segunda-feira, 18 de maio de 2020

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha




EMIGRAÇÃO

 

     No século XIX os melgacenses emigravam para o Brasil, mas a partir de certa altura, e devido a várias crises financeiras, a chamada árvore das patacas quase secou. No século XX, em virtude de duas guerras mundiais, parte da Europa ficou destruída; por isso os países atingidos precisaram de muita mão-de-obra. Os melgacenses, pouco a pouco, emigraram para França e para outros países europeus, mas a partir de 1961, quando começou a guerra colonial em Angola, deu-se quase como uma fuga: a França, a Alemanha, o Luxemburgo, a Suíça, etc., viram-se de repente invadidos por milhares e milhares de portugueses, entre eles os naturais de Melgaço. Desse êxodo resultou a despovoação do concelho, pois de início iam só rapazes, mas depois começam a ir os mais velhos, as mulheres, toda a gente! Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 1468, de 21/4/1963: «a emigração dos melgacenses vem de longa data. Porém, nos últimos anos, assumiu uma gravidade tal que – quando não é total – nas famílias ficam apenas os velhos incapacitados para o trabalho, as mulheres e as crianças. Não é o caso referido de Castro Laboreiro, e a laracha do inspecionando coxo, pois que o castrejo, desde tempos imemoriais, militarmente é um faltoso, fundado talvez nas regalias do seu velho foral. Impele-os a miséria em que vivem na sua terra, nesta terra de insignificantes áreas cultiváveis, encravadas no dorso das montanhas, praticando uma agricultura economicamente deficitária, em que o húmus é fatidicamente arrastado para o mar pelas torrentes, através das linhas de água que alimentam a sua voracidade.» Assina F.S. (Ferreira da Silva?) // 
  Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 77, de 14/9/1930: «OS DRAMAS DA EMIGRAÇÃO. Não tenhamos dúvidas a semelhante respeito: - a emigração deixou de há muito de ser um vício, ou uma mania, para se transformar em uma necessidade nacional. Se assim não fora, os episódios desgraçados em que entram a cada passo aqueles que, seja como for, teimam em trocar o seu país por outro, seriam menos numerosos, tanta influência reconsideradora deviam exercer no ânimo dos que ficam com as misérias, as angústias, os autênticos calvários que surpreendem, na terra do exílio, os que partem. Se se emigrasse apenas por gosto, por espírito de imitação, por amor da aventura, por ambição ou por insofridos desejos de riqueza, é de crer que os infortúnios de uns moderassem os ímpetos de fuga, que acicatam os outros, sem lhes darem tempo a reparar nas tragédias de emigrantes que à sua roda e sob os seus olhos se desenrolam, com uma brutalidade de apavorar. O fenómeno emigrante foi sempre uma consequência, um desdobramento do fenómeno e, às vezes, do fenómeno demográfico. Só emigram em massa, como há uns poucos de anos vem acontecendo em Portugal, os povos que no seu próprio país não encontram aquilo que mais necessário é à sua existência. Só fogem da sua terra, em vagas compactas, aqueles que, querendo viver honradamente do seu trabalho, não logram aplicação remuneradora para a sua atividade, vendo-se por esse motivo forçados a uma pobreza, que por ser injusta, os revolta, dando-lhes coragem para todos os actos extremos. Basta lançar um olhar perscrutador por essa Europa além para se ter a confirmação destas afirmações. Quais são os povos do velho continente que, principalmente, voltam costas aos países em que nasceram? O italiano, o espanhol e o português. Serão esses mesmos povos os mais ricos, os mais civilizados, os mais adiantados e os mais prósperos? Não será heresia desmarcada, dar a esta pergunta resposta negativa. A Itália luta com um excesso de população, que empurra todos os anos para as mais distantes regiões do globo