DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
EMIGRAÇÃO
No século XIX os melgacenses emigravam
para o Brasil, mas a partir de certa altura, e devido a várias crises
financeiras, a chamada árvore das patacas quase secou. No século XX, em virtude
de duas guerras mundiais, parte da Europa ficou destruída; por isso os países
atingidos precisaram de muita mão-de-obra. Os melgacenses, pouco a pouco,
emigraram para França e para outros países europeus, mas a partir de 1961,
quando começou a guerra colonial em Angola, deu-se quase como uma fuga: a
França, a Alemanha, o Luxemburgo, a Suíça, etc., viram-se de repente invadidos
por milhares e milhares de portugueses, entre eles os naturais de Melgaço.
Desse êxodo resultou a despovoação do concelho, pois de início iam só rapazes,
mas depois começam a ir os mais velhos, as mulheres, toda a gente! Lê-se no
Notícias de Melgaço n.º 1468, de 21/4/1963: «a emigração dos melgacenses vem de longa data. Porém, nos últimos anos,
assumiu uma gravidade tal que – quando não é total – nas famílias ficam apenas
os velhos incapacitados para o trabalho, as mulheres e as crianças. Não é o
caso referido de Castro Laboreiro, e a laracha do inspecionando coxo, pois que
o castrejo, desde tempos imemoriais, militarmente é um faltoso, fundado talvez
nas regalias do seu velho foral. Impele-os a miséria em que vivem na sua terra,
nesta terra de insignificantes áreas cultiváveis, encravadas no dorso das
montanhas, praticando uma agricultura economicamente deficitária, em que o húmus
é fatidicamente arrastado para o mar pelas torrentes, através das linhas de
água que alimentam a sua voracidade.» Assina F.S. (Ferreira da Silva?) //
Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 77, de
14/9/1930: «OS DRAMAS DA EMIGRAÇÃO. Não tenhamos dúvidas a semelhante respeito:
- a emigração deixou de há muito de ser um vício, ou uma mania, para se
transformar em uma necessidade nacional. Se assim não fora, os episódios
desgraçados em que entram a cada passo aqueles que, seja como for, teimam em
trocar o seu país por outro, seriam menos numerosos, tanta influência
reconsideradora deviam exercer no ânimo dos que ficam com as misérias, as
angústias, os autênticos calvários que surpreendem, na terra do exílio, os que
partem. Se se emigrasse apenas por gosto, por espírito de imitação, por amor da
aventura, por ambição ou por insofridos desejos de riqueza, é de crer que os
infortúnios de uns moderassem os ímpetos de fuga, que acicatam os outros, sem
lhes darem tempo a reparar nas tragédias de emigrantes que à sua roda e sob os
seus olhos se desenrolam, com uma brutalidade de apavorar. O fenómeno emigrante
foi sempre uma consequência, um desdobramento do fenómeno e, às vezes, do
fenómeno demográfico. Só emigram em massa, como há uns poucos de anos vem
acontecendo em Portugal, os povos que no seu próprio país não encontram aquilo
que mais necessário é à sua existência. Só fogem da sua terra, em vagas
compactas, aqueles que, querendo viver honradamente do seu trabalho, não logram
aplicação remuneradora para a sua atividade, vendo-se por esse motivo forçados
a uma pobreza, que por ser injusta, os revolta, dando-lhes coragem para todos
os actos extremos. Basta lançar um olhar perscrutador por essa Europa além para
se ter a confirmação destas afirmações. Quais são os povos do velho continente
que, principalmente, voltam costas aos países em que nasceram? O italiano, o
espanhol e o português. Serão esses mesmos povos os mais ricos, os mais
civilizados, os mais adiantados e os mais prósperos? Não será heresia
desmarcada, dar a esta pergunta resposta negativa. A Itália luta com um excesso
de população, que empurra todos os anos para as mais distantes regiões do globo
