LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXXVII
O regresso às origens por ínvios processos
Perante esta comovente cena, os vossos olhos encher-se-ão com certeza de muitas lágrimas: dois filhos, dois pais, um avô e um neto, num abraço de encontro e de separação. A vida é feita de encontros e desencontros, de alegria e de tristeza, de atos nobres e de atos vis. Mas será melhor ver:
- Avô Agostinho, aqui
tem o seu filho.
- Meu querido Olavo,
que saudades; estava a ver que nunca mais te via.
- Que é isso, meu pai;
sabe como é a vida, muito trabalho, o tempo vai passando… Minha mãe morreu!
- Deixou-nos a pensar
em ti; mesmo com febre, a delirar, só falava no seu menino, que nunca mais o
veria, nunca mais o estreitaria nos braços, nem lhe cantaria cantigas de
embalar.
- Adorada mãe; e eu,
tão perto, não a vim ver, não lhe fechei os olhos na hora derradeira!
- Não sintas remorsos;
a vida dos pobres não permite sentimentos nobres, o mais certo era nem teres
dinheiro para as viagens.
- As pesetas sempre
foram escassas, fogem de mim como o diabo da cruz, isso é verdade, a vida em
Espanha não tem sido fácil, a guerra civil destruiu tudo, felizmente agora as
coisas estão a melhorar, nossos filhos já irão certamente beneficiar desse
progresso, mas para nós será sempre ruim, já é demasiado tarde. Você teve muita
sorte em vir para casa deste jovem, pelo que me disse ele gosta muito de si.
- Tem-me tratado tão
bem, e nós todos tanto mal lhe fizemos a ele, ao irmão, e a sua mãe.
- Nós?!
- Sim, nós; olha para
ele. Com quem se assemelha?
- Com o meu filho
Agostinho, mas porquê?
- Sabes como se chama a
mãe?
- Não, ele não me quis
revelar o seu nome.
- Matilde. Não te diz
nada esse nome?
- Matilde?
- Sim, a mulher a quem
fizeste dois filhos!
- O Cândido é…
- Sim, o jovem que tens
na tua frente é meu neto.
- E meu filho! Cândido,
perdoas-me?
- Somente Deus lhe
poderá perdoar todo o mal que nos fez; eu não posso, não possuo poderes para
tal. Leve seu pai para casa, trate-o bem, e Nosso Senhor levará isso em conta.
- E tua mãe, que é
feito dela?
- A minha mãe anda
pelas aldeias, ajudando aqui e ali, bebendo, bebendo sem parar, agora ela é um
autêntico farrapo humano.
- E sou eu o culpado!
Jamais imaginei que vos tivesse prejudicado tanto.
- É o destino; se não fosse
você teria sido outro. A minha mãe nunca teve juízo. O táxi já está à vossa
espera. Avô: espero ainda voltar a vê-lo, quando puder vou visitá-lo.
- Lá te espero, meu
bondoso neto; tu comigo já vais no coração, nunca te esquecerei.
- Despachem-se, que o
motorista está impaciente. Adeus, e pela minha parte estão ambos desculpados; o
tempo sarará todas as feridas.
- Adeus meu filho, a
Clara vai gostar de saber que tu és seu irmão, tanto chorou quanto
partiste!
- Dê-lhes por mim um
grande abraço e diga-lhes que quando me for possível os visitarei.
- Meu neto, dá por mim
um abraço a tua mãe, que desculpe todos os incómodos que lhe causei, eu vou
pedir ao Senhor por ela, pode ser que se emende.
- Adeus avô; faça por
viver muitos anos.
XXXVIII
Com
palavras também se constrói o futuro
Eu e o meu irmão continuámos a falar das
nossas vidas, dos nossos êxitos e dos nossos fracassos, do nosso futuro, dos
nossos segredos. Sejam, peço-vos por favor, um nadinha coscuvilheiros:
- Então tu, tropa resolvida, vais ficar aqui na terra ou partes novamente para Lisboa?
- Nos primeiros tempos
fico por aqui, depois logo verei.
- Ficas a morar aqui em
casa?
- Só até arranjar
emprego; parece que o senhor Crespo, solicitador, precisa de um ajudante, vou
falar com ele.
- Tu aqui, e eu a
caminho da maldita farda; se ao menos tivesse a tua sorte.
- Bem podes chamar-lhe
sorte; a taluda! Mobilizado para Angola e um parvalhão dum camarada, vê lá tu –
só lhe paguei umas cervejas, quis ir no meu lugar! Parvalhão!
- Ainda o insultas!
- Então não achas que
foi parvo? Livrava-se da guerra e assim…
- Queria ser herói!
- Bom proveito, eu é
que me safei.
- Eu não me safo, o
azar tem-me acompanhado sempre.
