sexta-feira, 29 de maio de 2020

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



// continuação…

ROUBOS


(1951) - Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 970, de 18/3/1951, escrito pelo correspondente de Penso: «… é de lastimar que este período de silêncio fosse caracterizado por diversas roubalheiras que revelam uma audácia e uma perversidade inqualificáveis. Ora vejamos: Ao senhor Joaquim Maria da Rocha um atrevido gatuno roubou alguns cabaços de vinho tinto e branco, penetrando na adega pelo telhado. Já não é a primeira vez que o senhor JMR tem sido roubado e, talvez, pelo mesmo larápio, que deve conhecer bem os cantinhos da adega e a fraqueza da vítima. // Ao senhor Aires Gonçalves roubaram de uma latada um fio de arame com oitenta metros de comprimento. Soube quem era e, compadecentemente, obrigou-o a repo-lo no seu lugar. Belo castigo! // Ao senhor João Eugénio Lucena roubaram outro fio de arame, com quarenta metros de extensão, não lhe sendo possível descobrir o autor da proeza, porque, se isso consegue, ai dele! // O senhor José Carlos da Rocha, residente em Lisboa, também foi roubado pela quadrilha. De uma latada que possui nos sucalcos desapareceu-lhe, de um dia para o outro, um fio de arame de trinta metros de comprimento. O caseiro, suspeitando que o fio devia ter sido utilizado nalguma pesqueira, deu umas voltas pela margem do rio e lá foi encontrar uma pesqueira chamada bugio. Perguntando [a alguém] se sabia quem fora o armador, respondeu com certa graça: - Ora, quem havia de ser? O Tomás das Quingostas (1808-1839) que veio do inferno com licença ilimitada e autorizado pelo chefe que o quis mostrar a quem nunca o conheceu, ou finge não o conhecer, por conveniência. E ei-lo, por cá anda, na mesma mesma faina (roubalheira), sem nenhuma vergonha, gozando todas as regalias de um autêntico rato que nada escapa à sua característica de roedor, tudo lhe servindo para aguçar os dentes que as labaredas do remorso ainda não conseguiram destruir-lhe. Vou, portanto, esconjurá-lo a ver se não volta cá mais. Amen. Esta resposta causou certa hilaridade e parece que não foi tomada a sério pelos que dela tiveram conhecimento. É de crer.»          

 


LIMA, António (*). Filho de Faustino Pedroso de Lima (de Famalicão?) e de Custódia Carvalho Duarte (**), natural de Santo André, Vila Nova de Poiares, moradora que foi em Vale de Cambra. Nasceu na freguesia de Casal de Ermio, Lousã, a 18/3/1909. // Passou por Paredes de Coura, onde conheceu a futura esposa, e veio para Melgaço na década de vinte, a vender azeite com um burro. Foi Belchior Herculano da Rocha, melgacense, que o acompanhou nos primeiros tempos pelas freguesias do concelho, até ele adquirir conhecimento dos lugares e clientes. // O negócio corria-lhe bem, as vendas aumentavam, foi enriquecendo paulatinamente; abriu armazém de azeite na Rua Nova de Melo, Vila de Melgaço, em Novembro de 1929, onde se venderam depois outras mercadorias, tais como gorduras, vinhos, etc. // Comprou na Calçada uma boa casa, onde morou com a esposa e filhos. // Casara na Conservatória de Paredes de Coura em 1929 com Maria Noémia (***), filha de Alfredo José da Rocha e de Maria Isaura da Rocha, nascida em Paredes de Coura a 12/11/1909. // Na década de trinta, com a guerra civil de Espanha, as coisas melhoraram para o seu lado. // Em 1937 a “Companhia Portuguesa dos Petróleos Alantic” requereu licença para instalar um depósito subterrâneo de gasolina – 2000 L – com bomba auto medidora (…) na Rua Teófilo Braga, Vila de Melgaço, (…) no interior da parede do prédio habitado por António Pedroso de Lima. // Foi a partir daí que pôde instalar ao pé do armazém uma bomba de gasolina e lavagem de automóveis. // No Notícias de Melgaço n.º 375, de 7/11/1937, o professor Ribeiro da Silva dedicou uma gazetilha ao seu azeite de Tomar e Castelo Branco, e vinho dos Arcos. // Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 992, de 9/9/1951: «Ratoneiro. Da adega do nosso amigo senhor António Pedro de Lima, comerciante desta praça, foram furtados por meio de chave falsa seis ou sete presuntos. O larápio, porque o carrego era grande, foi-os deixando pelo caminho, e ali para os lados de Eiró, em um aqueduto que atravessa a estrada ultimamente feita para a quinta daquele nome, deixou ficar escondida parte da carga. Um cão, porém, farejou-a e alapardou-se com um dos presuntos furtados. Foi este novo polícia quem soltou o primeiro grito de alarme, o que levou os curiosos a revistarem o sítio, encontrando ainda dois outros, que já regressaram para casa do dono. Proezas destas são fáceis de fazer, mas quase sempre levam o seu autor a estagiar nas cadeias mais cedo ou mais tarde. Arrepie, pois, caminho o atrevido amigo do alheio, antes que se lhe quebre o cântaro no caminho.» // O senhor António Pedroso de Lima morreu no hospital de Viana do Castelo a 1/7/1973, com sessenta e cinco anos de idade, e foi sepultado no cemitério da Ordem Terceira, Viana. // A sua viúva finou-se na Calçada, Melgaço, a 17/6/1993, com 83 anos de idade, tendo sido sepultada em Viana, também no cemitério da Ordem Terceira. // Irmão de Sebastião Pedroso de Lima. (ver NM 306; NM 358; e VM 989). /// (*) Em Melgaço era conhecido por “Lima Azeiteiro”. /// (**) Essa senhora faleceu em Melgaço a 7/12/1941, com 72 anos de idade, viúva havia já 23 anos. /// (***) Sempre que ficava grávida, por volta dos oito meses ia ter a criança à terra do marido

// continua...



segunda-feira, 25 de maio de 2020

MELGAÇO: Padres, Monges e Frades
 
Por Joaquim A. Rocha
 
desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues


continuação...

CLAMORES – Várias pessoas, com um padre a guiá-las, cumprindo um voto coletivo, dirigiam-se a uma capela, a um cruzeiro, etc., em altos gritos, agradecendo à divindade por os ter livrado de uma peste, de uma seca, etc. Andavam quilómetros a pé! / Parece que os primeiros clamores surgiram no século XVI. Com o tempo, essas manifestações foram rareando, até se tornarem obsoletas. // A 21/5/1934, segunda-feira do Espírito Santo, a 17/5/1937, e em 1942, o clamor de Riba de Mouro veio em romagem à Senhora da Orada; em 1942 acompanhado de um grupo de escutas, que fizeram, durante a missa, a competente guarda de honra (ver NM 233, de 27/5/1934, e NM 587, de 31/5/1942). // A 2/6/1952, ainda o padre Manuel António Bernardo “Pintor” trouxe o dito clamor de Riba de Mouro à Senhora da Orada (ver “Padre Júlio Vaz Apresenta Mário”, p.p. 19 a 23).