muitos milhares dos seus cidadãos mais válidos. A emigração, para a pátria de Mussolini, não é um capricho. É uma solução imperiosa, exigida pela sua fisionomia demográfica, na qual se vê a natalidade suplantar a mortalidade, com proporções verdadeiramente assombrosas. O italiano tem de abandonar a sua terra por não poder arrumar-se dentro dela. Por sua vez o espanhol segue principalmente para o novo mundo, por lhe faltar o trabalho fácil e remunerador no mundo velho em que nasceu. A miséria já conduz, nos tempos que correm, à resignação. Provoca reações e revolta. Força aqueles que a suportam a lutas sem quartel, destinadas a vence-la. Que importa ao réprobo da fortuna lutar aqui ou além para alcançar, segurando-a pelos cabelos, a deusa volúvel, que enche todos os seus sonhos? Mas, emigrando, o espanhol da Galiza ou das Vascongadas, procura faze-lo com segurança, afastando do seu caminho o maior número possível de percalços, capazes de lhe comprometerem a aventura. E os portugueses? Para qualquer ponto [do mundo] que eles se dirijam, se não o fazem cem por cento ao acaso, pouco menos. Porquê? A que atribuir a facilidade com que a nossa gente do campo se deixa exportar, como se fosse mercadoria com que se transaciona, sem que a lei possa surgir, a contrariar semelhante tráfico? A ignorância deve entrar em grande quantidade no desprendimento com que os rurais de Portugal fogem das regiões em que habitam. Mas, acima dessa ignorância, outra força há a arrastar a gente portuguesa para uma aventura, que só raras vezes acaba bem. Essa força é a da ganância. Quem a maneja? Todos aqueles que exploram o negócio da emigração e à sombra dele enriquecem, quer protegidos pela lei, quer fora das suas disposições. Há em Portugal, legalmente estabelecidos, exportadores de gado humano, como os há de cortiça, de vinhos, ou de suínos. O Estado tributa-os e eles pagam os tributos que lhes exigem. Em tais circunstâncias qual é o interesse desses traficantes inconfundíveis? Arrebanhar quantas mais cabeças melhor. Fazer seguir barra fora, ou pôr do lado de lá da fronteira o maior número possível de desgraçados, a quem previamente devoraram os últimos centavos, provenientes das míseras courelas e dos casebres denegridos, hipotecados ou vendidos de afogadilho. Engajadores e agentes de passagens e passaportes são, por interesse próprio, os incansáveis propangadistas de uma debandada que a continuar, somada com a tuberculose, promoverá, implacavelmente, a ruína deste país, despovoando-o. Não é, porém, apenas o negócio lícito, que a lei autoriza e regulariza; é o que à volta da emigração se pratica entre nós. É o (…)! É o que se traduz na fuga clandestina daqueles míseros labregos que, iludidos por autênticos salteadores, julgam que podem transitar pela Europa sem irem munidos dos respetivos documentos. Essa ilusão, sai-lhes, em geral, cara. O logro em que caem, se enche de dinheiro as algibeiras dos facínoras com quem se combinam para iludir as autoridades, arrasta-os a eles para situações que roçam, às vezes, pelo martírio. Os exemplos, porém, não colhem. Passam, sem deixar rasto. Os intrujões, sempre em cata de reses, encontram a cada passo quem se deixe cair nas suas perversas armadilhas. A frequência com que se repetem os dramáticos episódios da emigração clandestina é digna de reflexão. O que motiva esses episódios, em que a dor, a vergonha e o crime aparecem sempre de braço dado? O que alimenta a corrente emigratória, que à sucapa se escoa pela fronteira? Quem a mantém cada vez mais forte e mais avassaladora? Indivíduos que não são desconhecidos, que não trabalham na sombra, que por várias vezes se têm visto a contas com a polícia e com a justiça. Porque se as vítimas variam de leva para leva, os carrascos são quase sempre os mesmos. Logo, a repressão