quarta-feira, 6 de maio de 2020

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha






XXXVII

 
O regresso às origens por ínvios processos

  
     Perante esta comovente cena, os vossos olhos encher-se-ão com certeza de muitas lágrimas: dois filhos, dois pais, um avô e um neto, num abraço de encontro e de separação. A vida é feita de encontros e desencontros, de alegria e de tristeza, de atos nobres e de atos vis. Mas será melhor ver:

 



- Avô Agostinho, aqui tem o seu filho.

- Meu querido Olavo, que saudades; estava a ver que nunca mais te via.

- Que é isso, meu pai; sabe como é a vida, muito trabalho, o tempo vai passando… Minha mãe morreu!

- Deixou-nos a pensar em ti; mesmo com febre, a delirar, só falava no seu menino, que nunca mais o veria, nunca mais o estreitaria nos braços, nem lhe cantaria cantigas de embalar.

- Adorada mãe; e eu, tão perto, não a vim ver, não lhe fechei os olhos na hora derradeira!

- Não sintas remorsos; a vida dos pobres não permite sentimentos nobres, o mais certo era nem teres dinheiro para as viagens.

- As pesetas sempre foram escassas, fogem de mim como o diabo da cruz, isso é verdade, a vida em Espanha não tem sido fácil, a guerra civil destruiu tudo, felizmente agora as coisas estão a melhorar, nossos filhos já irão certamente beneficiar desse progresso, mas para nós será sempre ruim, já é demasiado tarde. Você teve muita sorte em vir para casa deste jovem, pelo que me disse ele gosta muito de si.

- Tem-me tratado tão bem, e nós todos tanto mal lhe fizemos a ele, ao irmão, e a sua mãe.

- Nós?!

- Sim, nós; olha para ele. Com quem se assemelha?

- Com o meu filho Agostinho, mas porquê?

- Sabes como se chama a mãe?

- Não, ele não me quis revelar o seu nome.

- Matilde. Não te diz nada esse nome?

- Matilde?

- Sim, a mulher a quem fizeste dois filhos!

- O Cândido é…

- Sim, o jovem que tens na tua frente é meu neto.

- E meu filho! Cândido, perdoas-me?

- Somente Deus lhe poderá perdoar todo o mal que nos fez; eu não posso, não possuo poderes para tal. Leve seu pai para casa, trate-o bem, e Nosso Senhor levará isso em conta.

- E tua mãe, que é feito dela?

- A minha mãe anda pelas aldeias, ajudando aqui e ali, bebendo, bebendo sem parar, agora ela é um autêntico farrapo humano.

- E sou eu o culpado! Jamais imaginei que vos tivesse prejudicado tanto.

- É o destino; se não fosse você teria sido outro. A minha mãe nunca teve juízo. O táxi já está à vossa espera. Avô: espero ainda voltar a vê-lo, quando puder vou visitá-lo.

- Lá te espero, meu bondoso neto; tu comigo já vais no coração, nunca te esquecerei.

- Despachem-se, que o motorista está impaciente. Adeus, e pela minha parte estão ambos desculpados; o tempo sarará todas as feridas.

- Adeus meu filho, a Clara vai gostar de saber que tu és seu irmão, tanto chorou quanto partiste! 

- Dê-lhes por mim um grande abraço e diga-lhes que quando me for possível os visitarei.

- Meu neto, dá por mim um abraço a tua mãe, que desculpe todos os incómodos que lhe causei, eu vou pedir ao Senhor por ela, pode ser que se emende.

- Adeus avô; faça por viver muitos anos. 

 

 
 



 
XXXVIII
 
 






Com palavras também se constrói o futuro

  

     Eu e o meu irmão continuámos a falar das nossas vidas, dos nossos êxitos e dos nossos fracassos, do nosso futuro, dos nossos segredos. Sejam, peço-vos por favor, um nadinha coscuvilheiros:

  
- Então tu, tropa resolvida, vais ficar aqui na terra ou partes novamente para Lisboa?


- Nos primeiros tempos fico por aqui, depois logo verei.

- Ficas a morar aqui em casa?

- Só até arranjar emprego; parece que o senhor Crespo, solicitador, precisa de um ajudante, vou falar com ele.

- Tu aqui, e eu a caminho da maldita farda; se ao menos tivesse a tua sorte.

- Bem podes chamar-lhe sorte; a taluda! Mobilizado para Angola e um parvalhão dum camarada, vê lá tu – só lhe paguei umas cervejas, quis ir no meu lugar! Parvalhão!

- Ainda o insultas!

- Então não achas que foi parvo? Livrava-se da guerra e assim…

- Queria ser herói!

- Bom proveito, eu é que me safei.

- Eu não me safo, o azar tem-me acompanhado sempre.

