segunda-feira, 25 de maio de 2020

MELGAÇO: Padres, Monges e Frades
 
Por Joaquim A. Rocha
 
desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues


continuação...

CLAMORES – Várias pessoas, com um padre a guiá-las, cumprindo um voto coletivo, dirigiam-se a uma capela, a um cruzeiro, etc., em altos gritos, agradecendo à divindade por os ter livrado de uma peste, de uma seca, etc. Andavam quilómetros a pé! / Parece que os primeiros clamores surgiram no século XVI. Com o tempo, essas manifestações foram rareando, até se tornarem obsoletas. // A 21/5/1934, segunda-feira do Espírito Santo, a 17/5/1937, e em 1942, o clamor de Riba de Mouro veio em romagem à Senhora da Orada; em 1942 acompanhado de um grupo de escutas, que fizeram, durante a missa, a competente guarda de honra (ver NM 233, de 27/5/1934, e NM 587, de 31/5/1942). // A 2/6/1952, ainda o padre Manuel António Bernardo “Pintor” trouxe o dito clamor de Riba de Mouro à Senhora da Orada (ver “Padre Júlio Vaz Apresenta Mário”, p.p. 19 a 23).

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 907, de 7/8/1949, um artigo escrito por António Augusto Gonçalves Ribeiro: «Recordações de Melgaço. Capítulo XXI. Os Clamores da Ascensão. Em tempos distantes, segundo reza a tradição popular, a atual terra melgacense foi invadida por uma terrível epidemia pestífera, que derrotou a descendência de muitas famílias e fez graves transtornos noutras. Os eclesiásticos, aproveitando esta triste e aflitiva situação concelhia, procuraram exortar os fiéis a aproximarem-se mais do omnipotente, de maneira que passados poucos anos, e sendo-lhe sempre [relembrada] aquela horrível data, o povo crente do velho Melgaço, guiado pelos seus pastores, que sempre acompanhavam os seus súbditos, pediu a intercessão da mãe de Deus para casos idênticos, oferecendo ir todos os anos, em penitência, ao santuário de Nossa Senhora da Orada de Fiães, sobranceiro ao [rio] Minho. Sabe-se perfeitamente que a maioria do atual concelho de Inês Negra era coutada pelo mosteiro de Fiães, cujos abades tinham preponderância no norte de Portugal.» Carpinteira, Julho de 1949. /// (*) No texto jornalístico: «remunerada».      

 

   

===============================

 

COISAS DA HISTÓRIA

As Nossas Paróquias

 

