segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)

romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha




... continuação...

- O meu amigo Cândido perde-se em considerações, desliza pelo tempo e pelo espaço… Eu gostaria de saber como as coisas lhe correram.

- Desculpa. As palavras são como as cerejas: vêm em cachos! Pois bem: partimos então para o patrulhamento. Andámos, andámos, sob sol, sob calor abrasador. A água do cantil depressa se esgotou, apesar do super controlo que exercíamos sobre ela. Os lábios começavam a ficar gretados. As águas dos pântanos, dos lagos nascidos das chuvas, não serviam para beber. Mesmo assim, o enfermeiro dizia-nos que enchêssemos os cantis, pois misturaria na água um comprimido que já trazia consigo para esse efeito. Não sei que raio tinha a pastilha, só sei que de imediato tornava claro aquele líquido sujo e nojento! Contudo, a água ficava com um sabor esquisito.

- Era tudo contrariedades!

- É verdade. Estávamos a chegar ao nosso destino. De súbito, o capitão mandou-nos parar: «As armas em posição de fogo; bazucas aqui para a frente; a dois passos de nós há uma tabanca que tem dado abrigo e alimento aos turras; vamos destruí-la completamente. Os tipos podem oferecer resistência; cada pelotão vai tentando rodeá-la; quando eu disser, começam a disparar.»

     Saímos da floresta e entrámos numa clareira. O capim rivalizava connosco em tamanho. O calor da tarde tornava-se insuportável. Não me lembro bem em que mês do ano se estava – talvez Junho – mas isso também não era importante, pois na Guiné há temperaturas elevadas durante todo o ano.

     Aproximámo-nos do local o mais possível. Da tabanca chegavam, imperceptíveis, os murmúrios de algumas vozes masculinas e femininas. “Estranhas vozes e estranha gente”, disse para com os meus botões.

     Chegado a este ponto, meu caro amigo Rique, apetece-me sonhar. Imaginar-me em Melgaço, ouvir as vozes amigas dos meus conterrâneos, convidando-me: «Vem beber uma malga de vinho da última colheita e comer um pedaço de pão com presunto – este é do especial.»

- Fantasias! Saudades! A vontade de rever a sua família, a sua casa, o rio Minho. Tudo! – atalha o rapaz, na esperança de apaziguar o ânimo exaltado do amigo.






- Talvez! O primeiro tiro: pum! A seguir as bazucadas, com o seu som aterrorizador – armas e pessoal em movimento acelerado. As labaredas irrompem tenebrosas e belas, os gritos lancinantes destroçavam o coração do mais empedernido.


    As cubatas, feitas de barro amassado e cobertas de capim, não resistiram às granadas das bazucas e às chamas: uma a uma, foram tombando como tordos sob o fogo do exímio caçador.

     Os moradores, com os seus parcos haveres, fugiam o mais rapidamente possível em direção à mata cerrada, que distava dali uns bons cem metros.

     Avançámos mais. Contra nós, pelo menos fiquei com essa impressão, ninguém disparou! Dentro das habitações, das poucas que restaram, não se vislumbrava vivalma. «Ainda bem» - congratulei-me, aliviado. Esperava ardentemente, juro-te, que não se encontrassem corpos carbonizados, esturricados: seria um horror para mim.

- Foi uma razia! – indaga Henrique, numa tentativa de adivinhar o que se passou.                

- Podes crer! E quando já se pensava estar tudo resolvido, tudo acabado, eis que surge uma velha mulher, alta, esguia, de um negro muito negro, quase nua, gritando como uma louca. Na cabeça, oval, sustentava uma cabaça e na mão direita tinha um objeto de barro. Barafustava, gesticulava, e ninguém – nem mesmo os nossos guias – compreendiam essa língua tão exótica! A mulher pousou as coisas no solo e com os olhos vermelhos de raiva e com gestos de fera ferida pronunciava frases terríveis contra nós, mesmo sem as entendermos! Então, um dos alferes da Companhia, não me recordo qual deles, agarrou-lhe no braço direito e disse-lhe, num tom de voz seco, que não admitia réplica, acompanhando as palavras com olhares convincentes: «Vai-te embora! Ninguém aqui te quer fazer mal. E parte enquanto é tempo. Quando nós estivermos longe, tu voltas para reconstruir a tua palhota.»