muitos milhares dos seus cidadãos mais válidos. A emigração, para a pátria de
Mussolini, não é um capricho. É uma solução imperiosa, exigida pela sua
fisionomia demográfica, na qual se vê a natalidade suplantar a mortalidade, com
proporções verdadeiramente assombrosas. O italiano tem de abandonar a sua terra
por não poder arrumar-se dentro dela. Por sua vez o espanhol segue
principalmente para o novo mundo, por lhe faltar o trabalho fácil e remunerador
no mundo velho em que nasceu. A miséria já conduz, nos tempos que correm, à
resignação. Provoca reações e revolta. Força aqueles que a suportam a lutas sem
quartel, destinadas a vence-la. Que importa ao réprobo da fortuna lutar aqui ou
além para alcançar, segurando-a pelos cabelos, a deusa volúvel, que enche todos
os seus sonhos? Mas, emigrando, o espanhol da Galiza ou das Vascongadas,
procura faze-lo com segurança, afastando do seu caminho o maior número possível
de percalços, capazes de lhe comprometerem a aventura. E os portugueses? Para
qualquer ponto [do mundo] que eles se dirijam, se não o fazem cem por cento ao
acaso, pouco menos. Porquê? A que atribuir a facilidade com que a nossa gente
do campo se deixa exportar, como se fosse mercadoria com que se transaciona,
sem que a lei possa surgir, a contrariar semelhante tráfico? A ignorância deve
entrar em grande quantidade no desprendimento com que os rurais de Portugal
fogem das regiões em que habitam. Mas, acima dessa ignorância, outra força há a
arrastar a gente portuguesa para uma aventura, que só raras vezes acaba bem.
Essa força é a da ganância. Quem a maneja? Todos aqueles que exploram o negócio
da emigração e à sombra dele enriquecem, quer protegidos pela lei, quer fora
das suas disposições. Há em Portugal, legalmente estabelecidos, exportadores de
gado humano, como os há de cortiça, de vinhos, ou de suínos. O Estado
tributa-os e eles pagam os tributos que lhes exigem. Em tais circunstâncias
qual é o interesse desses traficantes inconfundíveis? Arrebanhar quantas mais
cabeças melhor. Fazer seguir barra fora, ou pôr do lado de lá da fronteira o
maior número possível de desgraçados, a quem previamente devoraram os últimos
centavos, provenientes das míseras courelas e dos casebres denegridos,
hipotecados ou vendidos de afogadilho. Engajadores e agentes de passagens e
passaportes são, por interesse próprio, os incansáveis propangadistas de uma
debandada que a continuar, somada com a tuberculose, promoverá,
implacavelmente, a ruína deste país, despovoando-o. Não é, porém, apenas o
negócio lícito, que a lei autoriza e regulariza; é o que à volta da emigração
se pratica entre nós. É o (…)! É o que se traduz na fuga clandestina daqueles
míseros labregos que, iludidos por autênticos salteadores, julgam que podem
transitar pela Europa sem irem munidos dos respetivos documentos. Essa ilusão,
sai-lhes, em geral, cara. O logro em que caem, se enche de dinheiro as
algibeiras dos facínoras com quem se combinam para iludir as autoridades,
arrasta-os a eles para situações que roçam, às vezes, pelo martírio. Os
exemplos, porém, não colhem. Passam, sem deixar rasto. Os intrujões, sempre em
cata de reses, encontram a cada passo quem se deixe cair nas suas perversas
armadilhas. A frequência com que se repetem os dramáticos episódios da
emigração clandestina é digna de reflexão. O que motiva esses episódios, em que
a dor, a vergonha e o crime aparecem sempre de braço dado? O que alimenta a
corrente emigratória, que à sucapa se escoa pela fronteira? Quem a mantém cada
vez mais forte e mais avassaladora? Indivíduos que não são desconhecidos, que
não trabalham na sombra, que por várias vezes se têm visto a contas com a
polícia e com a justiça. Porque se as vítimas variam de leva para leva, os
