/1909 com José Pereira. // O seu marido morreu a 12/12/1934. // Ela faleceu na sua casa da Gave a 13/5/1984, com perto de cem anos de idade.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

SONETOS

Por Joaquim A. Rocha


ruínas do Cine-Pelicano



OUTROS TEMPOS


Ai, como eu lembro o Cine-Pelicano,
Aquele mundo de recordações;
Via todos os filmes, mil sessões,
Mês de Janeiro, Março, todo o ano!

Naquela noite levantou-se o pano,
As palmas romperam como tufões,
Era o teatro do Vasco, ilusões,
No palco Raul, Armando, Adriano...   

Sansão, Moisés, Ben-Hur, Dez Mandamentos,
Uma mulher que viveu duas vezes;
Shane, Marisol, melro Joselito…

Muita guerra, imensos sofrimentos,
O Cantinflas, Charlot rilhando freses,
Filmes de terror, um susto, um grito! 




sábado, 12 de dezembro de 2015

GENTES DE MELGAÇO
(micro-biografias)

Por Joaquim A. Rocha



ROUÇAS

FERNANDES, Ana. Filha de Manuel Maria Fernandes, natural de Desteriz (São Miguel), Galiza, e de Maria Teresa Gonçalves (Dias), natural de Rouças, Melgaço, rurais, moradores no lugar de Cavaleiros. Neta paterna de Rosa Fernandes, solteira, camponesa, de Desteriz; neta materna de Maria Antónia Fernandes, solteira, camponesa, roucense. Nasceu em Cavaleiros, Rouças, a 23/2/1873, e foi batizada na igreja católica local no dia seguinte. Padrinhos: Manuel José Cardoso e Maria José Cardoso, casados, lavradores, naturais de Rouças. // Por volta de 1890 foi viver com seus pais e irmãs para o lugar da Pigarra, Santa Maria da Porta, devido a terem aceitado ficarem como caseiros numa quinta desse lugar da Vila. // Faleceu na Vila de Melgaço a 5/4/1947. // Ficou conhecida por “Ana Home”; tinha fama de hermafrodita, por ser virago, mulher de pulso rijo. Conta-se que em certa ocasião, num monte da Galiza, desarmou um carabineiro que dia antes lhe tirara o contrabando, uns míseros gramas de tabaco e duas barras de sabão, e com a própria carabina lhe deu uma tremenda sova, deixando-o ficar ali estendido como um morto. Depois enviou a espingarda para o posto onde o ferrabrás estava afecto (*). O caso deu brado! E não foi só aquele que experimentou a “lenha” com que ela se aquecia, mas muitos outros homens pseudo valentes. Era tesa! Fazia todos os trabalhos normalmente atribuídos ao sexo masculino: podar, sulfatar, lavrar…, enfim, todos os trabalhos agrícolas. Segundo consta, fumava, vício que nessa altura em Portugal só os homens tinham. Em o “Notícias de Melgaço” n.º 1, de 6/3/1924, na secção DIZ-SE, alguém escreveu «que a Ana Home no domingo último, numa entrudada que neste dia se fez em Cristóval, vestiu-se com trajo masculino, caracterizando-se com pêra e bigode; que a certa altura do divertimento montou num cavalo como qualquer homem, fazendo algumas evoluções para afastar o povo, o qual a elogiou.» // Apesar dessa aparente agressividade, apaixonou-se e foi mãe solteira de dois filhos: de António Maria, conhecido por “Olharapo”, jornaleiro, que morreu na Vila de Melgaço, tuberculoso, a 27/3/1951; e de José, que depois da tropa ingressou na GNR, atingindo o posto de cabo. // Carlos Afonso escreveu acerca da valentona: «… embora não tendo “barba rija” tinha força e coragem para enfrentar quem a quisesse importunar. Poderia até equiparar-se à lendária Inês Negra, isto se os tempos fossem semelhantes e as oportunidades fossem as mesmas.» E mais à frente continua: «Eu conheci a “Ana Home”; … um irmão dela foi meu tio por afinidade. Mulher forte, de meia estatura, e de voz grave. Trajava roupa de tecido grosso, como antigamente se usava em Castro Laboreiro, e dizia-se que por lá viveu algum tempo. Creio ter sido, talvez, da segunda geração de uma família galega, de Desteriz, ali junto a São Gregório, que aí por volta de 1850 veio para Melgaço, trabalhar para a Quinta chamada de Santo Preto. Em Melgaço os descendentes dessa família tinham por alcunha “os noivos”… Andava sempre armada com um varapau da sua altura e, dizia-se, não sei se com alguma ou total verdade, que usava “faca na liga”. Creio que a alcunha… lhe foi dada por ter a voz grossa, ou mais pelo facto de ela fumar, tal como os homens. Uma mulher a fumar, há mais de 70 anos atrás, era mesmo coisa de outro mundo…» (A Voz de Melgaço n.º 1116, de 15/5/1999).