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 907, de 7/8/1949, um artigo escrito por António Augusto Gonçalves Ribeiro: «Recordações de Melgaço. Capítulo XXI. Os Clamores da Ascensão. Em tempos distantes, segundo reza a tradição popular, a atual terra melgacense foi invadida por uma terrível epidemia pestífera, que derrotou a descendência de muitas famílias e fez graves transtornos noutras. Os eclesiásticos, aproveitando esta triste e aflitiva situação concelhia, procuraram exortar os fiéis a aproximarem-se mais do omnipotente, de maneira que passados poucos anos, e sendo-lhe sempre [relembrada] aquela horrível data, o povo crente do velho Melgaço, guiado pelos seus pastores, que sempre acompanhavam os seus súbditos, pediu a intercessão da mãe de Deus para casos idênticos, oferecendo ir todos os anos, em penitência, ao santuário de Nossa Senhora da Orada de Fiães, sobranceiro ao [rio] Minho. Sabe-se perfeitamente que a maioria do atual concelho de Inês Negra era coutada pelo mosteiro de Fiães, cujos abades tinham preponderância no norte de Portugal.» Carpinteira, Julho de 1949. /// (*) No texto jornalístico: «remunerada».      

 

   

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COISAS DA HISTÓRIA

As Nossas Paróquias

 

     «A origem das nossas paróquias remonta aos primeiros séculos do cristianismo. No século IV principiaram a germinar as primeiras paróquias, organizadas pela pregação evangélica, cuja ação evangelizadora se estendia até às povoações rurais. No concílio de Lugo, convocado no ano de 569, foram atribuídas ao arcebispado de Braga aproximadamente trinta paróquias. A invasão muçulmana veio no século VIII interromper esta organização católica e social, concentrando a vida da época dentro de curtos limites; o amor da independência e a crença religiosa, duas molas sobre as quais girava a sociedade constituída pelos sucessos de Pelágio, primeira [sede] da reconquista peninsular. As lutas então travadas pelos cristãos que haviam escapado à destruição do império gótico nas Espanhas fizeram dividir o solo reconquistado em pequenos senhorios, defendidos pelo castelo (ou casa forte) a par do qual era edificada uma igreja ou um mosteiro. A crença religiosa, não menos do que o amor da independência, influiu na organização das nossas paróquias, estendendo a sua ação desde a pequena igreja de Covadonga até à ampla igreja estilo renascença, edificada no último quartel do século XVIII. Algumas devem a sua origem à fundação de mosteiros, assim como as freguesias de Fiães e Paderne, deste concelho (*), enquanto outras trazem a sua origem de simples capelas ou oratórios. Estas capelas, ou oratórios, umas eram curatos de mosteiros, e pelo qual eram sujeitas ao clero regular; outras eram sujeitas às igrejas de primeira categoria, que recebiam os rendimentos, fazendo-se substituir por um cura, ou vigário, a quem davam uma parca remuneração. Nesta situação, encontramos, a partir do século XIII, uma grande parte das freguesias que hoje fazem parte do concelho de Melgaço; entre elas a freguesia de Alvaredo, Cousso, Cubalhão, Gave, Parada do Monte, Prado e Remoães, freguesias que no século XIII e seguintes viveram escravizadas, ou anexas, às igrejas de primeira categoria. Assim, Alvaredo, curato anual do mosteiro de São Fins, onde o cura, com o título de vigário, tinha para sua sustentação oito mil réis de côngrua e o pé d’altar, rendendo para os religiosos do mosteiro cento e vinte mil réis! Cousso, simples curato do mosteiro do Salvador de Paderne, com um cura anual, que recebia seis mil réis em dinheiro, pagos pelo prior do mosteiro, e dois mil réis da comenda de São Pedro de Riba do Mouro, por este lhe curar um lugar da sua freguesia, que hoje pertence à freguesia de Cousso. Cubalhão também era um curato do mesmo mosteiro, cujo cura anual tinha como sua remuneração as benesses da igreja, enquanto os religiosos tinham para si os dízimos. Gave, freguesia anexa a Riba de Mouro, tendo o cura como remuneração as benesses da igreja, e cinco mil réis em dinheiro, pagos pelo reitor de Riba do Mouro, ficando os dízimos para a comenda desta freguesia. Parada do Monte, também uma filial da igreja de Riba de Mouro, onde o cura, com o título de vigário, recebia cinco mil réis e o pé d’altar para sua sustentação, pagos pelo reitor de Riba de Mouro, ficando este com os restantes rendimentos. Prado e Remoães, duas freguesias também anexas - ou subalternas - à igreja de São Paio, onde os seus curas, com o título de vigários, tinham como remuneração do seu trabalho oito mil réis de côngrua e o pé d’altar. Quanto aos restantes rendimentos, eram divididos em quatro partes, sendo uma para o abade de São Paio, outra – chamada renda do castelo, ou da Casa de Bragança – ficando as duas restantes para a Mesa Arquiepiscopal. As freguesias assim constituídas viviam, se isto era viver, em um estado muito inferior; não só pela sujeição, como também pela parca remuneração, só conseguindo com curas, eclesiásticos menos ilustrados e menos competentes. Estas anexações foram suprimidas, a partir do século XVI, ficando como recordação àquelas igrejas que as dominaram, o direito de apresentação, surgindo uma nova esfera de luz para estas freguesias assim constituídas.» // Afonso. = Notícias de Melgaço n.º 855, de 25/04/1948, página 4. /// (*) Fiães e Paderne só passaram a ser freguesias de Melgaço depois de 1834.

 

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     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1009, de 20/1/1952, página 2: «FESTA DOS MARROQUINOS. Realizou-se no dia 16 de Janeiro de 1952 a tradicional festa do rei Mirabolim e dos frades de Marrocos. Não vamos agora descrever a festa ou o martírio dos fradinhos, mas aproveitar a ocasião para dizer aos nossos leitores como a festa era apreciada em 1896 no meio melgacense. Para isso, transcrevemos dum velho Jornal de Melgaço esta carta: - “Amigo Zé, estou maravilhado com a tua carta, vejo que tens estudado com atenção as belezas naturais do nosso solo, e penitencio-me pela loucura que cometi de andar por montes e vales, mares e rios, florestas e desertos, em procura das tão apregoadas maravilhas. Hoje confesso-te que efetivamente dentro das vossas velhas muralhas existem preciosíssimas variedades. Ainda tu não te lembraste da festa mais brilhante que talvez se realize em todo o nosso Portugal; essa festa em que figura o rei Mirabolim e os mártires de Marrocos. Sim, quero-me referir à festa de Paderne, essa beleza cujas figuras deviam todas ser encerradas numa masmorra e presos de pés e mãos, tendo por alimentação apenas pão e água, pois que só assim deixariam de desempenhar papeis que são um verdadeiro escárnio da religião que professamos. De há muito que os prelados que têm estado à frente do nosso arcebispado proibiram essas cenas burlescas nas procissões religiosas, porém vejo que a Paderne ainda não chegou a tal proibição. Bom será que o muito digno pároco daquela freguesia suprima de tal festa o célebre rei, os mártires de cabeça pintada a capricho, os penitentes de espada e outros figurões que tais. Tu mandas-me para a Peneda; pois para castigo achava mais justo que me obrigasses a desempenhar qualquer papel na trágica comédia de Paderne. Seria maior castigo para mim o desempenhar um papel puramente ridículo na borga padernense, do que ir descalço à romaria de Nossa Senhora da Peneda. Mas já que foste tão benigno, aceito a penitência e lá irei na época competente. // Larangeira
 


desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues
 

        As festas de Melgaço de 1966 (29, 30, e 31 de Julho) decorreram como foram planeadas, quase perfeitas, mas algo aconteceu que as perturbou. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1606, de 14/8/1966: «Um senão veio empanar o brilho das nossas festas e desgostar profundamente a briosa comissão de rapazes que com tanto bairrismo e não menor sacrifício as levou a efeito. Foi a proibição dos actos religiosos: - missa solene com sermão e a procissão.» // O que teria acontecido para a igreja católica tomar essa decisão?

