quinta-feira, 21 de maio de 2020


LINA - Filha de Pã
romance
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
14.º Capítulo

 

 

     Ouviram-se, no relógio da torre, as seis badaladas da manhã. Os dois guardas, Pedro e Roberto, estavam prontos para a “caçada”. A diabólica Lina seria capturada «nem que fosse no inferno» - prometiam eles. Primeiro foram ao local da fuga.

 

- Foi aqui que a víbora nos escapou – lamenta-se o Roberto. – Filha de uma mãe.

- E reparaste na sua agilidade? Parecia uma lebre a correr.

- Não vai ser fácil apanhá-la. Será necessário colher algumas informações, saber do seu paradeiro.

- Olha: vamos passar por Prado Verde, depois subimos a Dernepa, e a seguir trepamos até às freguesias da serra – quase de certeza que deve andar perto de Lamas Santas.

- Pensas que voltava ao sítio onde cometeu o ato vil? – pergunta Roberto, incrédulo.

- Nunca ouviste dizer que «o criminoso regressa sempre ao local do crime»?!

- És capaz de ter razão. Ela deve precisar de algumas roupas lá de casa. Vamos em frente.

 

     Subiram por caminhos estreitos, sinuosos, alguns inundados de água para rega, com a pistola sempre pronta a disparar. Iam perguntando a algumas pessoas se tinham visto a fugitiva, mas todos diziam a mesma coisa: «não, não a vi.» Conhecer, toda a gente adulta a conhecia, graças às peripécias do passado – a Lina já era famosa, tristemente famosa, em todo o concelho, e até em Monção. As suas aventuras, por vezes relatadas com exagero, tornaram-na figura do anedotário local, emparceirando com todos os criminosos anteriores a ela.

 

    Nesse dia não conseguiram encontrá-la, nem sequer obtiveram um único indício do seu paradeiro.

- Foi um dia terrível, cansamo-nos em vão – comentou Pedro.   

- Ouve meu amigo: ela por enquanto está na toca, como a raposa, metida em uma gruta, mas quando a fome apertar ela sai; temos de ter paciência – ela é arguta, felina, só a nossa perspicácia e insistência a vencerão.

     Caminharam mais umas horas, falaram com algumas pessoas, mas os resultados foram nulos. Descorçoados, regressam ao quartel.

- Estou com uma fome danada, Roberto; por causa da malvada ainda ficamos tísicos.

- Amanhã trazemos umas sandes; para beber temos água – à ceia desforramo-nos.

 

 

     Os dias passavam no seu ritmo lento, compassado; a primavera já se despedira há muito e o verão estava no seu auge. O calor apertava, chegava quase aos quarenta graus! Aqueles dois homens até já tinham mudado de cor: de branquinhos que eram estavam a ficar morenos. Também já tinham perdido alguns quilos.

     O comandante do posto estava a ficar impaciente:

 

- Se não apanham a maldita assassina, dentro de pouco tempo mandam para cá a polícia judiciária. Para nós é uma humilhação, um desprestígio. E mais: somos todos transferidos e a mim até me despromovem.

 - Senhor comandante: amanhã ou depois de amanhã prendemo-la. Eu e o Pedro já sabemos mais ou menos onde ela se encontra. Viram-na em Gavião. Vamos cercá-la.

 

     Logo de manhã cedo arrancaram para o monte. A Lina já andava fugida quase há uma semana. Esgueirava-se de uma freguesia para outra, de um monte mudava para outro, sempre com mil cautelas.

        Roubava o que podia para comer e vestir. Pescava, encostada a um vistoso salgueiro, ou então sentada num pedregulho, no pequeno rio Mouro, sempre atenta, não fosse surgir inesperadamente o guarda-rios. Um bocado de fio de nylon, um comprido pau, um anzol e uma minhoca era o suficiente para atrair aquelas bonitas trutas, que depois grelhava. O calçado estava a ficar gasto de tanto caminhar. Entregar-se estava fora de questão, mas aquela vida também não lhe agradava nada. Sabia que estava a ser perseguida, até sentia, embora a distância, a presença dos perseguidores. «A minha sorte é que são poucos, senão já me tinham detido» - confessava ela a si própria.

 

     Os guardas foram apertando o cerco, com a ajuda da população. As pessoas começavam a recear a presença daquela mulher que era capaz de tudo para conseguir os seus objetivos. Por fim os soldados avistaram-na ao longe. Gritaram-lhe:

 

- Entrega-te que é melhor para ti. Não nos obrigues a matar-te.