     /// (*) O seu sobrinho-neto, Augusto, nascido na Vila em 1925 e falecido em Golães, Paderne, em 2015, conheceu-a muito bem e diz que ela nunca bateu em nenhum carabineiro; atirou-lhe, isso sim, com sal para os olhos quando ele a queria levar presa para o posto por contrabando, pondo-se em fuga. Faz sentido; mas será que alguém presenciou a cena?           

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

QUADRAS AO DEUS DARÁ

Por Joaquim A. Rocha


o fim das burqas no Afeganistão

*

Entro na noite cansado,
Louco de tanto pensar;
O espírito torturado,
O sono a aguardar.

*

Penetro, como na terra o arado,
Rasgo fundo esse tecido sombrio;
E no corpo da noite, vate inspirado,
Tudo me esquece: sono e frio.

*

Nesta quadra festiva
Gasto todo o meu dinheiro;
Depois lá vou prà estiva
Trabalhar o ano inteiro.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



AS RUAS E OS NOMES


     Na minha última visita a Melgaço, ou seja, no natal de 1992, andei pelas ruas da vila e verifiquei que estas já têm placas com o nome. Tudo bem, se não fossem os erros cometidos por quem as mandou colocar. Em primeiro lugar falemos do Largo «Policano». Não encontrei, por mais que procurasse, nenhum bicho com esse nome! Conheço, isso sim, o pelicano, ave ciconiiforme, que aparecia nos bilhetes do Cine-Pelicano. Não sei a razão da escolha, mas esse era o emblema utilizado pelos proprietários dessa Empresa. O edifício, bastante danificado, ainda lá existe. A Câmara Municipal podia comprá-lo e abatê-lo; no seu lugar poderia ser erguida uma estátua a D. João I, ou mesmo ao fundador da nacionalidade, visto que esse prédio nada tem a ver com a traça das casas vizinhas que o circundam, pode mesmo considerar-se um intruso. Como a Câmara Municipal de Melgaço está tão interessada em preservar o património legado pelos nossos avós, aproveitava esta ocasião, que poderá ser única. Não quero com isto dizer que o cinema não seja necessário, bem precisava o concelho de uma verdadeira Casa de Espetáculos, no entanto, isso é assunto para outro artigo.
     Dizia eu que o Largo não é «Policano». Também não deverá ser Pelicano, mas sim Largo do Cine-Pelicano: o seu a seu dono.
     Rua Fonte da Vila. Penso que Rua da Fonte da Vila estaria melhor, pois a rua não é fonte da vila, eu nunca conheci uma que o fosse! Aproveito para lembrar aos senhores da Câmara Municipal que a referida fonte está tão escondida e tão pouco cuidada que até mete dó. No tempo das invasões francesas a pedra de armas foi coberta de argamassa; agora, está coberta de desprezo! Não basta colocá-la na capa de livro; é necessário dar-lhe um lugar de destaque no dia-a-dia da comunidade.
     Viela D. Pedro Pires. Assim se chamava o prior do convento de Longos vales, o qual financiou, ou ajudou a financiar, no tempo do nosso primeiro rei, a construção do castelo de Melgaço. Nesse tempo não existiam os bancos, e os Rothchilds só apareceriam no século XVIII, por isso os reis recorriam aos conventos ricos e poderosos (Fiães, Longos Vales, Alcobaça, etc.), dando como contrapartida territórios que os mesmos reis iam conquistando aos mouros. Embora monumento nacional, o convento encontra-se em estado deplorável.
