MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
... (continuação)
«P. Que o A[utor], antes de falecer o filho
da ré, Tomás Joaquim Codeço, foi por ele demandado e a[l]fim fizeram por
intervenção de pessoas na presença das quais já mais o A. podia recear maus
tratamentos e até nesse tempo o filho da Ré andava com a guia que lhe passou o
Conde das Antas e tanto respeitava a lei que para haver o que o A[utor]
Manuel José de Caldas lhe devia, o
chamou à Justiça e o fez citar para as acções competentes.»
E antes do Tomás das
Quingostas chamar ao juízo conciliatório o cirurgião Caldas, diligências se
fizeram para tirar a corda da garganta deste devedor, como ressalta desta
carta:
«Quingostas, 19/4/1838
Ilustríssimo
Senhor Juiz
Desejo a sua saúde geralmente a tudo o
quanto lhe pertence a [Senhoria?] e ofereço ao seu serviço, etc.
Ilustríssimo
Senhor
No dia de ontem findou o nosso contrato
com o cirurgião e por isso rogo a Vossa Senhoria o favor de me não pedir mais
por semelhante patife; e por isso antes quero que Vossa Senhoria fique com ele
do que o tal maroto; para quem entende vai isto. Fico pronto para tudo o quanto
lhe prestar.
Sou seu venerador
Tomaz Joaquim Codeço ([1])
P. S. - Os trinta mil réis que recebi, ficam à conta da obrigação
que tenho dele.»
E esta carta entende-se
ligando-a com a tentativa de conciliação feita na Casa e Quinta da Cordeira em
9/6/1838 perante o cidadão Joaquim Tomás Correia Feijó, juiz de paz e órfãos no
círculo das freguesias de S. Paio, Vila e anexas, diligência a que não
compareceu Manuel José de Caldas. A morte levou Tomás das Quingostas sem lhe
dar tempo para fechar as contas com os fornecedores da sua casa, nem com os
credores; e como seu pai, José Codeço, já tinha falecido, herdou-lhe os bens a
mãe, a quem todos eles foram pedir a liquidação dos débitos.
Aceite a herança a título de
inventário, foi no tribunal que se ajustaram as contas; tendo, os jurados, reduzido,
ao justo valor, várias das verbas pedidas. Pequena quantia foi reclamada pelo
credor D. Pedro Vasques de Puga, da Casa e Quinta da Moreira, na Galiza, e apenas
63$940 réis foi a soma exigida por António Luís Pereira, negociante, do lugar
dos Moinhos, da freguesia de Paderne, proveniente de vários fornecimentos
feitos ao Tomás das Quingostas, tais como maços de cigarros, caixas de
fósforos, queijo, bacalhau, quinze quilos de açúcar, verbas de dinheiro emprestado,
como 1$440 e 2$400 réis, um tinteiro e areeiro de louça, um par de luvas de
troçal de seda preta e outro de seda azul, chumbo de caça, uma importância de
fogo paga ao fogueteiro de Santa Cristina, 14$000 réis, a maior verba lida
nesta conta.
A vida do “Tomás das
Quingostas” foi cortada pelas balas da tropa a 30/1/1839 na Quinta da Alota, em
S. Paio, quando das Quingostas, enquadrado por elementos da Ordem, vinha preso
para Melgaço. A sua morte foi um assassinato como tantos naqueles tempos,
legal se o quiserem ver assim, mas um assassinato chocante e condenável em
todos os tempos e em todos os lugares, quer fosse provocado pela tentativa de
fugir aos captores, quer por inadvertidamente, como se diz também, ter pisado
os calos ao soldado – o assassinato dum homem sem devassa nem pronúncia o
envolveram nas malhas, sem qualquer julgamento lhe ser feito, sem nenhuma
condenação ter sido pronunciada contra ele pelas justiças da terra.
Vai passado mais de um
século sobre essa data e por estas redondezas ainda hoje se ouve uma ou outra
voz depreciativamente aludir à serra e aos tempos do “Tomás das Quingostas”. E
enquanto uns, contando desvarios e violentas façanhas, o apresentam como vulgar
quadrilheiro e o retratam como ladrão atrevido e assassino sem qualquer
escrúpulo, outros, lembrando generosidades havidas com pobres lavradores,
atiram para as costas dos comandados com todas as violências e mostram-no, a
ele, caçador apaixonado e papa-léguas da montanha, homem de muitas e boas
relações no meio, acarinhado pelos grandes e a tirar exclusivamente a ricos,
unhas-de-fome, algumas dezenas de mil réis para ele mesmo os entregar, depois,
a desgraçados cuja boca não trincava a broa precisa para mourejarem nos campos
todo o santo dia e parte da noite.