- Venham buscar-me, se forem capazes – desafiou ela. Pensam que pelo facto de possuírem armas que me assustam?!

 

     E escapuliu-se por entre os pinheiros. Eles correram naquela direção e ao cabo de duas horas voltaram a avistá-la. Estava perto do rio, sentada em cima de um sinuoso pedregulho. O riacho, afluente do Minho, não levava muita água, mas ao longo do seu percurso ia formando poços, onde se poderia até tomar banho.

     Eles desta vez não dialogaram com ela – queriam apanhá-la sem ela se aperceber. Atrás das árvores, dos arbustos, lá se foram aproximando. Estavam já próximos quando um deles partiu um ramo seco de pinheiro. A Lina então virou-se para trás e viu-os. A reação não se fez esperar: mergulhou no poço mais próximo. Eles correram o mais que puderam a fim de evitar que ela se afogasse – queriam levá-la viva para a cadeia. Roberto solicita:

 

- Atira-te ao poço, Pedro, e saca a megera de lá; eu sei nadar, mas pouco.

 

     A Lina agarrara-se a um tronco de árvore que estava no fundo do poço para que eles pensassem que se tinha afogado. O guarda descalçou rapidamente as botas e mergulhou como se fora um nadador de alta competição. O poço não era fundo, a água estava limpa e por isso não lhe foi difícil encontrar o corpo da mulher. Trouxe-a à superfície, o outro guarda ajudou a tirá-la da água, e deitaram-na de barriga para o ar. Parecia morta! Tentaram extrair-lhe a água dos pulmões, num boca a boca, mas lá de dentro nada saía.    

  

- Roberto: temos de a levar às costas, ou improvisar uma maca, a pulha está desfalecida; é capaz de estar sem vida!

- Deixa lá o raio da maca; nem daqui a meia hora estaria pronta. Ela não é pesada. Alternamos: levo-a eu primeiro; depois passo-ta.

 

     E assim os dois homens carregaram com ela até à estrada. Tudo a subir. Estavam exaustíssimos. O suor escorria-lhe pelas faces. Praguejavam como dois arruaceiros das docas:

 

- Se não estivesse morta, matava-a agora mesmo! Este biltre dá cabo de nós.

- Agora temos de carregar com ela até à Vila. Cabra! Se tivesse aqui um barril metia-a lá dentro e ia a rolar até ao posto. 

 

     De repente, a malvada, que até aí se fingira de defunta, levanta-se do chão e diz-lhes:

 

- Vós sois mesmo broncos. Nem sequer sabeis distinguir uma pessoa viva de um cadáver! Que raio de autoridade, sois vós?! Em que escola aprendestes? A partir daqui não precisais carregar comigo – eu vou bem a pé; para baixo todos os santos ajudam!   

 

     A troça era um dos seus atributos. Gozar os outros dava-lhe um prazer mórbido. Envergonhados, cabisbaixos, roendo no seu peito o ódio contra aquele ser asqueroso, levaram-na diretamente para o cárcere. O guarda prisional veio recebê-los à entrada e comentou:

 

- Ora viva! Finalmente! Já pensava que nunca mais te apanhavam. Daqui não fugirás, garanto-te eu. Até te dava um prémio, se o conseguisses.

 

     A Lina, atrevida como era, desafiante, responde-lhe à letra:

 

- O senhor Capela não me conhece: se fosse a si não apostava; se eu quiser fujo desta e de qualquer prisão – é só eu querer.

- Bazófia não te falta – disse um dos guardas da Guarda Nacional Republicana, agora mais seguro de si. - Que és tramada, não há dúvida, já o provaste, mas aqui não terás grandes hipóteses de fuga. Por outro lado, não vais estar nesta cadeia muito tempo; o teu destino é o Porto ou Lisboa, disso não tenho qualquer dúvida. Espera pela sentença e já vais ver.

 

**

 

     O processo, que de início parecia simples, sem motivos para qualquer demora, tornou-se complicado e moroso, devido ao facto do senhor Filipe ter contratado um dos melhores advogados da região. As leis pareciam, à primeira vista, claras, transparentes, mas na prática não era assim – davam quase sempre azo a duas leituras, quase antagónicas! Argumentava o advogado de defesa:  

 

- A senhora Lina confessou o crime sob coação; sobre ela foi exercida violência física, teve de receber tratamento médico, logo essa confissão fica sem efeito, torna-se nula; o mesmo é válido para o senhor Filipe. Quem viu a presumível arguida a envenenar a patroa? Não teria sido a própria vítima que se enganou e em lugar de açúcar pôs raticida no chá? Não era a primeira vez que isso sucedia – quantos enganos fatais têm acontecido por esse mundo de Cristo!