- Deixa de ser
pessimista, na tua idade…
- Achas que tenho
razões para ser otimista, achas?
- Também não exageres.
- Sem pai, uma mãe
assim, aturar um bruxo durante dois anos, roubam-me a noiva (e dizia-se o Artur o
teu melhor amigo), não arranjo dinheiro para o passador, agora
vou a caminho da mafarrica, daqui a uns meses África, consideras ainda…
- Haverá de chegar o
teu dia de sorte, deixa de ser agoirento; «nem
sempre azar…»
- Isso dizes tu, mas
quando se nasce malfadado…
- Então tiveste aqui,
em casa, um idoso? Conta lá como foi isso?
- O velhote é teu avô
paterno.
- Meu avô?! Ah! Ah!
- Pai do teu pai.
Andava a pedinchar pelas portas e eu meti-o aqui em casa.
- E a mamã, como
reagiu?
- Ela não queria,
barafustou, mas depois lá a convenci; no fundo, no fundo, ela é boa pessoa, tem
bom coração.
- O vício…
- Não há nada a fazer.
O Carlos da farmácia disse-me que existe um medicamento bom para isso, mas que
para certas pessoas pode ser perigoso, até podem ficar doidas!
- Maluca, já ela é; mas
seja como for o melhor é não lho darmos, ficaríamos com remorsos para o resto
da vida caso as coisas não corressem bem.
- Não te contaram mais
nada?
- Não, qual é a
novidade?
- Falei com o teu pai.
- Com o meu pai?
- Teu e meu; veio aqui
buscar o avô Agostinho.
- Veio aqui a nossa
casa?!
- Fui à procura dele, o
velho não queria entrar para o asilo e então resolvi ir eu ao Porrinho…
- Bem me disseram que
ele morava para esses lados.
- E sabes que tens mais
quatro irmãos? Dois rapazes e duas raparigas.
- Galegos!
- Galegos, mas
bonzinhos. Simpatizaram comigo.
- E tu com eles;
está-se mesmo a ver.
- Estás com ciúmes;
escusas de ter; tu serás sempre o meu irmão preferido.
- E o tipo, pelos vistos,
levou o velhote.
- Eles trabalham nuns
terrenos de um abastado lavrador; ainda são uns bons quilómetros da vila de
Porrinho.
- Falaram em mim?
- Claro; disseram que
gostavam de te conhecer.
- Se quisessem…
- Isso são águas
passadas, e essas não movem moinhos; não nos podemos alimentar só de
recordações. Um dia vamos lá fazer-lhes uma visita.
- E a tua mãe?
Encontrou-se com ele?
- Não; a mamã andava
pelas aldeias, agora nunca para em casa.
- E quem cozinha para
ti?!
- Sou eu; cozo umas
batatas, faço um arroz, fritos uns ovos com chouriço, enfim, cá me vou
arranjando. Aos domingos ela fica em casa. Assim posso estar a engraxar sapatos
até perto da uma hora da tarde. Sempre ganho mais qualquer coisa.
- Então nesse caso
tenho de ir comer à pensão.
- Se quiseres eu também
cozinho para ti. Não sei fazer petiscos, mas mesmo assim talvez seja melhor do
que no restaurante.
- Agradeço-te, mas
prefiro comer na pensão; tu também podias lá comer, ajustava-se um preço.
- Quando regressar da
tropa. Faltam apenas uns dias para eu ir…
- Como o tempo passa!
Parece que foi ontem que enverguei a cinzenta e já passaram três anos!
- Vens tu, vou eu!
- Um garoto; eras uma
criança há três anos; nem barba tinhas na cara!
- Ainda hoje tenho
pouca.
- Eu, aos treze anos…
- Qualquer dia arranjas
uma moça para te casares.
- Ouvi dizer que os
emigrantes as levam todas!
- É verdade; até
raparigas com quinze ou dezasseis anos lhes têm servido!
- Tão novas! E os seus
pais consentem?
- O que eles querem é
ver-se livres delas; é menos uma boca para alimentar, a lavoura cada vez é mais
ingrata.
- É por isso que eu lhe
fugi; a tua mãe bem queria que eu fosse cavador.
- Fizeste bem; ser
empregado de escritório é bem melhor.
- Não se ganha muito,
mas pelo menos anda-se limpo.
- Eu também já ia
ganhando uns dinheirinhos, deixei de engraxar nas feiras, aos domingos abro
aqui a porta, só de manhã, juntei cinco contos, bom jeito me vão dar. Se
precisares…
- Obrigado, não é
necessário; como era 1.º cabo radiotelegrafista tinha um ordenado mensal,
embora pequeno, não se comia mal no Entroncamento, por isso fui poupando.
- Em Lisboa não
conseguiste juntar nenhum!
- Na capital é chapa
ganha, chapa gasta; quanto mais se tem mais se esbanja.
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