     «A origem das nossas paróquias remonta aos primeiros séculos do cristianismo. No século IV principiaram a germinar as primeiras paróquias, organizadas pela pregação evangélica, cuja ação evangelizadora se estendia até às povoações rurais. No concílio de Lugo, convocado no ano de 569, foram atribuídas ao arcebispado de Braga aproximadamente trinta paróquias. A invasão muçulmana veio no século VIII interromper esta organização católica e social, concentrando a vida da época dentro de curtos limites; o amor da independência e a crença religiosa, duas molas sobre as quais girava a sociedade constituída pelos sucessos de Pelágio, primeira [sede] da reconquista peninsular. As lutas então travadas pelos cristãos que haviam escapado à destruição do império gótico nas Espanhas fizeram dividir o solo reconquistado em pequenos senhorios, defendidos pelo castelo (ou casa forte) a par do qual era edificada uma igreja ou um mosteiro. A crença religiosa, não menos do que o amor da independência, influiu na organização das nossas paróquias, estendendo a sua ação desde a pequena igreja de Covadonga até à ampla igreja estilo renascença, edificada no último quartel do século XVIII. Algumas devem a sua origem à fundação de mosteiros, assim como as freguesias de Fiães e Paderne, deste concelho (*), enquanto outras trazem a sua origem de simples capelas ou oratórios. Estas capelas, ou oratórios, umas eram curatos de mosteiros, e pelo qual eram sujeitas ao clero regular; outras eram sujeitas às igrejas de primeira categoria, que recebiam os rendimentos, fazendo-se substituir por um cura, ou vigário, a quem davam uma parca remuneração. Nesta situação, encontramos, a partir do século XIII, uma grande parte das freguesias que hoje fazem parte do concelho de Melgaço; entre elas a freguesia de Alvaredo, Cousso, Cubalhão, Gave, Parada do Monte, Prado e Remoães, freguesias que no século XIII e seguintes viveram escravizadas, ou anexas, às igrejas de primeira categoria. Assim, Alvaredo, curato anual do mosteiro de São Fins, onde o cura, com o título de vigário, tinha para sua sustentação oito mil réis de côngrua e o pé d’altar, rendendo para os religiosos do mosteiro cento e vinte mil réis! Cousso, simples curato do mosteiro do Salvador de Paderne, com um cura anual, que recebia seis mil réis em dinheiro, pagos pelo prior do mosteiro, e dois mil réis da comenda de São Pedro de Riba do Mouro, por este lhe curar um lugar da sua freguesia, que hoje pertence à freguesia de Cousso. Cubalhão também era um curato do mesmo mosteiro, cujo cura anual tinha como sua remuneração as benesses da igreja, enquanto os religiosos tinham para si os dízimos. Gave, freguesia anexa a Riba de Mouro, tendo o cura como remuneração as benesses da igreja, e cinco mil réis em dinheiro, pagos pelo reitor de Riba do Mouro, ficando os dízimos para a comenda desta freguesia. Parada do Monte, também uma filial da igreja de Riba de Mouro, onde o cura, com o título de vigário, recebia cinco mil réis e o pé d’altar para sua sustentação, pagos pelo reitor de Riba de Mouro, ficando este com os restantes rendimentos. Prado e Remoães, duas freguesias também anexas - ou subalternas - à igreja de São Paio, onde os seus curas, com o título de vigários, tinham como remuneração do seu trabalho oito mil réis de côngrua e o pé d’altar. Quanto aos restantes rendimentos, eram divididos em quatro partes, sendo uma para o abade de São Paio, outra – chamada renda do castelo, ou da Casa de Bragança – ficando as duas restantes para a Mesa Arquiepiscopal. As freguesias assim constituídas viviam, se isto era viver, em um estado muito inferior; não só pela sujeição, como também pela parca remuneração, só conseguindo com curas, eclesiásticos menos ilustrados e menos competentes. Estas anexações foram suprimidas, a partir do século XVI, ficando como recordação àquelas igrejas que as dominaram, o direito de apresentação, surgindo uma nova esfera de luz para estas freguesias assim constituídas.» // Afonso. = Notícias de Melgaço n.º 855, de 25/04/1948, página 4. /// (*) Fiães e Paderne só passaram a ser freguesias de Melgaço depois de 1834.

 

*

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1009, de 20/1/1952, página 2: «FESTA DOS MARROQUINOS. Realizou-se no dia 16 de Janeiro de 1952 a tradicional festa do rei Mirabolim e dos frades de Marrocos. Não vamos agora descrever a festa ou o martírio dos fradinhos, mas aproveitar a ocasião para dizer aos nossos leitores como a festa era apreciada em 1896 no meio melgacense. Para isso, transcrevemos dum velho Jornal de Melgaço esta carta: - “Amigo Zé, estou maravilhado com a tua carta, vejo que tens estudado com atenção as belezas naturais do nosso solo, e penitencio-me pela loucura que cometi de andar por montes e vales, mares e rios, florestas e desertos, em procura das tão apregoadas maravilhas. Hoje confesso-te que efetivamente dentro das vossas velhas muralhas existem preciosíssimas variedades. Ainda tu não te lembraste da festa mais brilhante que talvez se realize em todo o nosso Portugal; essa festa em que figura o rei Mirabolim e os mártires de Marrocos. Sim, quero-me referir à festa de Paderne, essa beleza cujas figuras deviam todas ser encerradas numa masmorra e presos de pés e mãos, tendo por alimentação apenas pão e água, pois que só assim deixariam de desempenhar papeis que são um verdadeiro escárnio da religião que professamos. De há muito que os prelados que têm estado à frente do nosso arcebispado proibiram essas cenas burlescas nas procissões religiosas, porém vejo que a Paderne ainda não chegou a tal proibição. Bom será que o muito digno pároco daquela freguesia suprima de tal festa o célebre rei, os mártires de cabeça pintada a capricho, os penitentes de espada e outros figurões que tais. Tu mandas-me para a Peneda; pois para castigo achava mais justo que me obrigasses a desempenhar qualquer papel na trágica comédia de Paderne. Seria maior castigo para mim o desempenhar um papel puramente ridículo na borga padernense, do que ir descalço à romaria de Nossa Senhora da Peneda. Mas já que foste tão benigno, aceito a penitência e lá irei na época competente. // Larangeira
 


desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues
 

        As festas de Melgaço de 1966 (29, 30, e 31 de Julho) decorreram como foram planeadas, quase perfeitas, mas algo aconteceu que as perturbou. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1606, de 14/8/1966: «Um senão veio empanar o brilho das nossas festas e desgostar profundamente a briosa comissão de rapazes que com tanto bairrismo e não menor sacrifício as levou a efeito. Foi a proibição dos actos religiosos: - missa solene com sermão e a procissão.» // O que teria acontecido para a igreja católica tomar essa decisão?

 

*

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1608, de 11/9/1966: «Virgem peregrina em Melgaço. Apoteoticamente recebida, chegou a Melgaço no passado dia 21 do mês findo, a virgem peregrina, Nossa Senhora de Fátima. Recebida entusiasticamente em Penso, aí começou a sua triunfal visita ao nosso concelho. Acompanhada por numerosas viaturas, rodou a meritíssima virgem até à sede do concelho, por entre os mais entusiásticos aplausos, símbolos da mais pura fé na virgem peregrina. Em Prado formou-se uma numerosa procissão, que precedendo a virgem, o povo orava e lhe cantava louvores. Entardecia quando Ela chegou bem ao coração do nosso concelho, o Largo Hermenegildo Solheiro, onde o senhor presidente da Câmara (Manuel José Rodrigues), usando aquele estilo a que nos habituou, proferiu uma brilhante ação de boas vindas. Seguidamente usou da palavra Sua Ex.ª Rev.ª o senhor bispo auxiliar, que focou em especial a simbólica data de 13/5/1917. Durante os quinze dias que a Senhora permaneceu entre nós, visitou a maior parte das freguesias (…) e em todas elas foi recebida da melhor maneira, como competia a tal visita. Muitas foram as freguesias que se deslocaram à nossa igreja matriz para prestarem as suas homenagens à excelsa rainha dos portugueses, destacando-se entre elas as freguesias de Castro Laboreiro, Parada do Monte, Gave, Cousso e São Paio, que – em luzidas procissões e manifestações de verdadeira fé – entoavam cânticos de louvor, ajoelhando a seus pés, pediam à Senhora as bênçãos do céu. No último dia da sua despedida, para Valença, quatro do corrente, logo de manhã começou a ver-se nesta vila desusado movimento. Na igreja matriz realizavam-se as cerimónias do (…), onde numerosas crianças se abeiraram da sagrada mesa fazendo a sua comunhão solene. Às quatro horas da tarde, na Praça da República e na (…) tribuna, previamente preparada para o efeito, era celebrada a santa missa pelo senhor arcipreste do concelho (padre Justino Domingues), que no momento próprio proferiu uma brilhante homilia. O povo do nosso concelho acorreu em massa com os seus estandartes e bandeiras, para assistir à despedida da Virgem de Fátima. Era um mar de gente! No final, o senhor presidente da Câmara fez a consagração do concelho à santíssima virgem, seguindo-se-lhe Sua Ex.ª Rev.ª o senhor arcebispo primaz, que agradeceu tão grandiosa manifestação de fé, dando no final a sua bênção especial ao povo do nosso concelho. Eram já quase seis horas da tarde quando a virgem peregrina seguiu em um luxuoso automóvel, ricamente preparado, até ao Largo da Calçada, onde o povo comovidamente lhe dirigiu o adeus à virgem, vendo-se milhares de lenços brancos a acenarem, dando um efeito surpreendente e raras vezes visto entre nós. E lá se foi a Senhora de abalada até Valença, acompanhada por um luzido cortejo de automóveis, terminando a sua estadia em Melgaço. Assistimos às mais frementes demonstrações de fé, às bonitas procissões diurnas e às belíssimas procissões de velas, tudo empolgado pela mesma mística de fé, a que tantas vezes temos assistido em Fátima. E, caros leitores, pena tenho que a minha caneta não esteja à altura de vos descrever tudo aquilo que foi a estadia de tão ilustre visitante entre nós, mas pondo os olhos na bela imagem da virgem peregrina, oro: Nossa Senhora do Rosário de Fátima, Salvai-nos e salvai Portugal.» // Hugo Daniel.            