- Mas, Senhor Doutor – contrapunha o delegado do Procurador da República – não acha que aquilo que está a dizer é um disparate?! Então como se explica que Lina e Filipe fossem casar logo a seguir?     

- Fácil de explicar, Senhor Doutor Delegado: um homem e uma mulher, livres ambos, a viver na mesma casa, saudáveis, sentir-se-ão com certeza atraídos um pelo outro – isso é natural e não é crime. Como os dois são católicos quiseram casar – até para calar as bocas do mundo, pois já falavam deles com pouca consideração, sobretudo a vizinhança. Os meus constituintes, embora não sendo figuras de proa na sociedade portuguesa, são cidadãos de muito respeito; por isso, e não existindo provas concludentes, devemos considerá-los inocentes.

 

     Essas discussões jurídicas prolongavam-se por horas a fio. O advogado não tinha pressa – ainda havia muito dinheiro na conta do cliente.

     A Lina é que já estava saturada da prisão. Todos os santos dias a mesma rotina: levantar cedo, banho, depois tomar a primeira refeição do dia, cevada com leite desnatado, e uma carcaça com um bocadinho de manteiga ou marmelada, a seguir o terraço, onde podiam circular, todo vedado, nem sequer se via o exterior, ao meio-dia outra refeição, depois iam todas para uma saleta, onde conversavam, ou liam, as que sabiam ler, umas revistas antigas, já sem qualquer interesse, às dezoito horas e trinta minutos a ceia. A comida era uma porcaria – um caldo mal feito e o presigo intragável.  

     «Tenho de sair desta maldita prisão» - impunha ela para si mesmo. «Esta vida leva-me à cova em meses», resmungava entre dentes. «É isso: tenho de conseguir fugir daqui, já cá estou há demasiado tempo. Mas como

     Ficou a magicar na maneira de escapar. Tinha na manga alguns truques, alguns dos quais já usara noutras ocasiões. Um deles era atrair sexualmente o carcereiro. O pior é que ele era casado e morava com a mulher, bonita e nova, ali ao lado da cadeia. Por outro lado, com os maus tratos que nos últimos meses sofrera, o seu corpo já não estava tão sedutor como outrora. O melhor era desistir desse esquema, já por demais usado. Surgiu-lhe de repente outra ideia luminosa: emagrecer ainda mais e tentar sair pelas grades; mas para isso precisava que o senhor Capela não lhe fechasse a sua cela à noite, porque, pensava ela, a fuga só teria êxito se fosse feita na escuridão, com toda a gente a dormir; com a luz solar as hipóteses seriam mínimas. Mentalmente, começou a gizar o plano.    

     Se bem o pensara, melhor o executou: arranjou sabão azul, bastante espesso, e antes de se deitar punha um bocado na fechadura, pela parte de dentro, humedecendo-o com saliva previamente. O carcereiro passava logo depois e fechava a porta da cela com a chave. Fazia ronda por todas as celas e fazia a mesmíssima coisa. Depois fechava a porta principal da prisão e ia para casa. Todas as noites aquilo. A Lina foi vendo se o sabão resultava. Nas primeiras noites não surtiu qualquer efeito. Continuou, no entanto, a pôr mais sabão na fechadura. O senhor Capela, extenuado, rotineiro, nunca deu por nada. Uma noite, a ladina, foi experimentar a porta e esta cedeu. Resultara em cheio! Agora podia sair à noite. Percorreu alguns cantos da prisão a fim de se habituar ao escuro. Fez isso, noites a fio. Às tantas já se movimentava com alguma facilidade e rapidez. As outras reclusas, pouco mais de meia dúzia, dormiam a sono solto.

     Um dia, já com algumas tentativas falhadas, a bem dizer ensaios, olhou-se ao espelho demoradamente e comentou: «Parece que já estás magra o suficiente para passar o gradeamento; é necessário esperar por uma noite de trovoada para que o vidro, ao partir, não chame a atenção de ninguém

     Naquela tarde trovejava sem cessar. O pára-raios já recebera a visita de pelo menos duas faíscas, interrompendo, por algum tempo, a energia elétrica. A noite estava terrível, feroz! O vento soprava, com uivos lancinantes, e chovia ininterruptamente.

