LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
porta fechada, destino adiado
VI
A curiosidade é
como uma doença: umas vezes cura-se, outras vezes não!
Estou novamente com o
meu irmão na cavaqueira, relembrando tempos passados, bons e maus momentos,
quase sempre maus, pois quem vive no limite da pobreza, desamparados, carentes de
comida, de roupa, e até de carinhos, não tem com certeza momentos bons para
relembrar. Ponham então o ouvido à escuta:
- Por que é que viemos para a Vila? Não seria melhor para nós morar
em Cendre?
- Tu és um idiota, não estás a compreender. A nossa família é da
Vila, só nascemos em Cendre porque a tua mãe estava lá, fora para esse lugar
tratar uma idosa, sogra de um soldado da guarda-fiscal. Os nossos avós maternos
eram da Vila e foi na Vila que lhe nasceram todos os filhos, só que a tua mãe
precisou procurar emprego e teve de arranjá-lo em Tronços, depois foi para São
Bernardo, lá conheceu o Olavo Meliças, nosso pai, e por lá ficou, quando ele se
pôs a mexer para a Galiza, com a tal galega, a tua mãe ficou desesperada,
começou a beber, a emborrachar-se, e já nem dinheiro tinha para pagar a renda
da casa; então o dono, o senhor Silva, às tantas disse-lhe para ficar de graça,
não teve coragem de a pôr na rua com dois filhitos de tenra idade, teve bom
coração, mas também a casa não valia dez réis, quem é que quereria ali habitar?
Agora já nem telhado tem, só possuía uma divisão com pouco mais de vinte metros
quadrados de área! Depois de tu nasceres ainda lá estivemos cerca de seis anos,
depois fomos os três para a Vila, tínhamos direito a metade da casa, os avós já
tinham morrido e a tua mãe era dona de metade. Ficámos nos baixos, em cima
morava o tio Aurélio com a mulher, a Gertrudes, e a filharada, ele era
barbeiro, mas as coisas não estavam a correr bem, estava-se a passar por uma
grave crise e então resolveram ir para Lisboa, os dois filhos mais velhos, a
Tânia e o Adolfo, já lá estavam. Acho que foram para os arredores, havia lá
conterrâneos, julgo que os meteram em casa, claro que lhes pagavam parte da
renda, mas assim já ficava mais barato a todos.
- Olha que eu passei maus bocados com eles!
- Passaste tu e eu. A mamã ia para as termas cozinhar, entre Junho
e Setembro, e deixava-nos ficar com a tia, ela só nos dava caldo de farinha, os
petiscos, se é que os havia, duvido, eram para os seus filhos, e se não
comêssemos obrigava-nos a ficar de castigo na mesa, eu comia, que sempre tive
bom estômago, tudo que vem à rede é peixe, mas tu vomitavas tudo, não
conseguias ingerir aquela mixórdia, coitado de ti.
- E segundo parece a mamã não lhes ficava a dever nada, pagava-lhes
e bem pago.
- Sim. Nessa ocasião ela ganhou algum juízo e trazia dinheiro e
comida para casa; claro que a tia recebia parte, mas com tantos filhos… E que
amizade eles nos tinham? Nunca tínhamos vivido juntos, éramos como que
desconhecidos, só o sangue nos unia, mas não é suficiente, é preciso crescer
juntos, eu gostava mais dos rapazes de Cendre do que deles, eram como nossos
irmãos, estes não, se pudessem até nos batiam, que a mim não conseguiam, que eu
sou forte desde criança, mas a ti, coitado, um “lingrinhas”, eras o bombo da
festa, até eu te chegava às vezes! Mas tu também eras mauzinho, não obedecias a
ninguém, eras um selvagem, um anarquista, um rebelde, andavas sempre a atirar
pedras às pessoas, até parece que eram todos teus inimigos! Uma vez rachaste a
cabeça ao filho do Nelo Santos, o guarda-fiscal, por vontade dele matava-te,
tiveste sorte, que ele não era para brincadeiras, até se dizia que tinha
abatido a tiro um contrabandista, quando ele ia a atravessar o rio com
contrabando, disparou uma data de balas e atingiu-o mortalmente; olha que não
se arrependeu, dizia que tinha sido em serviço, malandro, o desgraçado andava a
ganhar a vida, olha que aos contrabandistas poderosos, àqueles que lhe pagavam
bem, a esses não perseguia, deixava-os passar livremente.
- Os guardas também ganhavam mal, coitados.
- Defende-los porque o teu padrinho é guarda, mas olha que eles não
eram boa rês, prejudicaram muita gente, sobretudo os mais pobres, que os outros
sabiam defender-se, tinham rede montada, mas o coitado, aquele que só levava
uma saca de café para Espanha, a esse, quando o apanhavam, não perdoavam.
Deviam ser todos como a famosa «Ana Home», essa era tesa, até coça lhes dava, uma
altura prendeu um carabineiro a uma árvore e tirou-lhe a espingarda, olha que
lhe foram logo pedir para a devolver se não o desgraçado perdia o emprego, era
uma mulher de armas, uma mulher de pelo na benta, dessas é que devia haver
muitas.
- Eu não defendo ninguém, apenas faço um esforço para compreender
aquela época, aquela gente, a sua maneira de viver, de agir. Dizias que os tios
e os primos foram para Lisboa, então ficamos com a casa toda para nós?!
- Bem, ainda ficaram connosco duas primas: a Antónia e a Laura, que
acabaram por se zangar com a tua mãe e irem morar, provisoriamente, com o
Evaristo, um amigo chegado do tio Aurélio. Esse Evaristo, não sei porquê, por
que cargas de água, veio cravar tábuas no rés-do-chão da casa, alegando que
metade lhes pertencia, e que nós não a podíamos habitar na totalidade. A mamã
reagiu de forma violenta, pegou numa machada e rebentou com as tábuas, eles
também tinham lá estado sozinhos e a mamã não recebera nada, e jamais lhes
exigiu fosse o que fosse; por outro lado, ainda não tinha havido partilhas, por
isso ninguém sabia qual era a sua metade.
- Foram para tribunal?
- Não. Parece que o Evaristo meteu as pernas entre o rabo, como
fazem os rafeiros, ou então recebeu instruções do tio, e as coisas ficaram por
ali. As primas depois foram para Lisboa também e nós ficámos com a casa toda.
- Tu foste à escola…
- Em 1950 matriculei-me na primeira classe, passados quatro anos,
em Julho de 1954, tinha a quarta feita.
- Eu matriculei-me no ano seguinte e acabei a quarta em 1955. E a
asma, como é que te passou?
- A Santa Casa da Misericórdia de Melgaço enviava todos os anos
para a praia de Âncora às suas custas crianças necessitadas e com dificuldades
respiratórias; eu fui uma delas.
- E a praia fez-te bem.
- Embora não acredite em milagres, o que aconteceu é de facto
extraordinário – a partir desse ano nunca mais tive problemas de respiração!
- Foram os ares do mar e os banhos de sol. // continua...
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