 

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     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1608, de 11/9/1966: «Virgem peregrina em Melgaço. Apoteoticamente recebida, chegou a Melgaço no passado dia 21 do mês findo, a virgem peregrina, Nossa Senhora de Fátima. Recebida entusiasticamente em Penso, aí começou a sua triunfal visita ao nosso concelho. Acompanhada por numerosas viaturas, rodou a meritíssima virgem até à sede do concelho, por entre os mais entusiásticos aplausos, símbolos da mais pura fé na virgem peregrina. Em Prado formou-se uma numerosa procissão, que precedendo a virgem, o povo orava e lhe cantava louvores. Entardecia quando Ela chegou bem ao coração do nosso concelho, o Largo Hermenegildo Solheiro, onde o senhor presidente da Câmara (Manuel José Rodrigues), usando aquele estilo a que nos habituou, proferiu uma brilhante ação de boas vindas. Seguidamente usou da palavra Sua Ex.ª Rev.ª o senhor bispo auxiliar, que focou em especial a simbólica data de 13/5/1917. Durante os quinze dias que a Senhora permaneceu entre nós, visitou a maior parte das freguesias (…) e em todas elas foi recebida da melhor maneira, como competia a tal visita. Muitas foram as freguesias que se deslocaram à nossa igreja matriz para prestarem as suas homenagens à excelsa rainha dos portugueses, destacando-se entre elas as freguesias de Castro Laboreiro, Parada do Monte, Gave, Cousso e São Paio, que – em luzidas procissões e manifestações de verdadeira fé – entoavam cânticos de louvor, ajoelhando a seus pés, pediam à Senhora as bênçãos do céu. No último dia da sua despedida, para Valença, quatro do corrente, logo de manhã começou a ver-se nesta vila desusado movimento. Na igreja matriz realizavam-se as cerimónias do (…), onde numerosas crianças se abeiraram da sagrada mesa fazendo a sua comunhão solene. Às quatro horas da tarde, na Praça da República e na (…) tribuna, previamente preparada para o efeito, era celebrada a santa missa pelo senhor arcipreste do concelho (padre Justino Domingues), que no momento próprio proferiu uma brilhante homilia. O povo do nosso concelho acorreu em massa com os seus estandartes e bandeiras, para assistir à despedida da Virgem de Fátima. Era um mar de gente! No final, o senhor presidente da Câmara fez a consagração do concelho à santíssima virgem, seguindo-se-lhe Sua Ex.ª Rev.ª o senhor arcebispo primaz, que agradeceu tão grandiosa manifestação de fé, dando no final a sua bênção especial ao povo do nosso concelho. Eram já quase seis horas da tarde quando a virgem peregrina seguiu em um luxuoso automóvel, ricamente preparado, até ao Largo da Calçada, onde o povo comovidamente lhe dirigiu o adeus à virgem, vendo-se milhares de lenços brancos a acenarem, dando um efeito surpreendente e raras vezes visto entre nós. E lá se foi a Senhora de abalada até Valença, acompanhada por um luzido cortejo de automóveis, terminando a sua estadia em Melgaço. Assistimos às mais frementes demonstrações de fé, às bonitas procissões diurnas e às belíssimas procissões de velas, tudo empolgado pela mesma mística de fé, a que tantas vezes temos assistido em Fátima. E, caros leitores, pena tenho que a minha caneta não esteja à altura de vos descrever tudo aquilo que foi a estadia de tão ilustre visitante entre nós, mas pondo os olhos na bela imagem da virgem peregrina, oro: Nossa Senhora do Rosário de Fátima, Salvai-nos e salvai Portugal.» // Hugo Daniel.            

 

    Comentário: desconheço completamente o autor do texto; a sua linguagem exaltada, a sua descrição do acontecimento, dá-nos a entender que de algum modo estava ligado à igreja católica, talvez fosse seminarista. Em 1966 quase todos os jovens rapazes melgacenses estavam no estrangeiro ou na guerra colonial; as raparigas, a partir dos quinze, dezasseis anos, tinham casado e estavam com os seus maridos em França, Suíça, Alemanha, etc. Apenas ficaram em Melgaço algumas estudantes. Por isso, a maior parte do povo de que fala o autor é idoso e com pouca ou nenhuma instrução. Daí, aderirem com facilidade e emoção à visita da santa. A população, devido sobretudo à guerra em África, andava assustada; todos os dias havia feridos e mortos e, embora a censura não deixasse passar essas horríveis notícias, alguma coisa se sabia graças aos jornalistas estrangeiros e a portugueses residentes por essa Europa fora. Enfim, cada cronista escreve de acordo com a sua visão do mundo e sobretudo de acordo com os seus interesses.   

 

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     Em Chaviães o padre, ou alguém muito religioso, pediu a uma criança que lesse um texto por si escrito. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1609, de 18/9/1966: «No dia 31 do mês findo, pelas 15 horas, no extremo da freguesia com a de Paços, foi entregue por esta a veneranda imagem de Nossa Senhora de Fátima, que veio em procissão até à igreja paroquial. (…) Por uma das meninas da catequese foi feita a seguinte saudação: Eu te saúdo, ó Nossa Senhora, em nome de todo o povo desta freguesia, que tão feliz se sente por a teres honrado com a tua divina visita. São horas de amor sublime, estes que vivemos enquanto te temos entre nós. Os nossos corações exultam de alegria, as nossas almas fremitam (*) de fé e esperança em ti. Tendo-te no nosso meio, sentindo-te mais perto de nós, ousamos dirigir-te, aliadas às nossas preces, as nossas humildes súplicas. Pedimos-te, ó mãe caríssima, que abençoes a nossa freguesia, os nossos lares, as nossas famílias, os nossos velhinhos, as nossas criancinhas. E porque sabemos que jamais esqueces os teus filhos, pedimos-te também pelos nossos ausentes, que nesta hora tão bela não podem venerar-te. Uns, longe, em terras estranhas, lutam por uma vida melhor – são os nossos emigrantes. Outros, também longe (embora em solo pátrio), defendem pedaços dispersos deste Portugal – são os soldados. O teu coração é grande, a tua bondade infinita. Lança pois o teu doce e misericordioso olhar sobre as nossas necessidades e misérias. Não só as materiais, mas, em especial, as morais. Essas que são o flagelo da humanidade. Que a bondade do teu coração toque os corações duros. Que a pureza da tua alma dê luz aos olhos cegos das almas que não querem ver a verdade. Que o teu amor, numa palavra, torne o mundo melhor e mais são.» /// (*) Quis dizer «fremem». O verbo “fremitar” não existe em português.

 

     Comentário. Eu penso que é imoral o que os membros da igreja católica pediram a essa menina. Será que a criança, com a 3.ª ou 4.ª classe da instrução primária, compreendia aquilo que estava a ler? Usaram-na, certamente com o consentimento dos pais, a fim de representar a farsa da pureza, da inocência. As palavras e os conceitos utilizados são demasiado eruditos para uma miúda que mal saberá ler e escrever. «Os nossos corações exultam de alegria»! Esta frase encaixava-se lindamente numa peça de teatro, assistindo, numa sala quase cheia, gente instruída, habituada a esse tipo de espetáculos. // «As nossas almas fremem de fé e esperança em ti.» O verbo fremir utiliza-se raramente. Todos os escritores o evitam, por causa da sua difícil conjugação. No entanto, uma jovenzita de onze ou doze anos de idade, nascida numa freguesia rural, sente-se à vontade para o utilizar! // «Lança, pois, o teu doce e misericordioso olhar sobre as nossas necessidades e misérias.» Quer dizer: uma das missões da santa era levar a riqueza e o bem-estar às famílias pobres! // A emigração, a guerra colonial, e outros males, a acreditarmos no poder dos santos e dos deuses, podiam ser evitados. Afinal de contas, alguns seres humanos têm mais poder do que os seres divinos: fazem a guerra, exploram até à exaustão os mais fracos, escravizam a mente dos mais frágeis. E os deuses consentem?         