- E ela… – foi-se embora?!

- A velha, mistura de leão e tigre, assanhada, sem ter percebido uma única palavra do que ouvira, liberta-se do roubador de liberdades e vidas, do incendiador cruel, e tenta vingar a afronta, atirando-se com desespero ao oficial. Este, colhido de surpresa, não esperando o forte impacto, cai. Um furriel, vendo que a situação teria de ter um fim rápido e eficaz, um desfecho digno de um exército dominador, agarra a irreverente mulher e atira-a com ímpeto a metros de distância. Sem sequer lhe dar tempo de se erguer, sobre aquele corpo indefeso e antigo, numa fúria jamais vista, olhos fora das órbitas, qual exterminador bíblico, deus sanguinário destruindo Sodoma e Gomorra, imaginando-se numa guerra entre dois mundos, descarrega todo o arsenal da sua G-3. Quase duas dezenas de balas puseram fim a um espírito livre e selvagem.

- Inqualificável! Matar uma mulher indefesa! Isso não se faz! Nada o justifica! – diz Henrique, com alguma tristeza.

- Para mim, aquela valente não morreu em vão. Pode ter sido loucura ou ingenuidade, um acto irreflectido; pode ter sido também acto assumido, um sacrifício ao deus da honra e da liberdade. Sinceramente não sei.

- Você ficou chocado. E que fizeram ao corpo – enterraram-no? – pergunta o jovem, na esperança vã de obter uma resposta positiva.

- Não! Quem iria perder tempo com isso? Seria devorado por animais, por aves de rapina, por abutres. Esta cena, que para os meus companheiros não teve um significado especial, fazendo parte da rotina da guerra, comoveu-me até às lágrimas, feriu a minha sensibilidade e marcou profundamente o meu carácter; a partir daí, posso afirmá-lo, houve de facto uma alteração no rumo da minha vida. Aquela imagem esquelética, aqueles olhos de trovão, os seus gestos de guerreira, gravaram-se para sempre no meu cérebro, no meu espírito, no subsolo da minha alma. Às vezes vale a pena morrer!

- Depois desse acontecimento pavoroso, retiraram?

- Sim. Já não estávamos ali a fazer nada. O capitão mandou retirar imediatamente. A morte da heroína, o calor intenso, a falta de água, estavam a produzir em mim o seu efeito nefasto e demolidor. Comecei a sentir algo estranho, a ter visões. Uma nuvem pairava sobre a minha cabeça e libertava uma chuva miudinha que os meus ressequidos lábios saboreavam com prazer. Que rica água: fresca e pura como a das nascentes; saborosa como uma limonada em pleno verão. Porém, uma cotovelada viril veio interromper esta visão irreal e maravilhosa. O meu camarada de especialidade, o Beja, diz-me: «Eh, pá! Estás branco como a cal. Que se passa? Aguenta, que agora já estamos de volta.»

     Aos vinte e um, vinte e dois anos de idade, os milagres de resistência acontecem. Soube, a partir desse inesquecível dia, que o ser humano é mais rijo do que aparenta. Se me tivessem contado todas estas peripécias, sem eu as ter amargamente vivido, dificilmente nelas acreditaria: dias sem ingerir qualquer alimento, sem descansar, sem beber, calcorreando matas e pantanais, trilhos e mais trilhos tenebrosos, sob um sol escaldante, enfrentando perigos visíveis e ocultos, eram razão mais do que suficiente para derrubar ciclopes homéricos ou Aquiles de frágil calcanhar. E nós, rapazes portugueses deficientemente treinados e pessimamente alimentados ali estávamos, como olímpicos imortais!

