quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS

Por Augusto César Esteves



... (continuação)

     «P. Que o A[utor], antes de falecer o filho da ré, Tomás Joaquim Codeço, foi por ele demandado e a[l]fim fizeram por intervenção de pessoas na presença das quais já mais o A. podia recear maus tratamentos e até nesse tempo o filho da Ré andava com a guia que lhe passou o Conde das Antas e tanto respeitava a lei que para haver o que o A[utor] Manuel  José de Caldas lhe devia, o chamou à Justiça e o fez citar para as acções competentes

          E antes do Tomás das Quingostas chamar ao juízo conciliatório o cirurgião Caldas, diligências se fizeram para tirar a corda da garganta deste devedor, como ressalta desta carta:
   
   «Quingostas, 19/4/1838

                        Ilustríssimo Senhor Juiz
  
         Desejo a sua saúde geralmente a tudo o quanto lhe pertence a [Senhoria?] e ofereço ao seu serviço, etc.

                        Ilustríssimo Senhor

        No dia de ontem findou o nosso contrato com o cirurgião e por isso rogo a Vossa Senhoria o favor de me não pedir mais por semelhante patife; e por isso antes quero que Vossa Senhoria fique com ele do que o tal maroto; para quem entende vai isto. Fico pronto para tudo o quanto lhe prestar.
                                           Sou seu venerador

                        Tomaz Joaquim Codeço ([1])

   P. S. - Os trinta mil réis que recebi, ficam à conta da obrigação que tenho dele

        E esta carta entende-se ligando-a com a tentativa de conciliação feita na Casa e Quinta da Cordeira em 9/6/1838 perante o cidadão Joaquim Tomás Correia Feijó, juiz de paz e órfãos no círculo das freguesias de S. Paio, Vila e anexas, diligência a que não compareceu Manuel José de Caldas. A morte levou Tomás das Quingostas sem lhe dar tempo para fechar as contas com os fornecedores da sua casa, nem com os credores; e como seu pai, José Codeço, já tinha falecido, herdou-lhe os bens a mãe, a quem todos eles foram pedir a liquidação dos débitos.
     Aceite a herança a título de inventário, foi no tribunal que se ajustaram as contas; tendo, os jurados, reduzido, ao justo valor, várias das verbas pedidas. Pequena quantia foi reclamada pelo credor D. Pedro Vasques de Puga, da Casa e Quinta da Moreira, na Galiza, e apenas 63$940 réis foi a soma exigida por António Luís Pereira, negociante, do lugar dos Moinhos, da freguesia de Paderne, proveniente de vários fornecimentos feitos ao Tomás das Quingostas, tais como maços de cigarros, caixas de fósforos, queijo, bacalhau, quinze quilos de açúcar, verbas de dinheiro emprestado, como 1$440 e 2$400 réis, um tinteiro e areeiro de louça, um par de luvas de troçal de seda preta e outro de seda azul, chumbo de caça, uma importância de fogo paga ao fogueteiro de Santa Cristina, 14$000 réis, a maior verba lida nesta conta.
           A vida do “Tomás das Quingostas” foi cortada pelas balas da tropa a 30/1/1839 na Quinta da Alota, em S. Paio, quando das Quingostas, enquadrado por elementos da Ordem, vinha preso para Melgaço. A sua morte foi um assassinato como tantos naqueles tempos, legal se o quiserem ver assim, mas um assassinato chocante e condenável em todos os tempos e em todos os lugares, quer fosse provocado pela tentativa de fugir aos captores, quer por inadvertidamente, como se diz também, ter pisado os calos ao soldado – o assassinato dum homem sem devassa nem pronúncia o envolveram nas malhas, sem qualquer julgamento lhe ser feito, sem nenhuma condenação ter sido pronunciada contra ele pelas justiças da terra.
           Vai passado mais de um século sobre essa data e por estas redondezas ainda hoje se ouve uma ou outra voz depreciativamente aludir à serra e aos tempos do “Tomás das Quingostas”. E enquanto uns, contando desvarios e violentas façanhas, o apresentam como vulgar quadrilheiro e o retratam como ladrão atrevido e assassino sem qualquer escrúpulo, outros, lembrando generosidades havidas com pobres lavradores, atiram para as costas dos comandados com todas as violências e mostram-no, a ele, caçador apaixonado e papa-léguas da montanha, homem de muitas e boas relações no meio, acarinhado pelos grandes e a tirar exclusivamente a ricos, unhas-de-fome, algumas dezenas de mil réis para ele mesmo os entregar, depois, a desgraçados cuja boca não trincava a broa precisa para mourejarem nos campos todo o santo dia e parte da noite.
            A sua vida está a pedir revisão e, se um dia se fizer, talvez desse processo póstumo saia ele de muitas e muitas culpas ilibado. E despojado, precisamente, daqueles actos mais degradantes atribuídos à sua vida, talvez ele surja aos olhos dos melgacenses, como os Marçães e os Brandões das Beiras, com a nova auréola de figura política marcante e talhada pelos moldes daqueles tempos da forca miguelista de 1828 a 1833 e do regabofe e anarquia liberal de 1834 e 1838, militando nas hostes miguelistas contra os constitucionais e, depois, setembrista da última hora, com a tal guia passada pelo Conde das Antas, contra os cartistas, aproveitando a sua sombra, como é natural e humano, para manter em respeito a um ou outro recalcitrante, a este ou àquele empata folhas da vitória da sua facção política.
           O imperativo da história e a honra da terra ficam agora impondo essa revisão e para a encetar e para iniciar, quiçá, a reabilitação da memória desse melgacense, como um acto de justiça às suas possíveis virtudes cívicas, de tantos documentos existentes sobre Tomás Joaquim Codesso, «comandante da guarda volante do Alto Minho» apenas um escolho para ser ponderado:

