sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

LINA - Filha de Pã

romance

Por Joaquim A. Rocha



     Depois de um inverno rigoroso, com imensa chuva, faíscas mil, frio e neve, veio finalmente a primavera. Os dias já eram maiores, o sol surgia radiante, as flores nasciam e espalhavam-se por todo o lado com o seu aroma inebriante. Os pássaros cantavam satisfeitos os seus hinos à mãe natureza; os rouxinóis, os canários e os melros, além de outras aves cantadeiras, brindavam os rurais com os seus admiráveis gorjeios; os rostos das pessoas pareciam mais alegres, mais confiantes. As borboletas, com as suas cores garridas, davam um ar de festa à localidade. As abelhas ziguezagueavam por entre as flores, recolhendo o seu precioso pólen.
     Lina abandonara definitivamente a escola. O país estava de rastos – os políticos da República não se entenderam entre si e deram azo à Revolução Militar. Os governos caíam uns atrás dos outros. Com o advento da Ditadura Militar tudo acalmou. Chamaram-lhe depois a «paz podre», mas podre ou sã, era paz, comentava o povo, cansado de tanta agitação.
     O seu trabalho diário agora consistia em ajudar a mãe, desamparada, pois o seu homem continuava no Caramulo, bastante fraca, débil, já com mais dois filhos nos braços, levar as cabras e ovelhas para o monte, para se alimentarem com as ervas, folhas e raízes que iam surgindo… Era raro ir só: com ela iam outras raparigas, e também rapazes, da mesma idade, com os seus pequenos rebanhos, meia dúzia de animais. O gado bovino, por ser corpulento, era da responsabilidade dos adultos, sobretudo dos homens. Cantavam pelo caminho, conversavam, eram felizes à sua maneira.
      Dois ou três cães, de médio porte, acompanhavam as crianças e vigiavam a rês, não fosse aparecer um lobo por ali, o que era raro, pois essas feras tinham o seu habitat na alta serra, só descendo no tempo da neve, a ver se encontravam alguma comida, algum animal tresmalhado.


**

     Os anos foram passando e agora aquelas crianças de ontem já eram adolescentes. O país tinha sofrido, em Maio de 1926, uma revolução, perpetrada por militares idos de Braga; acabaram com a República num ápice e criaram uma Ditadura Militar, que durou até 1933, quando foi aprovada uma Constituição e fundado o Estado Novo, regime corporativista, ao leme do qual estava o antigo professor de Coimbra, Doutor António de Oliveira Salazar. A classe média de Melcarte: médicos, advogados, professores, padres, funcionários públicos, comerciantes, etc., apoiaram inteiramente o novo regime político, apesar da censura e das restrições impostas. Estavam fartos da bagunça, da instabilidade, do deixa andar. Vestiram a farda da legião, deram vivas a Salazar, estenderam longamente o braço, a fim de mostrarem a sua lealdade ao Chefe. Os rurais compunham, ou melhor, formavam, dois blocos: a) médios proprietários; b) pequenos proprietários e caseiros.
     Os primeiros alinhavam com a classe média; os segundos, que eram a maioria, não tinham opinião, devido sobretudo à sua desmedida ignorância, ao seu analfabetismo crónico e obsoleto, à sua mentalidade obnóxia.     

     Lina e seus companheiros de pastoreio nada sabiam de História. O que se passava em Portugal ou no estrangeiro era-lhes totalmente indiferente. O que queriam era brincadeira e, agora, até começavam a pensar no namoro. Quando, aos domingos, iam ao regato lavar-se miravam-se naquela água cristalina, puxavam um bocadinho as saias, para verem como estavam bonitas as suas pernas. Riam-se imenso com esses gestos ousados. Por perto andavam sempre rapazes, a espreitar, a imaginá-las sem roupa, a admirarem a beleza daqueles corpos tão naturais, sem pinturas, sem cremes… Elas ficavam desconfiadas com o mexer de ramos, não sabiam se era o vento ou se eram os rapazes, mas interiormente desejavam ser observadas, e uma ou outra mais atrevida levantava mais acima a sua saia e olhava de esguelha por entre a ramagem, na esperança de que alguns olhos gulosos vissem aquela pele branca, macia, pura, sem nunca ter sido tocada por mãos masculinas. Os garotos ficavam embevecidos, praticamente estáticos, com os olhos arregalados, começavam a ter visões, beijavam o rosto das meninas, os olhos, a testa, mexiam-lhe no cabelo, tudo acontecendo como num sonho magnífico. De repente acordavam daquela fuga para a ilusão e fugiam para longe. Olhavam uns para os outros, quase não acreditando naquilo que tinham visto.

- Eu vi – diz o Arnesto, prontamente. Vi-lhe as pernas, à Cláudia, quase até às coxas.
- Não, não viste nada! – observa o Lingrinhas, sempre pronto a provocar os outros. – Tudo o que viste aconteceu apenas em sonhos: as raparigas nem sequer lá estavam!
- Olha que tu és mesmo do contra! – atira o Zarolho, que apesar de só ter um olho via mais do que alguns com os dois!
- Está bem: até admito que estavam lá, que levantaram um bocadinho as saias, mas que raio vós vistes? Um bocadinho da perna, até ao joelho. Num filme que fui ver ao cinema da Vila vi muito mais do que isso – e eram mulheres, americanas, boas como o milho.
- Essas pintam-se todas! Até dizem que aparecem nuas – apressou-se a dizer o Fuinhas, com aquele focinho de furão. – Eu nunca vi nenhum filme; qualquer dia vamos todos ao cinema.
- E o dinheiro? Pensas que é de graça? – explode o Lingrinhas.
- De graça não é, mas também não há-de custar nenhuma fortuna, vamos para os lugares mais baratos – contrapõe o Sereno, mais ponderado do que os outros.  // continua...


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