- Parece tudo um sonho; estou abismado com tanta resistência – confessa Henrique.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha




CASA DA GAIA
     Sita em São Paio. No século XVIII pertencia ao padre Dr. João Luís da Cunha e Araújo. Depois da sua morte passou para o filho – António Luís da Cunha e Araújo – que o presbítero gerara em Maria dos Passos Mosqueira, solteira, da Vila de Melgaço. Este António Luís casou com Maria Rosa (já viúva em 1850), filha do Dr. Manuel Rodrigues Couto e de Ana Alves, de Sante, Paderne. Segundo afirma o Dr. Augusto César Esteves (“O Meu Livro das Gerações Melgacenses”, vol. II, p. 130) eles eram «abastados proprietários e grandes argentários.» // A 26/3/1840, na igreja do mosteiro de Paderne, Teresa de Jesus (irmã de João José de Araújo), da «Casa e Quinta da Gaia», foi madrinha de Maria José Rodrigues, nascida em Crastos dois dias antes. // Lê-se em «O Meu Livro das Gerações Melgacenses», volume II, páginas 144 e 145: «Manuel Inácio da Costa Gomes Pinheiro (irmão inteiro de Marcelina Rosa da Costa Gomes Pinheiro) casou a 29 de Janeiro de 1821 com Maria Angélica de Araújo Cunha, filha de António Luís de Araújo Cunha e de Maria Rosa Rodrigues do Couto, da Casa da Gaia, em São Paio. Moraram no Barral e aí faleceu ab intestato o Manuel Inácio aos 21/3/1854.» // Nessa Casa morreu, em 1865, o padre Ambrósio José de Araújo Cunha, neto do padre Dr. João Luís. E ali, a 20/7/1883, acabou seus dias um irmão do padre Ambrósio – tinha 68 anos de idade. // Devido ao facto da família se ter dispersado, a dita Casa deixou de ter o interesse e o fausto de outrora. 
 

                 
                  CASA DE GONDOMAR
 
     Sita em Remoães. Na primeira metade do século XIX pertenceu ao fidalgo Bernardo Pereira de Castro. / Escreveu o “Mário de Prado”: «Em 18/8/1874, morreu em Remoães, D. Albina de Jesus de Sousa e Castro, filha de Bernardo António de Sousa e Castro e de sua mulher, D. Florinda Rosa da Rocha e Sá, da Casa de Gondomar.» (“Padre Júlio Vaz Apresenta Mário”, p. 149). O tenente-coronel Artur Augusto da Silva, que morreu a 18/11/1909, era viúvo de Damiana Sousa e Castro, desta Casa.   







 

quarta-feira, 25 de abril de 2018


 

 











EU E O 25 DE ABRIL

 

     Já algumas vezes me perguntaram: - onde estavas no 25 de Abril de 1974? A resposta é sempre a mesma: - estava em Lisboa, no bairro da Mouraria. Era ainda um jovem, trabalhava de dia e estudava à noite, como tantos outros. Naquele tempo a maioria dos jovens não tinha acesso fácil ao ensino, pois as famílias eram muito pobres e não tendo capacidade financeira os filhos tinham de começar a trabalhar ainda na adolescência. Os que estudavam somente, não precisando de trabalhar, eram filhos de gente remediada ou rica, uma minoria. Salazar e Marcelo Caetano nada fizeram no sentido de melhorar as condições de vida dos portugueses pobres. No sector rural, nas pescas, nas fábricas, o trabalhador ganhava miseravelmente; a maioria dessa gente era analfabeta, tendo frequentado apenas dois ou três anos do ensino dito primário, o que não chegava sequer para ler uma carta, quanto mais escrevê-la!