     A Lina sai da cela, como o fazia regularmente, verifica se as suas companheiras de prisão estavam a dormir, o que não era fácil tendo em conta aquele temporal, e vai-se aproximando do gradeamento. Leva com ela, em tiras, os lençóis da cama. Pega no pau de vassoura, que guardara bem guardado debaixo do colchão, no qual colocara um pedacito de ferro, e rebenta com o vidro. Esperou a reação, mas nada fazia prever que os seus camaradas de presídio tivessem ouvido. Agora apenas tinha como obstáculo o gradeamento. Pôs-se de perfil e enfiou-se entre as barras de ferro como se fosse uma enguia ou uma cobra. Passado um instante estava do outro lado. Agora era só saltar o muro e ei-la livre. As tiras dos lençóis, bem atadas entre si, com um gancho na ponta, foram atiradas para cima do muro. Depois de algumas tentativas vãs, finalmente consegue fixar o gancho. Tal como um marujo, em um barco em turbilhão, trepa num instante por ali acima. Uma vez do lado de fora da prisão escolheu o caminho a seguir.         

     Quando se dispunha a partir para o monte, eis que uma voz medonha, vinda do além, se lhe dirige:

 

- Lina! Sou teu pai celestial. Sou Pã, filho de Hermes. Escuta aquilo que te vou dizer: os meus poderes não são ilimitados, por isso nem sempre tenho conseguido impedir que te façam mal; vai para o bosque, onde o meu poder é maior, ouvirás a minha música e dançarás com as ninfas.

 

     Ela olhou para o céu e viu uma figura gigantesca, com chifres e cascos de bode – nunca vira nada mais feio. Destemida, atreveu-se a dizer-lhe:

 

- Tu não és meu pai: meu pai era um homem vulgar, que morreu devido a uma doença ainda eu era menina. Tu és apenas uma visão; estou fraca, emagreci de mais, e agora, coitadinha de mim, sofro as consequências.   

 

     O deus irritou-se:

 

- É dessa maneira que me agradeces o querer defender-te dos humanos, não acreditando em mim? Não confias nos teus próprios olhos? Eu dei-te a seiva com que te alimentaste nos primeiros tempos de vida; caso contrário, terias perecido! As tuas hipóteses de sobrevivência eram praticamente nulas.

 

      E num gesto de revolta esmagou, com uma violenta murraça, um pedregulho que passava perto dele. O estrondo foi enorme. O calhau ficou desfeito em biliões, ou triliões, de fragmentos. Lina estremeceu. Conciliadora, a tremer, dirigiu-lhe novamente a palavra:

 

- Está bem, és meu pai… Então protege-me, como me prometeste. Queres que vá para um bosque, vou. E como chego lá? Onde fica tal sítio?

 

     Mal acabara de pronunciar aquelas palavras o seu corpo deslocou-se e de repente cai no chão. Mas não se tratava de um chão qualquer: um tapete de relva, muito verde, macio, cobria-o por completo. Ali perto havia um lago com uma água muito azul; em seu redor viam-se flores, as mais belas que ela já vira, e a sua fragrância inebriava. Por todo o lado se viam árvores frondosas, com folhas de variadíssimas cores. «Se calhar estou a viver um sonho! O que me estará a acontecer?!» - interrogava-se Lina. «Matei um ser humano e agora estou no paraíso! Isto não me está a acontecer

     Começa a ouvir uma música suave, como nunca ouvira. Nas festas do concelho, que se realizavam entre Maio e Outubro, apenas se escutavam músicas religiosas, de ranchos folclóricos, canções populares, e pouco mais. Esta era diferente, penetrava-lhe a alma. Estendeu-se na relva, extenuada, e pouco depois adormece profundamente.      

     À sua volta dançaram as ninfas e Pã tocava na sua flauta de cana. Tudo em redor era harmonia, paz.

 

     Era quase madrugada quando Lina acorda sobressaltada. Olha em seu redor e vê penedos, arbustos, pinheiros, eucaliptos, um pequeno regato. Ela afinal conhecia aquele sítio – não estava num bosque encantado, mas sim no monte. Fora uma visão, um sonho, talvez um pesadelo. Mas não se lembrava de ter caminhado! Como chegara ali sem dar conta disso? «Alguma coisa estranha se passou» - diz entredentes.

     Agora precisava de arranjar comida. Água não faltava, felizmente: existiam nascentes um pouco por todo o lado e também se podia beber a água dos ribeiros e regatos, ou pequenos rios, que vinham da serra. Ainda não se falava em poluição. Experiência já a possuía da evasão anterior. Teria de construir um pequeno abrigo ou encontrar uma gruta, a fim de se defender do frio mas também de alguma fera, sobretudo do lobo, que por ali andasse à procura de alimento.   
 
 
 
 

 

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