     A Rua «Direita», por sinal bastante torta, é a rua principal da vila antiga; julgo que não é só por isso que ela tem esse nome, mas sim por ser nessa rua que se situavam os antigos Paços do Concelho, Tribunal e Cadeia. Direita, neste caso, significaria justiça; por conseguinte, a rua onde se exercia a justiça (direitos dos cidadãos). Tudo isto carece de mais investigação, mas o pouco tempo, e por vezes a dificuldade de acesso aos arquivos, torna essa mesma investigação quase impossível.
     Alameda Inês Negra. No meu tempo de rapaz tinha dois nomes: Avenida Salazar ou Avenida das Tílias. O atual presidente da Câmara quis homenagear a lendária “heroína” de Melgaço, e assim deu à avenida o seu nome. Apesar de não ser uma figura histórica, Fernão Lopes insere-a na sua «Crónica de D. João I», embora de uma forma assaz ambígua. Escreveu ele: «E em esse dia escaramuçaram duas mulheres bravas, uma da vila e outra do arraial, e andaram ambas aos cabelos, e venceu a do arraial», sem sequer lhe mencionar o nome. Duarte Nunes de Leão, na sua «Crónica de D. João I», 3.ª parte, também não cita o nome das duas mulheres. Foi somente o Conde de Sabugosa, muitos séculos depois, inícios do século XX, que batizou a do arraial com o nome de Inês. Ela simboliza a bravura, o patriotismo, a fé na vitória. Por isso, e só por isso, merece essa honra.
     Rua do Carvalho. Provavelmente existiu aí, outrora, um carvalho de garboso porte e deram ao lugar esse nome. Não se justifica, quanto a mim, a sua perenidade.
     Não vi, por mais que procurasse, uma rua com o nome do grande historiador melgacense Dr. Augusto César Esteves (1889-1964). Não sei se o vereador que detém o pelouro da cultura se esqueceu, ou se houve de facto uma omissão voluntária. Seria muito, muito grave, se por uma razão ou por outra se ostracizassem todos aqueles que tornaram Melgaço mais conhecido (e estão a tornar, como é o caso do Cónego Doutor José Marques, entre outros), dedicando uma vida inteira à investigação, em arquivos desorganizados e poeirentos. É certo que esse erro pode ser corrigido, mas por favor: aprendam a distinguir o trigo do joio! Não sugiro que se dê a uma rua de Melgaço o nome do Tomás das Quingostas, ou quejandos; isso poderia querer dizer que se perdoavam os antigos crimes, que se fazia a apologia do banditismo, isso não! Mas, por favor, não se esqueçam dos emigrantes, dos escritores (Miguel Ângelo Barros Ferreira), dos poetas populares (Francisco Augusto Igrejas, José Serrano, e outros); dos artistas (Acácio Dias, Manuel Igrejas, Óscar Marinho, etc.); de Vasco de Almeida, que dinamizou o teatro na nossa terra. Outro nome a lembrar é o de Martinho de Melo e Castro (1716-1795), da «nobre família dos Castros de Melgaço», que foi ministro da marinha e teve um papel importante na diplomacia portuguesa do século XVIII. Enfim, que as ruas apareçam com nomes de figuras conhecidas e merecedoras de tal distinção. Era aconselhável que, após o nome, se indicasse a data de nascimento e morte (no caso de já ter falecido), e outros elementos de identificação: político, escritor, artista, etc.


Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 983, de 15/4/1993.