     Pois é: por volta das três da manhã o senhor António, que vinha do Parque Mayer, onde trabalhava como carpinteiro no teatro, acordou-me e disse: - está a decorrer uma revolução. Eu estremunhado, perguntei-lhe: - mas o que se passa concretamente? Diz-me: - os militares estão na rua, consta que querem derrubar o governo. Levanto-me, vou à janela, e vejo passar uma data de GNRs, com as armas prontas para o que desse e viesse. Afinal as coisas estavam feias. Se os militares vencessem, as coisas no país iriam ser diferentes, pensava eu. Acabaria a guerra colonial, haveria liberdade de expressão, provavelmente os salários e ordenados melhorariam, a democracia seria possível. Mas também - pensava eu -, se fosse o general Spínola a comandar esses militares, tudo ficaria praticamente na mesma, pois esse homem tinha pretensões a ditador. A ideologia dele, fascista e nazi, não nos deixava quaisquer dúvidas. Logo se veria. Deitei-me novamente, mas não adormeci. O que se estava a passar era demasiadamente importante para o sono se apoderar de mim. Por volta das sete horas levanto-me, fui tomar o banho diário, e saio para a rua, pois o meu contrato com o senhorio não incluía refeições: era somente o quarto e roupa lavada. Dirijo-me a uma pastelaria e estava fechada. Assim aconteceu com outras – tudo encerrado. Viam-se tropas por todo o lado. Ouviam-se vivas aos soldados, aos capitães, distribuíam-se cravos vermelhos. O meu estômago pedia comida, mas teria de esperar. Fui até ao Chiado. A rua onde a Pide tinha a sede estava apinhada de gente, gritando impropérios contra os malvados agentes. Houve tiros e morreram pessoas – os pides não estavam habituados a esse tratamento, toda a população os temia. Surgem de repente os fuzileiros e invadem o edifício dessa terrível organização. Alguns agentes escaparam-se, através de portas secretas, mas os populares perseguem-nos. Eu, esfomeado, vou correndo as ruas à procura de um Café ou restaurante, mas nada – ninguém queria arriscar. Nessa altura eu trabalhava na Rua do Alecrim, perto da estátua de Eça de Queirós, no escritório da SNAPA, uma empresa de pesca de arrasto. As colegas tinham bolachas e deram-me algumas para eu matar a fome. Nesse dia ninguém trabalhou. Já pensava no almoço, iria ser difícil encontrar na cidade algum restaurante aberto. O chefe do escritório disse-nos que podíamos sair, pois não havia ambiente para trabalhar. Fui até ao Largo do Carmo, aproveitaria para tratar de uns assuntos na Escola Comercial Veiga Beirão, onde eu estudava à noite, mas ali havia tanta multidão, civis e militares, que não me foi possível avançar. Estava lá o capitão Salgueiro Maia, tentando convencer Marcelo Caetano a entregar-se, mas as coisas ali não estavam a correr muito bem. Saio desse sítio e vou até ao Bairro Alto, onde finalmente descubro uma tasca manhosa; comi uma simples refeição, que na altura me pareceu a melhor do mundo. As pessoas do bairro pareciam alegres, mas também preocupadas. O que iria sair dessa manifestação de força por parte dos militares de baixa e média patente? Eram homens que já estavam fartos da guerra; desde 1961 que combatiam em África sem quaisquer resultados positivos à vista. As promoções eram lentas, os perigos na selva africana aumentavam exponencialmente, havia, todos os dias, mortos e feridos. Os guerrilheiros de Angola, Moçambique e Guiné estavam a ser apoiados por grandes potências mundiais, as armas iam-lhes sendo entregues à medida das suas necessidades, a tropa portuguesa já não podia resistir mais. Os cofres do Estado estavam cada vez mais vazios, os jovens começavam a fugir para o estrangeiro, evitando dessa maneira o serviço militar obrigatório.  
 



      Nos dias seguintes as coisas começaram a melhorar; os estabelecimentos comerciais abriram as portas, a televisão e os jornais iam-nos dizendo o que se passava, falavam-nos de um novo regime, de socialismo democrático, de bem-estar, de esperança, de muita liberdade. Enfim, o 25 de Abril trouxe-nos de facto algumas coisas boas, mas muitas promessas ficaram por cumprir. Em lugar do socialismo temos o capitalismo à americana, os salários e ordenados voltaram a cair. Os impostos são mais do que muitos, compraram-se apartamentos mas paga-se às Câmaras Municipais uma renda anual, chamada Imposto Municipal (IMI), como se o apartamento não fosse nosso, mas sim das Câmaras! Apesar de tudo, viva o 25 de Abril.             

domingo, 22 de abril de 2018

QUADRAS AO DEUS DARÁ
 
Por Joaquim A. Rocha






Nasci envolto em bruma,

Pertinho da estratosfera;

Em volta terra nenhuma,

Sou filho da vil quimera.


*
 
                       Ando no mundo perdido,

Sem saber de onde vim;

Anda meu nome esquecido,

Ninguém se lembra de mim.
 
                                             *

Há quem diga que sou burro,

Sem cabeça pra pensar;

Eu sou como o sussurro,

Não preciso de gritar.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha






XXII

Enquanto a chuva cai, o carrasco aguarda, impaciente, o condenado.

      Como repararam, o tal Guilherme era um vadiote e assim eu vi-me forçado a escolher outra atividade. Neste momento vamos os dois, eu e a minha mãe, a caminho da oficina do senhor Hilário, pedir-lhe que me aceite como aprendiz.