 

    Comentário: desconheço completamente o autor do texto; a sua linguagem exaltada, a sua descrição do acontecimento, dá-nos a entender que de algum modo estava ligado à igreja católica, talvez fosse seminarista. Em 1966 quase todos os jovens rapazes melgacenses estavam no estrangeiro ou na guerra colonial; as raparigas, a partir dos quinze, dezasseis anos, tinham casado e estavam com os seus maridos em França, Suíça, Alemanha, etc. Apenas ficaram em Melgaço algumas estudantes. Por isso, a maior parte do povo de que fala o autor é idoso e com pouca ou nenhuma instrução. Daí, aderirem com facilidade e emoção à visita da santa. A população, devido sobretudo à guerra em África, andava assustada; todos os dias havia feridos e mortos e, embora a censura não deixasse passar essas horríveis notícias, alguma coisa se sabia graças aos jornalistas estrangeiros e a portugueses residentes por essa Europa fora. Enfim, cada cronista escreve de acordo com a sua visão do mundo e sobretudo de acordo com os seus interesses.   

 

*

     Em Chaviães o padre, ou alguém muito religioso, pediu a uma criança que lesse um texto por si escrito. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1609, de 18/9/1966: «No dia 31 do mês findo, pelas 15 horas, no extremo da freguesia com a de Paços, foi entregue por esta a veneranda imagem de Nossa Senhora de Fátima, que veio em procissão até à igreja paroquial. (…) Por uma das meninas da catequese foi feita a seguinte saudação: Eu te saúdo, ó Nossa Senhora, em nome de todo o povo desta freguesia, que tão feliz se sente por a teres honrado com a tua divina visita. São horas de amor sublime, estes que vivemos enquanto te temos entre nós. Os nossos corações exultam de alegria, as nossas almas fremitam (*) de fé e esperança em ti. Tendo-te no nosso meio, sentindo-te mais perto de nós, ousamos dirigir-te, aliadas às nossas preces, as nossas humildes súplicas. Pedimos-te, ó mãe caríssima, que abençoes a nossa freguesia, os nossos lares, as nossas famílias, os nossos velhinhos, as nossas criancinhas. E porque sabemos que jamais esqueces os teus filhos, pedimos-te também pelos nossos ausentes, que nesta hora tão bela não podem venerar-te. Uns, longe, em terras estranhas, lutam por uma vida melhor – são os nossos emigrantes. Outros, também longe (embora em solo pátrio), defendem pedaços dispersos deste Portugal – são os soldados. O teu coração é grande, a tua bondade infinita. Lança pois o teu doce e misericordioso olhar sobre as nossas necessidades e misérias. Não só as materiais, mas, em especial, as morais. Essas que são o flagelo da humanidade. Que a bondade do teu coração toque os corações duros. Que a pureza da tua alma dê luz aos olhos cegos das almas que não querem ver a verdade. Que o teu amor, numa palavra, torne o mundo melhor e mais são.» /// (*) Quis dizer «fremem». O verbo “fremitar” não existe em português.