- Deixa de ser pessimista, na tua idade…

- Achas que tenho razões para ser otimista, achas?

- Também não exageres.

- Sem pai, uma mãe assim, aturar um bruxo durante dois anos, roubam-me a noiva (e dizia-se o Artur o teu melhor amigo), não arranjo dinheiro para o passador, agora vou a caminho da mafarrica, daqui a uns meses África, consideras ainda…

- Haverá de chegar o teu dia de sorte, deixa de ser agoirento; «nem sempre azar…»

- Isso dizes tu, mas quando se nasce malfadado…

- Então tiveste aqui, em casa, um idoso? Conta lá como foi isso?

- O velhote é teu avô paterno.

- Meu avô?! Ah! Ah!

- Pai do teu pai. Andava a pedinchar pelas portas e eu meti-o aqui em casa.

- E a mamã, como reagiu?

- Ela não queria, barafustou, mas depois lá a convenci; no fundo, no fundo, ela é boa pessoa, tem bom coração.

- O vício…

- Não há nada a fazer. O Carlos da farmácia disse-me que existe um medicamento bom para isso, mas que para certas pessoas pode ser perigoso, até podem ficar doidas!

- Maluca, já ela é; mas seja como for o melhor é não lho darmos, ficaríamos com remorsos para o resto da vida caso as coisas não corressem bem.  

- Não te contaram mais nada?

- Não, qual é a novidade?

- Falei com o teu pai.

- Com o meu pai?

- Teu e meu; veio aqui buscar o avô Agostinho.

- Veio aqui a nossa casa?!

- Fui à procura dele, o velho não queria entrar para o asilo e então resolvi ir eu ao Porrinho…

- Bem me disseram que ele morava para esses lados.

- E sabes que tens mais quatro irmãos? Dois rapazes e duas raparigas.

- Galegos!

- Galegos, mas bonzinhos. Simpatizaram comigo.

- E tu com eles; está-se mesmo a ver.

- Estás com ciúmes; escusas de ter; tu serás sempre o meu irmão preferido.

- E o tipo, pelos vistos, levou o velhote.

- Eles trabalham nuns terrenos de um abastado lavrador; ainda são uns bons quilómetros da vila de Porrinho.

- Falaram em mim?

- Claro; disseram que gostavam de te conhecer.

- Se quisessem…

- Isso são águas passadas, e essas não movem moinhos; não nos podemos alimentar só de recordações. Um dia vamos lá fazer-lhes uma visita.

- E a tua mãe? Encontrou-se com ele?

- Não; a mamã andava pelas aldeias, agora nunca para em casa.

- E quem cozinha para ti?!

- Sou eu; cozo umas batatas, faço um arroz, fritos uns ovos com chouriço, enfim, cá me vou arranjando. Aos domingos ela fica em casa. Assim posso estar a engraxar sapatos até perto da uma hora da tarde. Sempre ganho mais qualquer coisa.

- Então nesse caso tenho de ir comer à pensão.

- Se quiseres eu também cozinho para ti. Não sei fazer petiscos, mas mesmo assim talvez seja melhor do que no restaurante.  

- Agradeço-te, mas prefiro comer na pensão; tu também podias lá comer, ajustava-se um preço.

- Quando regressar da tropa. Faltam apenas uns dias para eu ir…

- Como o tempo passa! Parece que foi ontem que enverguei a cinzenta e já passaram três anos!

- Vens tu, vou eu!

- Um garoto; eras uma criança há três anos; nem barba tinhas na cara!

- Ainda hoje tenho pouca.

- Eu, aos treze anos…  

- Qualquer dia arranjas uma moça para te casares.

- Ouvi dizer que os emigrantes as levam todas!

- É verdade; até raparigas com quinze ou dezasseis anos lhes têm servido!

- Tão novas! E os seus pais consentem?

- O que eles querem é ver-se livres delas; é menos uma boca para alimentar, a lavoura cada vez é mais ingrata.

- É por isso que eu lhe fugi; a tua mãe bem queria que eu fosse cavador.

- Fizeste bem; ser empregado de escritório é bem melhor.

- Não se ganha muito, mas pelo menos anda-se limpo.

- Eu também já ia ganhando uns dinheirinhos, deixei de engraxar nas feiras, aos domingos abro aqui a porta, só de manhã, juntei cinco contos, bom jeito me vão dar. Se precisares…

- Obrigado, não é necessário; como era 1.º cabo radiotelegrafista tinha um ordenado mensal, embora pequeno, não se comia mal no Entroncamento, por isso fui poupando.

- Em Lisboa não conseguiste juntar nenhum!

- Na capital é chapa ganha, chapa gasta; quanto mais se tem mais se esbanja.
 
 
 
 

 
 

 


 

 


 
 
 

 

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