- Hilário, o meu Cândido pode ficar aqui a trabalhar contigo, ensinas-lhe a arte?

- E tenda?

- Isso acabou; quem sabe daquilo é o tio Acúrsio, já não vivo com ele, como sabes. Eu nunca entendi nada de negócios, cada qual nasce para o que nasce, eu não nasci para tendeira. 

- Então ele pode ficar a trabalhar comigo, mas não lhe posso pagar nada, quando souber alguma coisa da arte logo se vê.

- Só te peço é que o deixes ir engraxar aos dias de feira para ganhar algum dinheiro.

- Está bem, até pode levar daqui essa caixa, enquanto não manda fazer uma, é raro servir-me dela, e na primeira semana dou-lhe a pomada e a tinta e empresto-lhe as escovas; até lá, vai treinando.

- Obrigada; que Deus te pague. E tu já sabes: ficas aqui com o senhor Hilário, obedeces às suas ordens, e não lhe faltes ao respeito; fazes tudo o que ele mandar. 

- Está bem, mamã; até logo.

*

- Chega aqui, rapaz; senta-te ali naquele banquinho. Tens de estar na oficina às oito da manhã, largamos ao meio-dia e depois voltamos a pegar ao trabalho às duas da tarde até às oito da noite. Se te portares bem não perderás nada comigo. Agora vais endireitar essas tachas, cuidado com os dedos, agarras aí no seixo e no martelo e com jeitinho vais endireitando, olha como eu faço, vês, não custa nada.

- Já dei cabo dum dedo!

- Ah! Ah! É assim que se começa, agora vais ter mais cuidado.
 
                                       *

- Tens catorze anos de idade, estás a trabalhar comigo há dois anos, não te dei nada até agora, a não ser esses sapatos que já não me serviam, malditos calos, estão-te grandes, mas que se pode fazer, tens os pés pequenos, sais à tua mãe. Bem, acho que chegou a hora de te dar qualquer coisa, tu merece-lo, vou começar a pagar-te 2$50 por dia, não é muito, mas é melhor do que nada, eu estive quase três anos como aprendiz sem receber um centavo, é certo que me davam de comer e me deixavam dormir no palheiro, mas isso era porque estava longe de casa.

- Obrigado, senhor Hilário, já ajuda, sabe que a minha mãe, coitada, anda sempre na aldeia, lá vai trazendo o que lhe dão.

- A tua mãe se tivesse juízo ganhava bem, é uma boa cozinheira, a melhor do concelho, faz um arroz de lampreia e um cabrito no forno que é de se lhe tirar o chapéu, é comer e chorar por mais, um cozido à portuguesa como nunca comi igual, mas a pinga dá cabo dela, o maldito vício, eu também lhe bebo, mas só nos fins-de-semana, sobretudo ao domingo de tarde, ai não, nos outros dias tenho de governar a barca, que ninguém dá nada sem trabalhar, mas a tua mãe é parecida com a minha, umas desgraçadas, um homem faz muita falta numa casa, não casaram e acabaram assim, que o vinho não tem espinhas, escorrega pela goela baixo que é uma maravilha, um mimo, tem de se lhe pôr travão, mas elas não são capazes.

- Sabe que às vezes nem ceio, tenho de ir esperá-la, nem sequer sei por onde vem, quando a encontro vem a cair, ralho-lhe, mas ela nem me ouve, se eu tivesse pai seria diferente, mas não tenho.

- Eu também não tive, a minha mãe dizia que eu sou filho de um tal doutor António, nessa altura era criada dele, aproveitou-se, o vilão; eu nunca o vi, nem sei se era gordo ou magro, mas olha, vamos ganhando para a bucha, não preciso do filho da mãe para nada, se agora aparecesse nem lhe falava, bandido.

- Por que é que os homens fazem os filhos nas mulheres e depois não casam com elas?

- Por vaidade, bazófia, para dizerem aos outros que são machos, eu também fiz uma filha à Cremilda e não casei com ela, mas olha que a culpa não foi minha, foram os pais dela que se opuseram, disseram que eu era muito pobre, e insultaram a minha mãe, muita tareia dos pais a rapariga levou por minha causa, uma vez iam-na matando, eu afastei-me para não haver mais chatices, ainda hoje gosto dela, e a filha é minha, olha que é muito bonita.

