ENTRE MORTOS E FERIDOS
6.º Capítulo
SANTA MARGARIDA
Naquela tarde calma, serena, nem
sequer uma folha das árvores do Rossio bulia. O calor começava a apertar, convidando
as pessoas a ingerir mais líquidos. Toda a gente procurava uma sombra, a fim de
fugir à torreira do sol. Na mesa do Café Suíça, onde já tanta gente se sentara
antes, os dois amigos cavaqueiam animadamente. Dizia Cândido:
- Da Academia Militar parti, ai de mim,
triste e cabisbaixo, mais infeliz do que uma viúva, para Santa Margarida, freguesia
do concelho de Constância, distrito de Santarém. Nome de santa e de flor, nome
lindíssimo, mas sem nenhuma santidade, além da capela inaugurada em 1959, e com
cheiro a pólvora e a gasolina, não a capela, claro está, essa cheirava a
incenso, unidade bem conhecida nos círculos castrenses, por ser palco de manobras
militares.
Estávamos em Novembro. O outono, nesse ano de 1965, mostrava-se mais
agressivo do que em anos anteriores, segundo a meteorologia e informações de militares
que ali já estavam desde 1964.
A chuva e o frio, coniventes, de uma cumplicidade
demoníaca, davam as mãos na sua luta sem tréguas contra o desgraçado do magala
que não possuía meios suficientes para deles se defender. Ainda por cima os
treinos eram longos, fastidiosos, e pouco ortodoxos: simulavam-se ambientes de
guerra; saíamos à noite nas viaturas, luzes apagadas, pelos montes da região.
Não havia estradas, mas sim caminhos de cabras, íngremes, e até regatos sinuosos
tínhamos de atravessar! Numa terrível noite, mais negra do que o breu, tombei o
meu Unimog, viatura mais feia do que um dinossauro carnívoro. Não houve feridos
graves, pois a velocidade a que íamos não o justificaria, contudo não pudemos
tirá-lo do buraco onde caiu. Somente no dia imediato, pela madrugada, o
guindaste arrancou aquele monstro pré-histórico da ridícula posição em que
ficara.
- E foi castigado? – perguntou Henrique, com dó do amigo.
- Querias maior castigo do que ir para
a Guiné-Bissau? Para uma luta armada? Eu, que só usara a fisga para caçar pássaros,
e mesmo assim sem qualquer pontaria, rindo-se eles de mim, sobretudo os pardais
e os melros, velozes, desconfiados – não conseguindo apanhar nenhum.
- Bons tempos! – comenta Henrique, sonhando tempos que não vivera.
- Em parte, sim; brincava, trabalhava,
andava na escola, mas havia muitas carências…
- A riqueza em Portugal esteve sempre
muito mal distribuída – lembra Henrique, com pesar.
- É verdade. Desde Afonso Henriques que
isso acontece no nosso país. Poucos têm muito, e muitos pouco ou nada têm! Mas
continuando: o Campo de Treinos de Santa Margarida lembrava, nessa ocasião, o
verdadeiro inferno. Escassa comida, e mal confeccionada, hostilidade, atmosfera
psicológica pesada. O medo pairava à nossa volta, anunciando o próximo futuro:
violento e incerto. A guerra, esse mostrengo de sete cabeças, esperava-nos
ansiosamente.
Santa Margarida: fome e frio, ódio e desprezo. Antro de duros, estéril,
árida. Aí não havia lugar para a ternura. Os soldados, mesmo querendo sair nas
suas curtíssimas folgas, não tinham para onde, embora os mandões dissessem que
existia perto um barracão no qual se exibiam uns filmes – nunca lá fui.
Provavelmente seriam fitas de propaganda corporativista, onde se destacariam as
caras sinistras dos governantes: Salazar, Tomás e companhia.
- Parece que esses rostos o marcaram!
- Bem podes crer. Ainda hoje sinto
náuseas quando vejo aquelas caretas horríveis, cujos olhos espalham ódio e vingança.
- Mas não houve nenhuma personagem
simpática durante aqueles anos todos?!
- Quanto a mim, a figura mais simpática
do regime saído da ditadura militar de Maio de 1926 talvez tenha sido Duarte
Pacheco, que morreu em 1943, ainda eu não nascera, com apenas quarenta e quatro
anos de idade. Era um homem de iniciativas, dinâmico, com personalidade vincada.
Não obedecia cegamente ao «Chefe» e talvez daí a sua morte prematura.
- Está a insinuar que foi assassinado?!
- Quem sabe… Mas voltando a Santa
Margarida: era, nessa altura, um lugar ermo e sombrio. Matagais e mais matagais;
fardas e mais fardas; manobras e mais manobras! Mas, mesmo que houvesse zonas
de divertimento ou lazer, o cansaço não convidava ao passeio, nem as moedas
tilintavam em nossos vazios bolsos. O pouco que havia era para enganar a fome.
- Custa a acreditar naquilo que estou a
ouvir!
- Tudo isso é a pura verdade. Corpos
mal alimentados, exercícios que se prolongavam pela noite dentro, obrigavam-nos
a esquecer o exterior, o outro “mundo”
– nós tínhamos sido seleccionados pelo tenebroso deus Marte: deveríamos tudo
fazer para merecermos essa distinção.