 

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     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1610, de 25/9/1966: «Não falto à verdade se afirmar aqui de que não morro de amores por tomar parte nas grandes aglomerações. Todavia, sinto certa paixão por estar em contacto com tudo aquilo que se vai passando pelo mundo, sejam os acontecimentos grandes ou pequenos, o que hoje é facílimo pelo que de bom e útil se faculta, não só a imprensa como ainda a rádio e a televisão. Porque assim é, justifica-se a razão da minha presença na noite de 3 de Setembro corrente, no vão da minha janela, local cómodo e nada mais propício para plena satisfação dos meus desejos e atingir os fins que tenho em vista. Frente a mim, e a poucos metros de distância, fica-me a ponte de São Lourenço, e é precisamente nesse local, que – segundo me consta – se vai dar um importante acontecimento, pela grande solenidade de que o mesmo se reveste: a entrada da imagem da virgem peregrina de Fátima, vinda da vizinha freguesia de Paderne, para ser recebida e entregue ao povo da freguesia da vila, que em luzida procissão de velas a havia de conduzir – e finalmente conduziu – para a sua igreja matriz, sede do concelho. Infelizmente tal não aconteceu. Seriam umas dezanove horas e trinta minutos quando, vinda dos lados de Paderne, chegou ao Cruzeiro da Serra, em Prado, centro desta freguesia, e ponto obrigatório de passagem, a veneranda imagem da rainha da paz. Acompanha-a muito povo, tanto quantas luzinhas a alumiam, o que dá especial realce à luzida e bem organizada procissão. Como não podia deixar de ser, a esta preside e orienta o reverendo prior daquela freguesia de Paderne, padre Albertino, que aproveita uma curta paragem no local, a que acima me refiro, para em breves, mas eloquentes palavras, que aliás lhe são peculiares, saudar o povo desta freguesia de Prado, que ali se encontrava reunido para – na sua maior parte – acompanhar a sua veneranda peregrina de Fátima até ao local do seu destino. Do vão da minha janela posso assistir, embora silencioso, mas bastante comovido, a todo este ato de tão solene liturgia. Aguardo com prazer, e até com certa ansiedade, o momento que está para breve, de chegar aos meus ouvidos os cânticos de louvor à virgem, ver os lencinhos brancos sacudidos pelo vento, num adeus à imaculada, por aqueles que até ali a conduziam e as palavras de agradecimento por aqueles que alegremente a vão receber e conduzir, tomando-a à sua guarda para a solene adoração. Reparo para os lados da vila de Melgaço, percurso que facilmente posso descortinar, e vejo que dezenas e dezenas de luzinhas se movimentam estrada fora em direção ao local determinado para o encontro. É com mágoa que verifico que tal não acontece, pois a imagem da rainha da paz é levada e ultrapassa o referido local, mas como o encontro está para breve, pois apenas uma escassa dezena de metros os separa e os ventos correm de feição, sem desânimo aguardo no mesmo local o momento em que hão de chegar aos meus ouvidos as palavras do cerimonial a que acima faço referência. Mas, ó surpresa das surpresas! Para não dizer escândalo dos escândalos! O que momentos antes eram cânticos de louvor à rainha da paz, eram agora insultos, blasfémias, e até possivelmente calúnias. Era inacreditável o que se estava passando e, como São Tomé, ver para crer; a passo firme, dirijo-me para o local. O que se me depara era arrepiante e comovedor. A imagem da imaculada de Fátima jaz na berma da estrada, desprezada como qualquer mercadoria sem valor. À sua volta, em substituição dos cânticos de louvor à virgem, pedindo conceda a paz para os homens na terra e dando graças a Deus nas alturas, embora por outras palavras, ouvem-se os cânticos populares do “meu verdinho, meu verdinho…” e faz-se ainda mais, um autêntico tendal (ou estendal) de roupa suja. A Guarda Nacional Republicana é chamada de emergência para manter a ordem e fazer com que se restabeleça o devido respeito. Finalmente, e porque após a tempestade vem a bonança, graças à decisão do reverendo padre Justino Domingues, pároco da Vila, que cônscio de que quanto mais alto se sobe na instrução e mais elevados são os cargos que se oferecem na vida pública, maior é também a responsabilidade que se tem nos bons exemplos a dar. A imagem da virgem é levantada do chão e levada aos ombros de homens caridosos que a transportam até ao local do seu destino. Centenas e centenas de luzinhas acompanham-na, para no dia seguinte, e com a presença de Sua Ex.ª Reverendíssima, o senhor Arcebispo Primaz de Braga, receber o adeus à virgem de algumas milhares de pessoas que, ao sabor do vento, sacudiam no ar outros tantos lencinhos brancos. O que aqui fica dito, e se passou de desagradável, não o faço por prazer, e isto porque sou melgacense e ninguém com verdade poderá dizer que podia servir para escrever mais uma página de glória na civilização cristã, que há dois mil anos se está vivendo, e tal como a herdamos dos nossos antepassados, sem mácula e sem manchas, é nossa obrigação legá-la aos nossos vindouros. Está longe, mesmo muito longe de mim, atribuir aqui responsabilidades a quem quer que seja, e ainda muito menos ferir suscetibilidades pessoais. Todavia, quem se sentir magoado que reze credos, muitos credos, para muitas vezes bater com a mão no peito, e como a misericórdia de Deus é infinita, podem contar com o seu perdão, porque «dos arrependidos e ignorantes é o reino dos céus.» // Prado, 10/8/1966. José Lopes Pinheiro (1910-1988).          

 

Comentário: a leitura deste texto deixa-nos perplexos. O povo de Melgaço, tão crente, tão devoto da Virgem Maria, pratica um ato tão sem jeito, como dizem os brasileiros. Claro que este episódio tem uma explicação. Aqueles homens que carregaram às costas com a imagem da santa até Prado, uns bons quilómetros, esperavam que os da Vila os aguardassem para os substituir no trajeto Prado-Vila, sede do concelho. No entanto, os da Vila não apareceram, daí as palavras grosseiras, e as cantigas populares. E haverá algum motivo para os Vila não comparecerem? Eles que durante anos carregaram com os pesadíssimos andores, nas festas anuais: Orada, Carvalhiças, etc. É óbvio que não apareceram porque já não estavam em Melgaço. Devido sobretudo à guerra colonial os jovens fugiram para o estrangeiro, pois não quiseram correr o risco de serem mortos ou feridos em África. Era fácil para Salazar mandar para esse continente os filhos dos outros, pois ele não os tinha. Aqueles que ficaram na Vila eram os meninos da mamã, já livres do serviço militar, que muitos deles não cumpriram, não estavam habituados a trabalhos pesados. Lembro-me de alguns, mas é melhor não mencionar nomes. Uma pergunta que se deve fazer é a seguinte: e os padres mais jovens, entre os vinte e os cinquenta anos, possantes, porque não carregavam eles com a imagem? A igreja católica também podia, ou pode, pedir aos seminaristas, com idade superior a dezoito anos, para fazerem esse trabalho. A alternativa é pagarem. À virgem Maria provavelmente agradava essa disponibilidade dos seminaristas ou padres. Antigamente os frades fartavam-se de trabalhar nas obras, nas hortas, etc. //  continua...                

quinta-feira, 21 de maio de 2020

 
 
 
À Senhora D. Renata Salgado:
 
     Em virtude de não ter o e-mail da senhora, sirvo-me deste meio para lhe enviar as pequenas biografias de seus ascendentes. Caso descubra no futuro outros parentes terei todo o gosto em comunicar-lhe essas preciosas descobertas. // Cumprimentos.
 