- E parece-se com a sua mãe, é a cara dela.

- Aí tens razão, é a cara chapada da minha velhota. O que me custa mais, até tenho remorsos, é saber que ela ficou aleijada por causa do parto, não correu nada bem, a criança estava numa posição esquisita, a parteira viu-se grega para a tirar cá para fora.

*

- Senhor Hilário, há três anos que trabalho consigo, tenho quinze anos, acho que já é altura de ganhar mais do que 2$50 por dia, o senhor Cerdeira encontrou-me e disse-me que se eu quisesse ser empregado dele que me dava 5$00, eu respondi que primeiro teria de falar com o meu patrão.

- Eu não te posso dar esse dinheiro, se ele to dá é lá com ele, é rico, dar a um aprendiz 5$00, onde já se viu, tu se quiseres ir vai, és livre, não mando em ti, ensinei-te o melhor que pude e soube, tu até tens jeito para a profissão, mas essa quantia não te dou. Quando começas a trabalhar com ele?

- Se o senhor Hilário não se importasse começava já no princípio da semana que vem. E desculpe.

- Primeiro acaba esse serviço que tens aí; põe os saltos nesses sapatos de senhora. Vai-me custar, já estava habituado contigo e ainda somos parentes afastados.

- Depressa arranja outro, não falta quem queira aprender a arte.

- Não é bem assim, agora os pais vão para França e já todos pensam que são lordes, mas vem para cá o Crispim, a mãe já outro dia me falou, morreu-lhe o pai há pouco tempo, a mãe está a servir na casa do senhor Octávio; coitada, ficou viúva muito nova, o que vale é que só tem aquele filho, mas ele parece que não gosta muito de vergar a mola, só porque o padrinho é comerciante…

- Ouvi dizer que é doente, por isso é que não aprendeu uma profissão até agora.

- Para trabalhar são todos doentes, mas para gozar a vida e encher a pança estão saudáveis, olha que ele não tem cara de doente.  

- Esperemos que se adapte; é importante na vida ter-se uma profissão, mesmo que não dê para enriquecer.

domingo, 15 de abril de 2018

ANEDOTAS
 
Por Joaquim A. Rocha


 

     Na década de quarenta do século XX a senhora “Macheta” tinha uma humilde pensão em uma determinada freguesia do Alto Minho. Foi por essa altura que alguns técnicos que andavam a construir a estrada Melgaço-Castro Laboreiro foram lá parar. Logo na primeira refeição serviu-lhes um prato de bacalhau com batatas cozidas e perguntou-lhes: «querem alho simples ou borrifado?» Eles, pensando que era algo fora do comum, respondem: «Borrifado, minha senhora, borrifado.» Então ela foi à cozinha buscar o alho e meteu algumas cabeças na boca (as que lá couberam) e começou a trincá-las; quando achou que já estavam em condições, dirigiu-se aos pratos e toca de borrifar o bacalhau e as batatas. Os hóspedes ficaram banzados e fugiram dali a sete pés, em busca doutro restaurante!  



      Um certo político, cujo nome é muito difícil de pronunciar, presidente de um país das Américas, na noite anterior à do lançamento dos mísseis, estendido na sua longa cama, com os olhos semicerrados, diz à jovem esposa:
 - Sabes, amanhã, pela madrugada, vou mandar uns quantos mísseis à Síria.
     Ela, amuada, diz-lhe:
- Pois é: às outras mandas prendas; a mim não me ofereces nada!

quinta-feira, 12 de abril de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






CELEIRO MUNICIPAL DE MELGAÇO

 