carrascos são quase sempre os mesmos. Logo, a repressão exercida contra os que
se entregam à emigração, pela raia seca, de sucessivos rebanhos humanos, tem
sido fraca. Tem sido, pelo menos, improfícua. Ou será o negócio tão
extraordinário, tão fabulosamente rendoso, que valha a pena arrostar com a
cadeia e com o degredo, para se lhe recolherem os fantásticos lucros? Admitamos
as duas hipóteses, porque ambas devem ser verdadeiras. Em todo o caso, não
seria excessivo adoptar medidas próprias para impedir que se verificasse
qualquer delas. Anda um pobre cavador arrastado por montanhas e vales, todo
absorto na tarefa hercúlea de arrancar de um solo hostil o seu sustento e o dos
filhos e ninguém se condoi dele. Se adoece, quem lhe leva o socorro de um
médico, quem lhe ministra a boa droga que pode salvá-lo? Se a fome lhe invade
[a casa], como megera desgrenhada, o lar nu e gelado, quem aparece a consola-lo
com um pedaço de pão, ainda que duro e negro? Os farrapos com que se cobre já
mal lhe disfarçam a aviltante nudez. De onde surge o benemérito que o agasalhe,
quando se lembra dele a assistência pública para o amparar no seu cruciante
abandono? Meta-se um passaporte nas mãos desse desgraçado cavador.
Compre-se-lhe uma passagem a bordo de um navio, que o conduza para outros
continentes. A que se assiste, nessa altura? A este espetáculo interessante: -
durante a sua viagem, ao cavador, de quem ninguém se lembrou, enquanto com o
seu alvião luzidio raspou o solo pátrio, nada falta: nem médico, nem
enfermeiro, nem botica se lhe regateiam. O navio que o conduz não tarda, porém,
a despeja-lo do outro lado do atlântico. Continua a acompanhá-lo a assistência
carinhosa da viagem? Não continua! Cessa, por ter cessado o negócio em que o
mísero entrou, como matéria transacionável! Estará isto bem? Parece que não,
por não serem os interesses do emigrante os que predominam. Esse emigrante não
é mais do que um pretexto, em torno do qual se aglomeraram interesses
suspeitos, contra os quais é preciso reagir. Compreende-se tudo o que em redor
da emigração se faça. Mas não se compreende, por ir além da inteligência e da
moral humanas, que a faculdade de exportar criaturas da nossa espécie e da
nossa raça, esteja regularizada, legislada, regulamentada, como se fosse a
transação mais banal desta vida. Que emigre quem queira, sem sugestões nem
convites, que por deslumbradores fazem claudicar ainda os mais fortes, está
bem. É um direito e uma liberdade, que pertencem a todos, e que não podem ser
suprimidos; mas que se autorize a propaganda da emigração, feita por aqueles
que com ela aproveitam, chega a bradar aos céus! E desde que o negócio é ótimo,
o que admira que ele se desdobre em lícito e em ilícito, e que à sombra de uma
espoliação autorizada, se tenha estabelecido essa ladroeira proibida, que é a
emigração clandestina? A máquina de emigrar, que com tanta perfeição para aí
funciona, tem de ser desmontada. Sem isso, os dramas da emigração serão cada
vez mais lancinantes, para vergonha de quem os consente, e para desgraça de
quem é vítima deles.» // De O Século de 1/9/1930.
Comentário: passaram quase noventa anos, mas até parece que este artigo foi escrito há pouquíssimo tempo, excluindo alguns pormenores. Dou um exemplo: certo indivíduo, melgacense, em 1966 estava a lutar nas matas da Guiné-Bissau. Outro jovem, da mesma idade, da mesma terra natal, emigrante, cem por cento válido, nesse ano de 1966 estava na igreja matriz de Melgaço a casar-se! Emigrara dois ou três anos antes a "salto", pagando aos passadores dez ou onze contos de réis. Como é possível, passado tão pouco tempo, pisar solo português?! O Estado recebeu dinheiro e legalizou o seu "crime", emigração clandestina. Justo, injusto? O diabo que responda.
Sem comentários:
Enviar um comentário