A sua vida está a pedir
revisão e, se um dia se fizer, talvez desse processo póstumo saia ele de muitas
e muitas culpas ilibado. E despojado, precisamente, daqueles actos mais
degradantes atribuídos à sua vida, talvez ele surja aos olhos dos melgacenses,
como os Marçães e os Brandões das Beiras, com a nova auréola de figura política
marcante e talhada pelos moldes daqueles tempos da forca miguelista de 1828 a
1833 e do regabofe e anarquia liberal de 1834 e 1838, militando nas hostes
miguelistas contra os constitucionais e, depois, setembrista da última hora,
com a tal guia passada pelo Conde das Antas, contra os cartistas, aproveitando
a sua sombra, como é natural e humano, para manter em respeito a um ou outro
recalcitrante, a este ou àquele empata folhas da vitória da sua facção política.
O imperativo da história e
a honra da terra ficam agora impondo essa revisão e para a encetar e para
iniciar, quiçá, a reabilitação da memória desse melgacense, como um acto de
justiça às suas possíveis virtudes cívicas, de tantos documentos existentes
sobre Tomás Joaquim Codesso, «comandante da guarda volante do Alto Minho»
apenas um escolho para ser ponderado:
«Administração Geral de Viana
1.ª Repartição
2.ª Secção
N.º 303
Circular
Ilustríssimo Senhor
Tendo sido informado de viva voz pelo
General Comandante da Divisão de Observações das Províncias do Norte, o
Visconde das Antas, que ele a bem do Serviço Público havia concedido uma guia a
Tomás das Quingostas, cumpre que Vossa Senhoria quando pelo mesmo lhe for
apresentada a mencionada guia observe as disposições que ela contém.
Deus
guarde a Vossa Senhoria, Viana
23/12/1837.
O Administrador Geral interino
// J. R. Marreca
Ilustríssimo
Senhor Administrador do concelho de Melgaço»
O bando do Tomás das
Quingostas lembra a fábula «O Lobo e o Cordeiro» e, como este, vai arcando com todas
as culpas, da responsabilidade de outros, embora. Nenhum dos seus acusadores
descobriu ainda as terras de Melgaço e as dos vizinhos concelhos trabalhadas
pelos sectários da usurpação na falaz expectativa de qualquer vantagem
alcançada pelos Carlistas, em alguma das muitas províncias fronteiriças de
Espanha, trazer para Portugal a oportunidade apetecida para numa revolta contra
o governo português comparsarem também; nenhum dos seus evocadores procurou
desenvencilhar as consequências trazidas para Melgaço pelo cisma religioso de
1832-1842 começado no Porto e especialmente agudo em toda a diocese de Braga,
onde chegaram a exercer simultaneamente autoridade, sem autoridade, dois
Vigários Capitulares, ou apreendeu as lutas surdas e as travadas nos púlpitos,
surpreendendo assim esse irrequietismo de Melgaço provocado pelos padres
miguelistas na quadra do “Tomás das Quingostas”, pois «que no concelho de
Monção apareceu um frade da Falperra, chamado Frei Sebastião, que dizia ter
vindo de Roma, e ser portador de excomunhões do Santo Padre, para os
eclesiásticos empregados pelo Governo Constitucional, o qual nomeou delegados
para absolverem os que se lhe apresentassem, ordenando-lhes que não
comunicassem com os não absolvidos, sendo um destes delegados o ex-abade de
Rouças», o Padre Dinis Ferraz de Araújo, cujo múnus desde 1834 a
1844 exerceram sucessivamente os encomendados Padre Manuel da Conceição, Padre
João da Rainha dos Anjos Cunha e Padre Agostinho Manuel Cardoso; nem tampouco
nenhum dos seus detractores visionou todas estas terras do Alto Minho invadidas
sucessivas vezes por guerrilhas espanholas e entre estas pelo bando de cento e
cinquenta homens capitaneado pelo célebre Guillade, um dos apaixonados chefes
do movimento carlista galego, que conseguiu entrar em Tui e em Vila Verde e foi
morrer no ataque a Lugo, na conhecida Guerra de Los Siete Años.
Talvez, desde hoje, no espírito
do melgacense culto fique abalada a tradicional ferocidade atribuída nas
seroadas dos aldeãos a Tomás Joaquim Codeço se, acaso, consegui humanizar esse
vulto das lutas liberais melgacenses e, esbatido de muitas sombras,
apresentá-lo na ribalta como um vulgar faccioso daqueles tempos; mas nos
recantos das aldeias, ninguém se iluda, a sua vida há-de continuar a entreter
as horas dos serões, longe da história e afastada da verdade, porque a lenda
do Tomás das Quingostas está feita. // (continua)...
Sem comentários:
Enviar um comentário