P.S. - O meu e-mail é o seguinte: joaquim.a.rocha@sapo.pt
 
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CASTRO, Emília Gertrudes. Filha de Manuel António Pereira de Castro e de Maria Rosa Rodrigues, moradores no lugar do Coto. Nasceu em Prado por volta de 1812. // Morou no dito lugar do Coto. // Lavradeira. // Casou a 12/10/1849 com António Joaquim Domingues Salgado, filho de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares. // Faleceu no lugar do Rego, Prado, a 18/3/1899, com todos os sacramentos da igreja católica, no estado de casada com o dito António Joaquim, com 87 anos de idade, com testamento, com filhos, e foi sepultada no cemitério local. // Mãe de Albina Rosa Domingues Salgado (faleceu solteira a 7/11/1922), etc.
 
 
CASTRO, Agostinho. Filho ilegítimo de frei Bernardo Pereira de Castro, natural de Remoães, e de Inês Fernandes, natural de Prado. Nasceu em Prado 19/4/1728 e foi batizado na igreja paroquial a 24 desse dito mês e ano. Padrinho: Agostinho Soares de Castro, natural da Casa do Fecho, residente na Quinta do Coto, Prado, e presenciaram a cerimónia, como testemunhas, Pedro de Sousa da Gama, da Casa da Serra, e Gaspar Teixeira, morador na vila de Melgaço. // Casou com Maria de Sousa Castro, filha ilegítima de Manuel de Sousa Meneses, da Quinta do Fecho, e de Benta Quintela, solteira, natural do Couto de Fiães. // Enviuvou a 3/2/1760. // Voltou a casar, desta vez com Luísa Caetana de Nóstrosa Lira Sotomaior. // Pai de Ana Joaquina, de Margarida Antónia, de Joana Maria...
 
SALGADO, António Joaquim. Filho de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, moradores no lugar do Cerdedo, Prado. Neto paterno de Manuel Joaquim Domingues e de Maria Luísa, do lugar da Grova, Paços; neto materno de João Manuel Rodrigues Palhares e de Maria Josefa de Sousa Gama, do lugar de Ferreiros, Prado. Nasceu na freguesia de Prado, lugar do Cerdedo, por volta de 1813. // Casou na igreja de Prado a 12/10/1849 com Emília Gertrudes Pereira de Castro, filha de Manuel António Pereira [de Castro] e de Maria Rosa Rodrigues (defunta), do lugar do Coto, Prado; neta paterna de Agostinho Pereira de Castro e de Luísa Caetana Nóstroza Lira Sotomaior, da Casa e Quinta de Eiró, Rouças (defuntos), e neta materna de José Rodrigues e de Josefa Alonsa, do lugar de Almas, freguesia de São Pedro de Felgueiras, bispado de Tui. Testemunhas presentes: Manuel José Gomes, casado, do lugar do Carvalhal; Fortunato José Alves, do lugar de Santo Amaro; e José António Pinheiro, do lugar de Ferreiros, os três lavradores e solteiros. // A sua esposa faleceu no lugar do Rego, freguesia de Prado, a 18/3/1899. // Ele morreu no dito lugar do Rego a 18/1/1900, com todos os sacramentos da igreja católica, com oitenta e sete anos de idade, com testamento, com geração, e foi sepultado no cemitério da sua freguesia de nascimento.   
 
SALGADO, José António. Filho de António Joaquim Domingues Salgado e de Emília Gertrudes Pereira de Castro, moradores no lugar do Rego, Prado. Neto paterno de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do lugar do Cerdedo; neto materno de Manuel António Pereira de Castro e de Maria Rosa Rodrigues (defunta), do lugar do Coto. Nasceu em Prado a 6/10/1850 e foi batizado na igreja nesse dia. Padrinhos: José António Pinheiro e sua irmã, Ana Luísa Pinheiro, solteiros, do lugar de Ferreiros. // Sem mais notícias.
 
SALGADO, João Luís. Filho de António Joaquim Domingues Salgado e de Emília Gertrudes Pereira de Castro, moradores no lugar do Rego, Prado. Neto paterno de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, moradores no lugar do Cerdedo; neto materno de Manuel António Pereira de Castro, viúvo, e de Maria Rosa Rodrigues, do lugar do Coto, Prado. Nasceu em Prado a 30/12/1852 e foi batizado na igreja paroquial nesse mesmo dia. Padrinhos: os seus avós paternos.   
 
SALGADO, Manuel Joaquim. Filha de António Joaquim Domingues Salgado e de Emília Gertrudes Pereira de Castro, moradores no lugar do Rego, Prado. Neto paterno de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do lugar do Cerdedo; neto materno de Manuel António Pereira de Castro e de Maria Rosa Rodrigues, do lugar do Coto. Nasceu em Prado a 28/2/1857 e foi batizado a 1 de Março desse ano. Padrinho: Manuel Joaquim de Sousa Araújo, solteiro, do lugar do Carvalhal.   
 
SALGADO, Maria das Dores. Filha de António Joaquim Domingues Salgado e de Emília Gertrudes Pereira de Castro, moradores no lugar do Rego, Prado. Neta paterna de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do lugar do Cerdedo; neta materna de Manuel António Pereira de Castro e de Maria Rosa Rodrigues, do lugar do Coto, todos lavradores. Nasceu em Prado a 28/8/1863 e foi batizada na igreja no dia seguinte. Padrinhos: José António Pinheiro, casado, rural, morador no lugar de Galvão, SMP, e Ana Luísa Pinheiro, solteira, camponesa, do lugar de Ferreiros, Prado.  
 
SALGADO, Albina Rosa. Filha de António Joaquim Domingues Salgado (1813-1900) e de Emília Gertrudes Pereira de Castro (1812-1899). Nasceu em Prado a --/--/18--. // Faleceu no estado de solteira a 7/11/1922.
 