- Todos sofremos ao longo da vida… - filosofa Henrique – mas...
- Uns mais, outros menos. Muitas
pessoas minhas conterrâneas, alguns anos mais tarde, contaram-me que muito padeceram
e aguentaram em França, na Alemanha, no Canadá, e noutros países, a esgalhar
dez e doze horas por dia, nas obras de construção civil, nos caminhos-de-ferro,
aeroportos e auto-estradas, nas minas, nos vários trabalhos pesados, que lembravam
os tempos da escravatura, e até antes já tinham padecido, quando tiveram de ir
a “salto” para lá chegarem. Eu, a
esses, falei-lhes assim:
«Acredito sinceramente que tenham
passado maus momentos, isso não está sequer em causa; mas o vosso sofrimento
estava impregnado de esperança, visionavam o futuro e iam enchendo o peteiro.
Nós, não! O nosso futuro durava apenas um minuto, uma hora, quando muito um
dia! Esfumava-se! Vós sofrestes para ganhar a vida; o nosso padecimento servia
para merecermos, segundo a ideologia dominante – militarista /corporativista –
a morte com “honra”. Talvez tenhais sido escravos, mas de seres humanos, de capitalistas;
nós fomos escravos robots de uma poderosa máquina, de um pensamento
ignominioso, de um sistema cruel e ultrapassado! Os vossos músculos tiveram de
enrijecer para poderdes assim construir; os nossos tornaram-se fortes para
poderem desse modo melhor destruir! Além disso, vocês podiam voltar para Portugal,
para junto da família, ou mudar de trabalho, caso não aguentassem o esforço, ou
por outro motivo qualquer; nós só regressaríamos no fim da comissão. Se
viéssemos antes era mau sinal: tínhamos sido gravemente feridos ou então
estávamos mortos, dentro de um caixão de chumbo!»
- Discurso inflamado, mas realista. Permita-me,
contudo, que discorde de si num pormenor – solicita
o amigo.
- À vontade. Entre nós não há
cerimónias. Diz tudo o que te vai na alma.
- É o seguinte: quando diz que os
emigrantes podiam voltar a qualquer momento não é cem por cento verdade. Por um
lado, tinham que cumprir os contratos que assinavam com a entidade patronal;
por outro lado, a maioria deles, se regressasse a Portugal, teria de cumprir o
serviço militar!
- Tens razão. Reconheço que me falhou
esse pormenor; no entanto, acho que estavam numa situação mais vantajosa do que
a minha.
Mas continuando: em Santa
Margarida encontrava-se também um primo meu, mais velho um ano, já tinha quase
todo o tempo militar cumprido. Escapara da malvada guerra! E nem sei como!
- Nem todos iam…
- Sim, isso é verdade. Mas hoje penso
que foi por pedido, ou “cunha”. O pai
dele, meu tio, trabalhava no Secretariado Nacional de Informação e Propaganda,
órgão muito influente no regime salazarista. Já livrara outro filho mais velho.
- E por que não o safou a si?!
- O meu tio saiu da terra era eu uma
criança, fora residir primeiro para Loures, depois para Lisboa, mal nos conhecíamos.
Nem sequer me passou pela cabeça pedir-lhe tal coisa!
- Fez mal; podia ter dado certo.
- Nessa altura eu era muito tímido, um
bicho-do-mato, não ousaria fazer-lhe um tal pedido. Além disso, quando eu era
pequeno disseram-me que o nosso destino já está traçado no berço. Por outro
lado, sabendo ele que eu estava na tropa, por que não tomou a iniciativa?
- Não se lembrou – insinua Henrique, ironicamente.
- Ou não quis lembrar-se. Sobrinhos não
são filhos, e não digo isto com azedume.
- Mas são do mesmo sangue, pertencem à
mesma estirpe.
- Segundo a bíblia, o livro sagrado dos
cristãos e dos judeus, somos todos descendentes de Adão!
- E se nós acreditarmos nos cientistas,
a nossa espécie descende do macaco!
- Talvez Adão fosse macaco! Mas, sejamos
filhos de uns ou de outros, o certo é que os seres humanos estão constantemente
a esquecer a origem comum e matam-se com a mesma facilidade e frieza com que se
abate um boi no talho. São autênticos magarefes!
- Concordo consigo. E esse tal primo,
foi-lhe ao menos prestável?
- Bem, ele era apenas soldado como eu,
condutor de tanques. Uma ou outra vez ainda me procurou e juntos comemos uma
toucinhada com pão de milho e centeio. Manjar frugal, mas gerador de algumas
calorias. Ficamo-nos a conhecer melhor, ganhamos amizade. Mais tarde
encontrei-o, já libertos da canga tropeira. Tinha estudado alguma coisa, o
equivalente ao segundo ano do liceu, salvo erro, mais por necessidade do que
por prazer, e depois ingressou num banco. Foi colocado na província do Minho. Bom
rapaz.
- Quanto tempo esteve em Santa Margarida?
- Deixei para trás, após vinte
turbulentos dias, sem qualquer laivo de saudade, meio desfalecido, esse ninho
de víboras, covil de chacais, esse malvado, infernal, aquartelamento,
antecâmara da morte e do aviltamento.
***
// continua...
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