 

     Comentário. Eu penso que é imoral o que os membros da igreja católica pediram a essa menina. Será que a criança, com a 3.ª ou 4.ª classe da instrução primária, compreendia aquilo que estava a ler? Usaram-na, certamente com o consentimento dos pais, a fim de representar a farsa da pureza, da inocência. As palavras e os conceitos utilizados são demasiado eruditos para uma miúda que mal saberá ler e escrever. «Os nossos corações exultam de alegria»! Esta frase encaixava-se lindamente numa peça de teatro, assistindo, numa sala quase cheia, gente instruída, habituada a esse tipo de espetáculos. // «As nossas almas fremem de fé e esperança em ti.» O verbo fremir utiliza-se raramente. Todos os escritores o evitam, por causa da sua difícil conjugação. No entanto, uma jovenzita de onze ou doze anos de idade, nascida numa freguesia rural, sente-se à vontade para o utilizar! // «Lança, pois, o teu doce e misericordioso olhar sobre as nossas necessidades e misérias.» Quer dizer: uma das missões da santa era levar a riqueza e o bem-estar às famílias pobres! // A emigração, a guerra colonial, e outros males, a acreditarmos no poder dos santos e dos deuses, podiam ser evitados. Afinal de contas, alguns seres humanos têm mais poder do que os seres divinos: fazem a guerra, exploram até à exaustão os mais fracos, escravizam a mente dos mais frágeis. E os deuses consentem?         

 

*

 

     Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1610, de 25/9/1966: «Não falto à verdade se afirmar aqui de que não morro de amores por tomar parte nas grandes aglomerações. Todavia, sinto certa paixão por estar em contacto com tudo aquilo que se vai passando pelo mundo, sejam os acontecimentos grandes ou pequenos, o que hoje é facílimo pelo que de bom e útil se faculta, não só a imprensa como ainda a rádio e a televisão. Porque assim é, justifica-se a razão da minha presença na noite de 3 de Setembro corrente, no vão da minha janela, local cómodo e nada mais propício para plena satisfação dos meus desejos e atingir os fins que tenho em vista. Frente a mim, e a poucos metros de distância, fica-me a ponte de São Lourenço, e é precisamente nesse local, que – segundo me consta – se vai dar um importante acontecimento, pela grande solenidade de que o mesmo se reveste: a entrada da imagem da virgem peregrina de Fátima, vinda da vizinha freguesia de Paderne, para ser recebida e entregue ao povo da freguesia da vila, que em luzida procissão de velas a havia de conduzir – e finalmente conduziu – para a sua igreja matriz, sede do concelho. Infelizmente tal não aconteceu. Seriam umas dezanove horas e trinta minutos quando, vinda dos lados de Paderne, chegou ao Cruzeiro da Serra, em Prado, centro desta freguesia, e ponto obrigatório de passagem, a veneranda imagem da rainha da paz. Acompanha-a muito povo, tanto quantas luzinhas a alumiam, o que dá especial realce à luzida e bem organizada procissão. Como não podia deixar de ser, a esta preside e orienta o reverendo prior daquela freguesia de Paderne, padre Albertino, que aproveita uma curta paragem no local, a que acima me refiro, para em breves, mas eloquentes palavras, que aliás lhe são peculiares, saudar o povo desta freguesia de Prado, que ali se encontrava reunido para – na sua maior parte – acompanhar a sua veneranda peregrina de Fátima até ao local do seu destino. Do vão da minha janela posso assistir, embora silencioso, mas bastante comovido, a todo este ato de tão solene liturgia. Aguardo com prazer, e até com certa ansiedade, o momento que está para breve, de chegar aos meus ouvidos os cânticos de louvor à virgem, ver os lencinhos brancos sacudidos pelo vento, num adeus à imaculada, por aqueles que até ali a conduziam e as palavras de agradecimento por aqueles que alegremente a vão receber e conduzir, tomando-a à sua guarda para a solene adoração. Reparo para os lados da vila de Melgaço, percurso que facilmente posso descortinar, e vejo que dezenas e dezenas de luzinhas se movimentam estrada fora em direção ao local determinado para o encontro. É com mágoa que verifico que tal não acontece, pois a imagem da rainha da paz é levada e ultrapassa o referido local, mas como o encontro está para breve, pois apenas uma escassa dezena de metros os separa e os ventos correm de feição, sem desânimo aguardo no mesmo local o momento em que hão de chegar aos meus ouvidos as palavras do cerimonial a que acima faço referência. Mas, ó surpresa das surpresas! Para não dizer escândalo dos escândalos! O que momentos antes eram cânticos de louvor à rainha da paz, eram agora insultos, blasfémias, e até possivelmente calúnias. Era inacreditável o que se estava passando e, como São Tomé, ver para crer; a passo firme, dirijo-me para o local. O que se me depara era arrepiante e comovedor. A imagem da imaculada de Fátima jaz na berma da estrada, desprezada como qualquer mercadoria sem valor. À sua volta, em substituição dos cânticos de louvor à virgem, pedindo conceda a paz para os homens na terra e dando graças a Deus nas alturas, embora por outras palavras, ouvem-se os cânticos populares do “meu verdinho, meu verdinho…” e faz-se ainda mais, um autêntico tendal (ou estendal) de roupa suja. A Guarda Nacional Republicana é chamada de emergência para manter a ordem e fazer com que se restabeleça o devido respeito. Finalmente, e porque após a tempestade vem a bonança, graças à decisão do reverendo padre Justino Domingues, pároco da Vila, que cônscio de que quanto mais alto se sobe na instrução e mais elevados são os cargos que se oferecem na vida pública, maior é também a responsabilidade que se tem nos bons exemplos a dar. A imagem da virgem é levantada do chão e levada aos ombros de homens caridosos que a transportam até ao local do seu destino. Centenas e centenas de luzinhas acompanham-na, para no dia seguinte, e com a presença de Sua Ex.ª Reverendíssima, o senhor Arcebispo Primaz de Braga, receber o adeus à virgem de algumas milhares de pessoas que, ao sabor do vento, sacudiam no ar outros tantos lencinhos brancos. O que aqui fica dito, e se passou de desagradável, não o faço por prazer, e isto porque sou melgacense e ninguém com verdade poderá dizer que podia servir para escrever mais uma página de glória na civilização cristã, que há dois mil anos se está vivendo, e tal como a herdamos dos nossos antepassados, sem mácula e sem manchas, é nossa obrigação legá-la aos nossos vindouros. Está longe, mesmo muito longe de mim, atribuir aqui responsabilidades a quem quer que seja, e ainda muito menos ferir suscetibilidades pessoais. Todavia, quem se sentir magoado que reze credos, muitos credos, para muitas vezes bater com a mão no peito, e como a misericórdia de Deus é infinita, podem contar com o seu perdão, porque «dos arrependidos e ignorantes é o reino dos céus.» // Prado, 10/8/1966. José Lopes Pinheiro (1910-1988).          