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SALGADO, Bernardo José. Filho de João Luís Domingues Salgado e de Ana Delfina Fernandes Torres, moradores no lugar do Cerdedo. Neto paterno de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do dito lugar; neto materno de Diogo António Fernandes Torres (defunto) e de Maria Luísa Pinheiro, do lugar de Leiros, todos pradenses. Nasceu em Prado a 20/10/1847 e foi batizado na igreja a 24 desse mês e ano. Padrinhos: Vitorino Joaquim da Rocha Gonçalves, negociante no Campo da Feira, Vila de Melgaço, e (Helena ou Elisa) Joaquina Fernandes Torres, solteira, do lugar de Leiros, Prado. // Casou com Palmira Augusta, filha de José Maria Camanho de Carvalho e de Genoveva Augusta Esteves, farmacêuticos. // Em Janeiro de 1918 foi escolhido pelo Governador Civil de Viana para fazer parte da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Melgaço, a qual substituiu a Câmara recentemente eleita. A posse foi-lhe dada pelo administrador do concelho, professor António José de Barros. Os outros membros da Comissão eram: padre António Domingues, de Fiães, pároco da freguesia de Paderne, Francisco José Pereira, de Paderne, António Joaquim Esteves e José Augusto Teixeira, da Vila. A mudança deve-se ao facto do governo de Sidónio Pais não confiar nos vereadores recentemente eleitos nas listas dos partidos (ver Jornal de Melgaço n.º 1192, de 26/1/1918). // Nesse ano de 1918, e na ausência do juiz diplomado, serviu de juiz de direito substituto (Jornal de Melgaço n.º 1200, de 23/3/1918). // No Jornal de Melgaço n.º 1202, de 13/4/1918, aparece-nos como presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Melgaço, servindo de administrador, por o professor António José de Barros se ter demitido. // Morreu no dia 28/3/1934. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 228, de 8/4/1934: «Muito novo, dedicou-se ao comércio de mercearias em Viana do Castelo, tendo sido sócio da conceituada firma Domingos Gonçalves de Carvalho & C.ª, daquela praça. Mais tarde fundou a sua casa comercial na Avenida Marginal, conseguindo em breves anos que fosse uma das mais importantes de Viana do Castelo. A sua probidade e o seu temperamento de incansável trabalhador granjearam-lhe a maior consideração e respeito na classe comercial, onde contava sinceros amigos. Tendo amealhado avultados meios de fortuna e não podendo dedicar-se ao árduo trabalho do balcão, chamou para seu sucessor um caixeiro seu vizinho, senhor Francisco José Lopes, a quem passou o seu estabelecimento, e que ainda hoje continua a honrar as tradições do seu fundador…» // A sua viúva finou-se a 20/1/1937, com sessenta e seis anos de idade.
 
 
SALGADO, Joaquina Ludovina. Filha de João Luís Domingues Salgado e de Ana Delfina Fernandes Torres, moradores no lugar do Cerdedo, Prado. Neta paterna de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do dito lugar; neta materna de Diogo António Fernandes Torres (defunto) e de Maria Luísa Pinheiro, viúva, do lugar de Leiros. Nasceu em Prado a 28/12/1851 e foi batizada na igreja nesse dia. Padrinho: o seu avô paterno. // Lavradeira. // Casou na igreja de Prado a 10/8/1876 com Manuel Joaquim Gonçalves Pereira, do lugar do Carvalhal, Prado. // Faleceu a 16/9/1919.  
 
SALGADO, Maria Alexandrina. Filha de João Luís Domingues Salgado e de Ana Delfina Fernandes Torres, moradores no lugar do Carvalhal, Prado. Neta paterna de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do lugar do Cerdedo; neta materna de Diogo António Fernandes Torres (defunto) e de Maria Luísa Pinheiro, do lugar de Leiros. Nasceu em Prado a 26/1/1846 e foi batizada na igreja paroquial nesse mesmo dia. Padrinhos: Manuel José Gonçalves e sua esposa, Inácia Josefa de Sousa Palhares, do lugar do Carvalhal. // Casou com Ambrósio Custódio Salgado, filho de António José Salgado, do lugar do Souto. // Faleceu a 16/11/1923. // Com geração.   
 
SALGADO, Vitorino Joaquim. Filho de João Luís Domingues Salgado e de Ana Delfina Fernandes Torres, moradores no lugar do Cerdedo, Prado. Neto paterno de João Manuel Domingues Salgado e de Antónia Maria de Sousa Palhares, do dito lugar; neto materno de Diogo António Fernandes Torres (defunto) e de Maria Luísa Pinheiro, viúva, de Leiros. Nasceu em Prado a 26/9/1849 e foi batizado na igreja paroquial dois dias depois. Padrinhos: Vitorino Joaquim da Rocha Gonçalves e sua esposa, Rosa Joaquina Gomes, negociantes na Vila de Melgaço, representados pelo avô paterno e tia materna do neófito, Clara Rosa Fernandes Torres, solteira, do lugar de Leiros. // Lavrador. // Casou na igreja de Prado a 11/7/1888 com a sua conterrânea Joaquina Rosa Gomes de Sousa, de 48 anos de idade, solteira, camponesa, moradora na freguesia de Paderne, filha de José Caetano Gomes de Sousa e de Vicência Rosa Ferreira, rurais. Testemunhas presentes: João Pinheiro, solteiro, lavrador, residente no lugar de Ferreiros, e Lourenço Gomes Calheiros, solteiro, camponês, morador no lugar dos Bouços. // Era gago. // Fez parte da Junta de Freguesia de Prado algumas vezes. // Em 1908 foi nomeado regedor da sua freguesia, tendo por substituto José Manuel de Castro (Jornal de Melgaço n.º 727). // Enviuvou em 1915. // Morreu no lugar do Cerdedo, Prado, a 4/3/1929, com oitenta anos de idade. // Sem geração.     

 
 
 
 

LINA - Filha de Pã
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
14.º Capítulo

 

 

     Ouviram-se, no relógio da torre, as seis badaladas da manhã. Os dois guardas, Pedro e Roberto, estavam prontos para a “caçada”. A diabólica Lina seria capturada «nem que fosse no inferno» - prometiam eles. Primeiro foram ao local da fuga.

 

- Foi aqui que a víbora nos escapou – lamenta-se o Roberto. – Filha de uma mãe.

- E reparaste na sua agilidade? Parecia uma lebre a correr.

- Não vai ser fácil apanhá-la. Será necessário colher algumas informações, saber do seu paradeiro.

- Olha: vamos passar por Prado Verde, depois subimos a Dernepa, e a seguir trepamos até às freguesias da serra – quase de certeza que deve andar perto de Lamas Santas.

- Pensas que voltava ao sítio onde cometeu o ato vil? – pergunta Roberto, incrédulo.

- Nunca ouviste dizer que «o criminoso regressa sempre ao local do crime»?!

- És capaz de ter razão. Ela deve precisar de algumas roupas lá de casa. Vamos em frente.

 

     Subiram por caminhos estreitos, sinuosos, alguns inundados de água para rega, com a pistola sempre pronta a disparar. Iam perguntando a algumas pessoas se tinham visto a fugitiva, mas todos diziam a mesma coisa: «não, não a vi.» Conhecer, toda a gente adulta a conhecia, graças às peripécias do passado – a Lina já era famosa, tristemente famosa, em todo o concelho, e até em Monção. As suas aventuras, por vezes relatadas com exagero, tornaram-na figura do anedotário local, emparceirando com todos os criminosos anteriores a ela.

 

    Nesse dia não conseguiram encontrá-la, nem sequer obtiveram um único indício do seu paradeiro.

- Foi um dia terrível, cansamo-nos em vão – comentou Pedro.   

- Ouve meu amigo: ela por enquanto está na toca, como a raposa, metida em uma gruta, mas quando a fome apertar ela sai; temos de ter paciência – ela é arguta, felina, só a nossa perspicácia e insistência a vencerão.

     Caminharam mais umas horas, falaram com algumas pessoas, mas os resultados foram nulos. Descorçoados, regressam ao quartel.

- Estou com uma fome danada, Roberto; por causa da malvada ainda ficamos tísicos.

- Amanhã trazemos umas sandes; para beber temos água – à ceia desforramo-nos.

 

 

     Os dias passavam no seu ritmo lento, compassado; a primavera já se despedira há muito e o verão estava no seu auge. O calor apertava, chegava quase aos quarenta graus! Aqueles dois homens até já tinham mudado de cor: de branquinhos que eram estavam a ficar morenos. Também já tinham perdido alguns quilos.