     A entrada de Portugal na guerra de 1914-1918 provocou no país uma grande agitação. Em outubro de 1910 tínhamos saído do regime monárquico, com o erário nas lonas, com um analfabetismo gigantesco, uma agricultura pobre e uma indústria quase inexistente. Apesar disso tudo, o governo português insistiu com a aliada Inglaterra para entrar no conflito armado. Um dos grandes argumentos colocados em cima da mesa consistia no facto de se correr o risco de perdermos as colónias, que - ao tempo - nada representavam para a economia nacional. Os jovens melgacenses foram atingidos gravemente por essa desastrosa decisão. Uns fugiram, outros foram apanhados como coelhos pelas forças armadas. Impreparados, lá foram lutar e morrer nos campos franceses. Alguns deles deixaram viúva e filhos menores. Devido a esse facto, começou a notar-se a falta de braços fortes para trabalhar a terra. O milho, que era a base da alimentação dos minhotos, começou a escassear. O pouco que havia era vendido para alimentar as tropas em combate. Assim, o governo local teve a ideia de criar um celeiro municipal. Em Fevereiro de 1918 estava em vias de formação. Em virtude do país ter entrado em guerra no ano anterior, ao lado dos ingleses e franceses, o milho estava a ser contrabandeado e era necessário que a Câmara Municipal interviesse, comprando-o por grosso a fim de depois o vender a um preço justo a quem dele necessitasse (ver Jornal de Melgaço n.º 1194, de 9/2/1918). // Ainda nesse dito mês de Fevereiro de 1918 os jornais melgacenses anunciam que vai entrar no celeiro a primeira remessa de milho; foi nomeado pela Comissão Administrativa o vogal Fernandes para vender e fiscalizar o dito cereal (JM 1195, de 16/2/1918). O dito celeiro afinal estava instalado em um salão do hospital da Santa Casa da Misericórdia (JM 1196, de 23/2/1918). // Em Março de 1918 já tinha duzentos alqueires de trinta litros (JM 1199, de 16/3/1918). // No Jornal de Melgaço n.º 1216, de 27/7/1918, lê-se: «consta-nos que no celeiro municipal já não há milho. Não sabemos nada deste assunto, porque a Câmara actual propositadamente tem escondido o estado do celeiro do município.» // Enfim, as guerras trazem riqueza para meia dúzia de capitalistas, e a fome e pobreza para a maioria das populações.       



domingo, 8 de abril de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

                                                              Por Joaquim A. Rocha






                                                                        ROUBOS

     Roubos e ladrões sempre existiram; porém há períodos da História, períodos de crise, em que aumentam exponencialmente. Por exemplo: quando há guerra neste ou naquele país; os bens essenciais escasseiam e certos indivíduos recorrem ao roubo. Dizem que é uma questão de sobrevivência. Quanto a mim, nada justifica esse procedimento. Eliminem-se as guerras, os conflitos armados, promova-se a paz e o bem-estar das populações, a educação e a cultura, e desse modo terminarão os malditos assaltos a casas, estabelecimentos, etc.  

PIRES, Francisco (José). Filho de Caetano José Martins e de Maria Teresa Pires (*), moradores no lugar de Sá. Neto paterno de Francisco José Martins e de Rosa Maria Rodrigues, do dito lugar; neto materno de Manuel José Pires e de Francisca Rosa do Outeiro, da Corga. Nasceu na freguesia de Paços a 15/8/1845 e foi batizado a 17 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel Francisco Esteves e sua mulher, Ana Rosa Domingues, do lugar de Merelhe. // Casou na igreja de SMP a 23/11/1883 com Laureana do Carmo Fernandes, de 31 anos de idade, natural da Vila de Melgaço, filha de José Joaquim Fernandes e de Maria Josefa Fernandes. Testemunhas presentes: Manuel José Fernandes, lavrador, e Caetano Celestino de Sousa, sacristão, ambos casados, da dita Vila. // Comerciante; teve estabelecimento na Rua do Rio do Porto, num prédio contíguo ao “Café Melgacense”. Vendia mercearia, ferragens, artigos para tamanqueiros e sapateiros (ver Correio de Melgaço – 1912). // Exerceu algumas vezes o cargo de vereador da Câmara Municipal de Melgaço. // Em 1907 chegou a ser vice-presidente da dita Câmara Municipal; deixou o lugar em Dezembro desse ano, a favor de João Pires Teixeira. // No 2.º semestre de 1907 foi jurado pela freguesia da Vila. // Em 1909, sessão de 7 de Janeiro, foi de novo eleito vice-presidente da Câmara. // Era um progressista convicto; os regeneradores alcunharam-no de “El Cura de la Grova”. Os do Jornal de Melgaço atacavam-no duramente, tipo bota-abaixo! A Câmara Municipal de Melgaço tinha sete vereadores, mas segundo o dito jornal quem mandava era o Pires! // A 25/1/1913 os ladrões entraram na sua loja, por arrombamento, retirando do cofre 12$000 réis, além de uma corrente de ouro, medalha e relógio (Correio de Melgaço n.º 34, de 26/1/1913). // Ambos os cônjuges morreram na Vila, onde moravam: a sua esposa faleceu a 22/4/1890, com apenas 36 anos de idade; ele finou-se a 29/6/1927. // Com geração.
 