«Administração Geral de Viana
1.ª Repartição
2.ª Secção
N.º 303
Circular

   Ilustríssimo Senhor

         Tendo sido informado de viva voz pelo General Comandante da Divisão de Observações das Províncias do Norte, o Visconde das Antas, que ele a bem do Serviço Público havia concedido uma guia a Tomás das Quingostas, cumpre que Vossa Senhoria quando pelo mesmo lhe for apresentada a mencionada guia observe as disposições que ela contém.
                       
      Deus guarde a Vossa Senhoria, Viana 23/12/1837.                                                                                                                                                     
                                  
                 O Administrador Geral interino // J. R. Marreca

Ilustríssimo Senhor Administrador do concelho de Melgaço»

        O bando do Tomás das Quingostas lembra a fábula «O Lobo e o Cordeiro» e, como este, vai arcando com todas as culpas, da responsabilidade de outros, embora. Nenhum dos seus acusadores descobriu ainda as terras de Melgaço e as dos vizinhos concelhos trabalhadas pelos sectários da usurpação na falaz expectativa de qualquer vantagem alcançada pelos Carlistas, em alguma das muitas províncias fronteiriças de Espanha, trazer para Portugal a oportunidade apetecida para numa revolta contra o governo português comparsarem também; nenhum dos seus evocadores procurou desenvencilhar as consequências trazidas para Melgaço pelo cisma religioso de 1832-1842 começado no Porto e especialmente agudo em toda a diocese de Braga, onde chegaram a exercer simultaneamente autoridade, sem autoridade, dois Vigários Capitulares, ou apreendeu as lutas surdas e as travadas nos púlpitos, surpreendendo assim esse irrequietismo de Melgaço provocado pelos padres miguelistas na quadra do “Tomás das Quingostas”, pois «que no concelho de Monção apareceu um frade da Falperra, chamado Frei Sebastião, que dizia ter vindo de Roma, e ser portador de excomunhões do Santo Padre, para os eclesiásticos empregados pelo Governo Constitucional, o qual nomeou delegados para absolverem os que se lhe apresentassem, ordenando-lhes que não comunicassem com os não absolvidos, sendo um destes delegados o ex-abade de Rouças», o Padre Dinis Ferraz de Araújo, cujo múnus desde 1834 a 1844 exerceram sucessivamente os encomendados Padre Manuel da Conceição, Padre João da Rainha dos Anjos Cunha e Padre Agostinho Manuel Cardoso; nem tampouco nenhum dos seus detractores visionou todas estas terras do Alto Minho invadidas sucessivas vezes por guerrilhas espanholas e entre estas pelo bando de cento e cinquenta homens capitaneado pelo célebre Guillade, um dos apaixonados chefes do movimento carlista galego, que conseguiu entrar em Tui e em Vila Verde e foi morrer no ataque a Lugo, na conhecida Guerra de Los Siete Años.
        Talvez, desde hoje, no espírito do melgacense culto fique abalada a tradicional ferocidade atribuída nas seroadas dos aldeãos a Tomás Joaquim Codeço se, acaso, consegui humanizar esse vulto das lutas liberais melgacenses e, esbatido de muitas sombras, apresentá-lo na ribalta como um vulgar faccioso daqueles tempos; mas nos recantos das aldeias, ninguém se iluda, a sua vida há-de continuar a entreter as horas dos serões, longe da história e afastada da verdade, porque a lenda do Tomás das Quingostas está feita. // (continua)...

- Nota: do Dr. Augusto César Esteves ainda se encontra à venda a sua obra póstuma «AS MINHAS GERAÇÕES MELGACENSES», em dois volumes.


        ([1]) No assento de batismo recebera o nome de Tomás de Aquino; porém, no assento de óbito já o seu nome consta como sendo Tomás Joaquim!   

Sem comentários:

Enviar um comentário