     O comandante do posto estava a ficar impaciente:

 

- Se não apanham a maldita assassina, dentro de pouco tempo mandam para cá a polícia judiciária. Para nós é uma humilhação, um desprestígio. E mais: somos todos transferidos e a mim até me despromovem.

 - Senhor comandante: amanhã ou depois de amanhã prendemo-la. Eu e o Pedro já sabemos mais ou menos onde ela se encontra. Viram-na em Gavião. Vamos cercá-la.

 

     Logo de manhã cedo arrancaram para o monte. A Lina já andava fugida quase há uma semana. Esgueirava-se de uma freguesia para outra, de um monte mudava para outro, sempre com mil cautelas.

        Roubava o que podia para comer e vestir. Pescava, encostada a um vistoso salgueiro, ou então sentada num pedregulho, no pequeno rio Mouro, sempre atenta, não fosse surgir inesperadamente o guarda-rios. Um bocado de fio de nylon, um comprido pau, um anzol e uma minhoca era o suficiente para atrair aquelas bonitas trutas, que depois grelhava. O calçado estava a ficar gasto de tanto caminhar. Entregar-se estava fora de questão, mas aquela vida também não lhe agradava nada. Sabia que estava a ser perseguida, até sentia, embora a distância, a presença dos perseguidores. «A minha sorte é que são poucos, senão já me tinham detido» - confessava ela a si própria.

 

     Os guardas foram apertando o cerco, com a ajuda da população. As pessoas começavam a recear a presença daquela mulher que era capaz de tudo para conseguir os seus objetivos. Por fim os soldados avistaram-na ao longe. Gritaram-lhe:

 

- Entrega-te que é melhor para ti. Não nos obrigues a matar-te.

- Venham buscar-me, se forem capazes – desafiou ela. Pensam que pelo facto de possuírem armas que me assustam?!

 

     E escapuliu-se por entre os pinheiros. Eles correram naquela direção e ao cabo de duas horas voltaram a avistá-la. Estava perto do rio, sentada em cima de um sinuoso pedregulho. O riacho, afluente do Minho, não levava muita água, mas ao longo do seu percurso ia formando poços, onde se poderia até tomar banho.

     Eles desta vez não dialogaram com ela – queriam apanhá-la sem ela se aperceber. Atrás das árvores, dos arbustos, lá se foram aproximando. Estavam já próximos quando um deles partiu um ramo seco de pinheiro. A Lina então virou-se para trás e viu-os. A reação não se fez esperar: mergulhou no poço mais próximo. Eles correram o mais que puderam a fim de evitar que ela se afogasse – queriam levá-la viva para a cadeia. Roberto solicita:

 

- Atira-te ao poço, Pedro, e saca a megera de lá; eu sei nadar, mas pouco.

 

     A Lina agarrara-se a um tronco de árvore que estava no fundo do poço para que eles pensassem que se tinha afogado. O guarda descalçou rapidamente as botas e mergulhou como se fora um nadador de alta competição. O poço não era fundo, a água estava limpa e por isso não lhe foi difícil encontrar o corpo da mulher. Trouxe-a à superfície, o outro guarda ajudou a tirá-la da água, e deitaram-na de barriga para o ar. Parecia morta! Tentaram extrair-lhe a água dos pulmões, num boca a boca, mas lá de dentro nada saía.    

  

- Roberto: temos de a levar às costas, ou improvisar uma maca, a pulha está desfalecida; é capaz de estar sem vida!

- Deixa lá o raio da maca; nem daqui a meia hora estaria pronta. Ela não é pesada. Alternamos: levo-a eu primeiro; depois passo-ta.

 

     E assim os dois homens carregaram com ela até à estrada. Tudo a subir. Estavam exaustíssimos. O suor escorria-lhe pelas faces. Praguejavam como dois arruaceiros das docas:

 

- Se não estivesse morta, matava-a agora mesmo! Este biltre dá cabo de nós.

- Agora temos de carregar com ela até à Vila. Cabra! Se tivesse aqui um barril metia-a lá dentro e ia a rolar até ao posto. 

 

     De repente, a malvada, que até aí se fingira de defunta, levanta-se do chão e diz-lhes:

 

- Vós sois mesmo broncos. Nem sequer sabeis distinguir uma pessoa viva de um cadáver! Que raio de autoridade, sois vós?! Em que escola aprendestes? A partir daqui não precisais carregar comigo – eu vou bem a pé; para baixo todos os santos ajudam!   

 

     A troça era um dos seus atributos. Gozar os outros dava-lhe um prazer mórbido. Envergonhados, cabisbaixos, roendo no seu peito o ódio contra aquele ser asqueroso, levaram-na diretamente para o cárcere. O guarda prisional veio recebê-los à entrada e comentou:

 

- Ora viva! Finalmente! Já pensava que nunca mais te apanhavam. Daqui não fugirás, garanto-te eu. Até te dava um prémio, se o conseguisses.

 

     A Lina, atrevida como era, desafiante, responde-lhe à letra:

 

- O senhor Capela não me conhece: se fosse a si não apostava; se eu quiser fujo desta e de qualquer prisão – é só eu querer.

- Bazófia não te falta – disse um dos guardas da Guarda Nacional Republicana, agora mais seguro de si. - Que és tramada, não há dúvida, já o provaste, mas aqui não terás grandes hipóteses de fuga. Por outro lado, não vais estar nesta cadeia muito tempo; o teu destino é o Porto ou Lisboa, disso não tenho qualquer dúvida. Espera pela sentença e já vais ver.

 

**

 

     O processo, que de início parecia simples, sem motivos para qualquer demora, tornou-se complicado e moroso, devido ao facto do senhor Filipe ter contratado um dos melhores advogados da região. As leis pareciam, à primeira vista, claras, transparentes, mas na prática não era assim – davam quase sempre azo a duas leituras, quase antagónicas! Argumentava o advogado de defesa:  

 

- A senhora Lina confessou o crime sob coação; sobre ela foi exercida violência física, teve de receber tratamento médico, logo essa confissão fica sem efeito, torna-se nula; o mesmo é válido para o senhor Filipe. Quem viu a presumível arguida a envenenar a patroa? Não teria sido a própria vítima que se enganou e em lugar de açúcar pôs raticida no chá? Não era a primeira vez que isso sucedia – quantos enganos fatais têm acontecido por esse mundo de Cristo!

- Mas, Senhor Doutor – contrapunha o delegado do Procurador da República – não acha que aquilo que está a dizer é um disparate?! Então como se explica que Lina e Filipe fossem casar logo a seguir?     

- Fácil de explicar, Senhor Doutor Delegado: um homem e uma mulher, livres ambos, a viver na mesma casa, saudáveis, sentir-se-ão com certeza atraídos um pelo outro – isso é natural e não é crime. Como os dois são católicos quiseram casar – até para calar as bocas do mundo, pois já falavam deles com pouca consideração, sobretudo a vizinhança. Os meus constituintes, embora não sendo figuras de proa na sociedade portuguesa, são cidadãos de muito respeito; por isso, e não existindo provas concludentes, devemos considerá-los inocentes.

 

     Essas discussões jurídicas prolongavam-se por horas a fio. O advogado não tinha pressa – ainda havia muito dinheiro na conta do cliente.

     A Lina é que já estava saturada da prisão. Todos os santos dias a mesma rotina: levantar cedo, banho, depois tomar a primeira refeição do dia, cevada com leite desnatado, e uma carcaça com um bocadinho de manteiga ou marmelada, a seguir o terraço, onde podiam circular, todo vedado, nem sequer se via o exterior, ao meio-dia outra refeição, depois iam todas para uma saleta, onde conversavam, ou liam, as que sabiam ler, umas revistas antigas, já sem qualquer interesse, às dezoito horas e trinta minutos a ceia. A comida era uma porcaria – um caldo mal feito e o presigo intragável.  