 
 // Nota: assinou sempre Francisco Pires, omitindo o apelido Martins! /// (*) Maria Teresa Pires devia ser solteira, pois depois foi casada com Francisco Trancoso (a confirmar). É avô de Beatriz Augusta Lima, que foi casada com Vasco da Gama Almeida, conhecido por Vasco da Central. 

quinta-feira, 5 de abril de 2018

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
 
Macróbios


     Há quem diga que a vida são apenas dois dias: aquele em que se nasce e o outro em que se morre. Se aceitarmos tal afirmação, estamos a iludir a realidade, pois para alguns seres humanos a vida é relativamente longa, chegando aos cem, ou mais anos de idade. São privilégios que a natureza concede àqueles que não a estragaram com extravagâncias e prazeres discutíveis. A vida é sempre aquilo que nós dela fizermos, apesar dos contratempos que vão surgindo no caminho a percorrer. Há pessoas que estão sempre mal humoradas, tudo as arrelia, as desconforta. Se possível, deve-se evitar esse comportamento, para assim vivermos mais anos e com alguma alegria. Já os nossos antepassados diziam: «rir faz bem, assim como os bons pensamentos.» Expulsemos do nosso espírito o pessimismo, o ódio, a raiva, etc. A felicidade existe, mas não cai do céu.    

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RODRIGUES, Arlindo. Filho de Firmino Rodrigues, lavrador, natural de Penso, e de Luísa Vitória do Val, proprietária, natural da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, moradores no lugar de Casal Maninho. Neto paterno de José Joaquim Rodrigues e de Rosa da Rocha; neto materno de António Manuel do Val e de Maria Gomes. Nasceu em Penso a 1/12/1908 e foi batizado na igreja a 6 desse mês e ano. Padrinhos: António Rodrigues, solteiro, e Constança Rodrigues, casada, ambos do lugar de Pomar. // Casou na CRCM a 9/4/1937 com Albertina de Jesus Rodrigues. // Enviuvou a 27/12/1998. // Morreu a 23/8/2004, com 95 anos de idade, e foi sepultado no cemitério de Penso, ao lado de sua esposa, (1917-1998). // Com geração.


SALGADO, Maria da Conceição. Filha de Firmino Alves Salgado, natural de Rouças, e de Rosa Esteves Cordeiro, natural de Penso, proprietários nesta última freguesia. Neta paterna de António Justiniano Alves Salgado e de Teresa de Jesus Domingues; neta materna de Manuel Esteves Cordeiro e de Maria Ferreira Passos. Nasceu em Penso a 10/2/1909 e foi batizada na igreja a 8 de Março desse ano. Padrinhos: António Salgado e Maria Salgado, tios paternos da neófita. // Casou a 28/6/1934 com o Dr. Francisco de Almeida Peneda Junior, filho de Francisco de Almeida Peneda e de Florência de Jesus Peneda, proprietários em Lamego. Depois das cerimónias religiosas foi servido em casa dos pais da noiva «um finíssimo lanche», acompanhado de música e dança, a fim de animar a festa. Os noivos seguiram para a sua viagem de núpcias por terras do norte de Portugal, partindo depois para Lourenço Marques, Moçambique, onde o noivo ia exercer a clínica (Notícias de Melgaço n.º 238, de 8/7/1934). Parece que não se deram bem com os ares de África, pois em 1935 o Dr. Francisco A. Peneda foi colocado nos Arcos de Valdevez. // O seu marido morreu na freguesia de Salvador, Arcos de Valdevez, a 15/9/1966. // Ela faleceu na freguesia de Pousos, Leiria, a 23/7/2003, com 94 anos de idade.

     NOTA: segundo me informou a Sr.ª D. Maria João Lopes, neta do casal D. Maria da Conceição Salgado e do Dr. Francisco de Almeida Peneda Junior, os seus avós não chegaram a embarcar para Moçambique. // Agradeço a informação. JAR