exercida contra os que se entregam à emigração, pela raia seca, de sucessivos rebanhos humanos, tem sido fraca. Tem sido, pelo menos, improfícua. Ou será o negócio tão extraordinário, tão fabulosamente rendoso, que valha a pena arrostar com a cadeia e com o degredo, para se lhe recolherem os fantásticos lucros? Admitamos as duas hipóteses, porque ambas devem ser verdadeiras. Em todo o caso, não seria excessivo adoptar medidas próprias para impedir que se verificasse qualquer delas. Anda um pobre cavador arrastado por montanhas e vales, todo absorto na tarefa hercúlea de arrancar de um solo hostil o seu sustento e o dos filhos e ninguém se condoi dele. Se adoece, quem lhe leva o socorro de um médico, quem lhe ministra a boa droga que pode salvá-lo? Se a fome lhe invade [a casa], como megera desgrenhada, o lar nu e gelado, quem aparece a consola-lo com um pedaço de pão, ainda que duro e negro? Os farrapos com que se cobre já mal lhe disfarçam a aviltante nudez. De onde surge o benemérito que o agasalhe, quando se lembra dele a assistência pública para o amparar no seu cruciante abandono? Meta-se um passaporte nas mãos desse desgraçado cavador. Compre-se-lhe uma passagem a bordo de um navio, que o conduza para outros continentes. A que se assiste, nessa altura? A este espetáculo interessante: - durante a sua viagem, ao cavador, de quem ninguém se lembrou, enquanto com o seu alvião luzidio raspou o solo pátrio, nada falta: nem médico, nem enfermeiro, nem botica se lhe regateiam. O navio que o conduz não tarda, porém, a despeja-lo do outro lado do atlântico. Continua a acompanhá-lo a assistência carinhosa da viagem? Não continua! Cessa, por ter cessado o negócio em que o mísero entrou, como matéria transacionável! Estará isto bem? Parece que não, por não serem os interesses do emigrante os que predominam. Esse emigrante não é mais do que um pretexto, em torno do qual se aglomeraram interesses suspeitos, contra os quais é preciso reagir. Compreende-se tudo o que em redor da emigração se faça. Mas não se compreende, por ir além da inteligência e da moral humanas, que a faculdade de exportar criaturas da nossa espécie e da nossa raça, esteja regularizada, legislada, regulamentada, como se fosse a transação mais banal desta vida. Que emigre quem queira, sem sugestões nem convites, que por deslumbradores fazem claudicar ainda os mais fortes, está bem. É um direito e uma liberdade, que pertencem a todos, e que não podem ser suprimidos; mas que se autorize a propaganda da emigração, feita por aqueles que com ela aproveitam, chega a bradar aos céus! E desde que o negócio é ótimo, o que admira que ele se desdobre em lícito e em ilícito, e que à sombra de uma espoliação autorizada, se tenha estabelecido essa ladroeira proibida, que é a emigração clandestina? A máquina de emigrar, que com tanta perfeição para aí funciona, tem de ser desmontada. Sem isso, os dramas da emigração serão cada vez mais lancinantes, para vergonha de quem os consente, e para desgraça de quem é vítima deles.» // De O Século de 1/9/1930.  
 
    Comentário: passaram quase noventa anos, mas até parece que este artigo foi escrito há pouquíssimo tempo, excluindo alguns pormenores. Dou um exemplo: certo indivíduo, melgacense, em 1966 estava a lutar nas matas da Guiné-Bissau. Outro jovem, da mesma idade, da mesma terra natal, emigrante, cem por cento válido, nesse ano de 1966 estava na igreja matriz de Melgaço a casar-se! Emigrara dois ou três anos antes a "salto", pagando aos passadores dez ou onze contos de réis. Como é possível, passado tão pouco tempo, pisar solo português?! O Estado recebeu dinheiro e legalizou o seu "crime", emigração clandestina. Justo, injusto? O diabo que responda.   
 
                                     

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