     «Tenho de sair desta maldita prisão» - impunha ela para si mesmo. «Esta vida leva-me à cova em meses», resmungava entre dentes. «É isso: tenho de conseguir fugir daqui, já cá estou há demasiado tempo. Mas como

     Ficou a magicar na maneira de escapar. Tinha na manga alguns truques, alguns dos quais já usara noutras ocasiões. Um deles era atrair sexualmente o carcereiro. O pior é que ele era casado e morava com a mulher, bonita e nova, ali ao lado da cadeia. Por outro lado, com os maus tratos que nos últimos meses sofrera, o seu corpo já não estava tão sedutor como outrora. O melhor era desistir desse esquema, já por demais usado. Surgiu-lhe de repente outra ideia luminosa: emagrecer ainda mais e tentar sair pelas grades; mas para isso precisava que o senhor Capela não lhe fechasse a sua cela à noite, porque, pensava ela, a fuga só teria êxito se fosse feita na escuridão, com toda a gente a dormir; com a luz solar as hipóteses seriam mínimas. Mentalmente, começou a gizar o plano.    

     Se bem o pensara, melhor o executou: arranjou sabão azul, bastante espesso, e antes de se deitar punha um bocado na fechadura, pela parte de dentro, humedecendo-o com saliva previamente. O carcereiro passava logo depois e fechava a porta da cela com a chave. Fazia ronda por todas as celas e fazia a mesmíssima coisa. Depois fechava a porta principal da prisão e ia para casa. Todas as noites aquilo. A Lina foi vendo se o sabão resultava. Nas primeiras noites não surtiu qualquer efeito. Continuou, no entanto, a pôr mais sabão na fechadura. O senhor Capela, extenuado, rotineiro, nunca deu por nada. Uma noite, a ladina, foi experimentar a porta e esta cedeu. Resultara em cheio! Agora podia sair à noite. Percorreu alguns cantos da prisão a fim de se habituar ao escuro. Fez isso, noites a fio. Às tantas já se movimentava com alguma facilidade e rapidez. As outras reclusas, pouco mais de meia dúzia, dormiam a sono solto.

     Um dia, já com algumas tentativas falhadas, a bem dizer ensaios, olhou-se ao espelho demoradamente e comentou: «Parece que já estás magra o suficiente para passar o gradeamento; é necessário esperar por uma noite de trovoada para que o vidro, ao partir, não chame a atenção de ninguém

     Naquela tarde trovejava sem cessar. O pára-raios já recebera a visita de pelo menos duas faíscas, interrompendo, por algum tempo, a energia elétrica. A noite estava terrível, feroz! O vento soprava, com uivos lancinantes, e chovia ininterruptamente.

     A Lina sai da cela, como o fazia regularmente, verifica se as suas companheiras de prisão estavam a dormir, o que não era fácil tendo em conta aquele temporal, e vai-se aproximando do gradeamento. Leva com ela, em tiras, os lençóis da cama. Pega no pau de vassoura, que guardara bem guardado debaixo do colchão, no qual colocara um pedacito de ferro, e rebenta com o vidro. Esperou a reação, mas nada fazia prever que os seus camaradas de presídio tivessem ouvido. Agora apenas tinha como obstáculo o gradeamento. Pôs-se de perfil e enfiou-se entre as barras de ferro como se fosse uma enguia ou uma cobra. Passado um instante estava do outro lado. Agora era só saltar o muro e ei-la livre. As tiras dos lençóis, bem atadas entre si, com um gancho na ponta, foram atiradas para cima do muro. Depois de algumas tentativas vãs, finalmente consegue fixar o gancho. Tal como um marujo, em um barco em turbilhão, trepa num instante por ali acima. Uma vez do lado de fora da prisão escolheu o caminho a seguir.         

     Quando se dispunha a partir para o monte, eis que uma voz medonha, vinda do além, se lhe dirige:

 

- Lina! Sou teu pai celestial. Sou Pã, filho de Hermes. Escuta aquilo que te vou dizer: os meus poderes não são ilimitados, por isso nem sempre tenho conseguido impedir que te façam mal; vai para o bosque, onde o meu poder é maior, ouvirás a minha música e dançarás com as ninfas.

 

     Ela olhou para o céu e viu uma figura gigantesca, com chifres e cascos de bode – nunca vira nada mais feio. Destemida, atreveu-se a dizer-lhe:

 

- Tu não és meu pai: meu pai era um homem vulgar, que morreu devido a uma doença ainda eu era menina. Tu és apenas uma visão; estou fraca, emagreci de mais, e agora, coitadinha de mim, sofro as consequências.   

 

     O deus irritou-se:

 

- É dessa maneira que me agradeces o querer defender-te dos humanos, não acreditando em mim? Não confias nos teus próprios olhos? Eu dei-te a seiva com que te alimentaste nos primeiros tempos de vida; caso contrário, terias perecido! As tuas hipóteses de sobrevivência eram praticamente nulas.

 

      E num gesto de revolta esmagou, com uma violenta murraça, um pedregulho que passava perto dele. O estrondo foi enorme. O calhau ficou desfeito em biliões, ou triliões, de fragmentos. Lina estremeceu. Conciliadora, a tremer, dirigiu-lhe novamente a palavra:

 

- Está bem, és meu pai… Então protege-me, como me prometeste. Queres que vá para um bosque, vou. E como chego lá? Onde fica tal sítio?

 

     Mal acabara de pronunciar aquelas palavras o seu corpo deslocou-se e de repente cai no chão. Mas não se tratava de um chão qualquer: um tapete de relva, muito verde, macio, cobria-o por completo. Ali perto havia um lago com uma água muito azul; em seu redor viam-se flores, as mais belas que ela já vira, e a sua fragrância inebriava. Por todo o lado se viam árvores frondosas, com folhas de variadíssimas cores. «Se calhar estou a viver um sonho! O que me estará a acontecer?!» - interrogava-se Lina. «Matei um ser humano e agora estou no paraíso! Isto não me está a acontecer

     Começa a ouvir uma música suave, como nunca ouvira. Nas festas do concelho, que se realizavam entre Maio e Outubro, apenas se escutavam músicas religiosas, de ranchos folclóricos, canções populares, e pouco mais. Esta era diferente, penetrava-lhe a alma. Estendeu-se na relva, extenuada, e pouco depois adormece profundamente.      

     À sua volta dançaram as ninfas e Pã tocava na sua flauta de cana. Tudo em redor era harmonia, paz.

 

     Era quase madrugada quando Lina acorda sobressaltada. Olha em seu redor e vê penedos, arbustos, pinheiros, eucaliptos, um pequeno regato. Ela afinal conhecia aquele sítio – não estava num bosque encantado, mas sim no monte. Fora uma visão, um sonho, talvez um pesadelo. Mas não se lembrava de ter caminhado! Como chegara ali sem dar conta disso? «Alguma coisa estranha se passou» - diz entredentes.

     Agora precisava de arranjar comida. Água não faltava, felizmente: existiam nascentes um pouco por todo o lado e também se podia beber a água dos ribeiros e regatos, ou pequenos rios, que vinham da serra. Ainda não se falava em poluição. Experiência já a possuía da evasão anterior. Teria de construir um pequeno abrigo ou encontrar uma gruta, a fim de se defender do frio mas também de alguma fera, sobretudo do lobo, que por ali andasse à procura de alimento.