 

Comentário: a leitura deste texto deixa-nos perplexos. O povo de Melgaço, tão crente, tão devoto da Virgem Maria, pratica um ato tão sem jeito, como dizem os brasileiros. Claro que este episódio tem uma explicação. Aqueles homens que carregaram às costas com a imagem da santa até Prado, uns bons quilómetros, esperavam que os da Vila os aguardassem para os substituir no trajeto Prado-Vila, sede do concelho. No entanto, os da Vila não apareceram, daí as palavras grosseiras, e as cantigas populares. E haverá algum motivo para os Vila não comparecerem? Eles que durante anos carregaram com os pesadíssimos andores, nas festas anuais: Orada, Carvalhiças, etc. É óbvio que não apareceram porque já não estavam em Melgaço. Devido sobretudo à guerra colonial os jovens fugiram para o estrangeiro, pois não quiseram correr o risco de serem mortos ou feridos em África. Era fácil para Salazar mandar para esse continente os filhos dos outros, pois ele não os tinha. Aqueles que ficaram na Vila eram os meninos da mamã, já livres do serviço militar, que muitos deles não cumpriram, não estavam habituados a trabalhos pesados. Lembro-me de alguns, mas é melhor não mencionar nomes. Uma pergunta que se deve fazer é a seguinte: e os padres mais jovens, entre os vinte e os cinquenta anos, possantes, porque não carregavam eles com a imagem? A igreja católica também podia, ou pode, pedir aos seminaristas, com idade superior a dezoito anos, para fazerem esse trabalho. A alternativa é pagarem. À virgem Maria provavelmente agradava essa disponibilidade dos seminaristas ou padres. Antigamente os frades fartavam-se de trabalhar nas obras, nas hortas, etc. //  continua...                

Sem comentários:

Enviar um comentário