LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
// continuação (ver em 5/4/2016).
- Quem foi o pai, desta vez?!
- O Rodolfo de Tronços, filho do dono da mercearia, era todo
atiradiço, enganou uma data de raparigas, espero que não lhe façam o mesmo às
filhas, não respeitava ninguém.
- Não me diga que ele a forçou?!
- Não, de maneira nenhuma, mas prometeu-me casamento, fartou-se de
dizer mal do outro, e eu fui no engodo; desejava arrumar a minha vida, mas dava
sempre com estes garotos, engravidavam-me e depois já não queriam nada comigo,
até parece que eu tinha lepra.
- Seis anos depois nasceu o Olavo.
- Nessa altura já eu deixara Tronços, fui servir para Cendre, para
casa de uma velhota, isto por volta de 1939. Ali perto trabalhavam como
caseiros de uma quinta os pais do teu pai, o Agostinho Meliças e a sua mulher,
Mariana. Só tinham um filho, o Olavo Augusto, que depois veio a ser o vosso
pai. Eu não lhe ligava nenhuma, porque ele era uma criança à minha beira, tinha
menos doze anos do que eu, nascera em 1920. Andava atrás de mim como o gato
anda atrás da gata na época do cio, não me largava, dizia-me que a diferença de
idades não interessava, que casava comigo, podíamos viver ali em Cendre, ele
ganhava algum dinheiro no contrabando e eu trataria da casa.
- Mais uma vez caiu na esparrela!
- Dizem que gato escaldado até do frio tem medo, mas eu não aprendia,
cabeça oca, pensava que devia haver no mundo alguém, um homem bom e sincero que
gostasse verdadeiramente de mim, que não me enganaria, que me respeitaria como
mulher, apesar de já ter tido quatro filhos de quatro homens diferentes;
enganei-me mais uma vez, fiquei grávida do teu irmão; em Setembro de 1941 ele
nasceu e eu continuava solteira como antes. Eu chorava, mas ele não se comovia.
Arrendámos uma velha casa, muita pequeninha, perto do posto da Guarda-Fiscal, e
passámos a viver ali, embora ele poucas vezes lá ficasse, dizia que tinha de
dormir em casa dos pais, ajudá-los na lavoura, porque estavam a ficar velhos.
Conversa, ele tinha era outra, uma da idade dele, eu já devia calcular.
- Passou então a haver cenas de ciúmes.
- Bueno, bueno! Quase todos os dias; o estroina aparecia, vinha
encher a mula, andava sempre esfomeado, e depois dizia que tinha de ir aqui ou
ali, só para não me ouvir. Eu enchia-me de esgaravatar: a vender peixe, a
contrabandear, e ele não me ajudava nada, ao invés, vinha comer o suor do meu
rosto.
- Acabou por ficar grávida de mim!
- Tu foste o último filho que eu tive, um meia-leca, e era para não
teres nascido, ainda pensei em abortar, as vizinhas aconselharam-mo: «ó mulher, não sejas doida, mais um filho
arruína-te, desgraça-te; o melhor será abortares, ali a Dolores tem mão para
isso.» O teu pai já estava zangado comigo, a bem dizer já nem nos víamos,
ele passava muito tempo com a namorada galega, ela já devia estar grávida
também, até parece que o embruxou, ele nunca mais foi o mesmo para mim depois
de a conhecer.
- Por que é que ele não perfilhou o vosso primeiro filho, o Olavo?
- Bem, nós estávamos a muita distância, quase a dez quilómetros da
sede do concelho, onde se encontrava o Registo Civil, e ele era muito
comodista, não queria lá ir, prometia sempre, nunca disse que não ia, mas
quando chegava a altura, dava sempre uma desculpa, eu também não insistia muito
porque toda a gente sabia que o teu irmão era filho dele.
- Quando eu nasci…
- Quando tu nasceste fui falar com ele e implorei-lhe que vos
perfilhasse, não figurardes com nome de pai podia ter implicações no vosso
futuro, mas ele fez uma cena dos diabos, disse-me que o primeiro ainda vá lá,
podia ser filho dele, ora o segundo, nem pensar, sabia lá ele quem era o pai!
Eu fiquei cega de raiva, o filho da púcara, que a mãe não o era, pois olha que
enquanto andei com ele não tive outro homem, sacana, era um cachorro, o que ele
queria era arranjar um pretexto, uma desculpa tola, para se separar,
desvincular definitivamente de mim. Chamei-lhe todos os nomes, e ainda foram
poucos, quis bater-me, mas eu gritei por socorro e logo veio gente defender-me;
o teu padrinho, o Flávio Ferreira, ainda tentou dar-lhe umas arrochadas, mas eu
não deixei, impedi-o, apesar de tudo ainda gostava dele!
- Eu nunca o vi!
- Pois não, depois de tu nasceres, terias uns três meses de vida,
ele foi-se embora para Espanha com a outra, nunca mais lhe pusemos os olhos em
cima.
- E assim ficámos os dois, eu e o Olavo, como sendo filhos de pai
incógnito!
- Infelizmente assim é; todos ficaram sendo de pais incógnitos, mas
olha que eu não tive culpa, é o destino, eu nem queria nada com o teu pai, nem
sei como isso aconteceu, eu era uma mulher só, já não era nova, queria tentar
pelo menos constituir o meu lar, mas quem nasce malfadado tarde ou nunca encontrará
uma migalha de felicidade; coitada de mim, nunca tive sorte com os homens,
fizeram pouco de mim, aproveitaram-se da minha fragilidade, e o azar sempre me
acompanhou na vida. Nasci pobre; e quem nasce pobre acabará quase sempre por
morrer da mesma maneira. A minha única riqueza é a liberdade e os filhos. Sobretudo
tu que és o mais novo e tens estado sempre ao meu lado, a aturar os meus
infortúnios, as minhas infelicidades.
- Os dois meus irmãos mais velhos só são seus filhos de nome, deu-os
à luz mas não os criou, não viveu com eles; o Olavo foi para Lisboa aos trezes
anos de idade. Restei eu, mas você não me tem dado grandes alegrias, podia
emendar-se.
- É tarde para isso, demasiado tarde. Passei muita desgraça, sofri
muito, nunca compreendi o mundo e as suas gentes, hoje sou um farrapo humano;
não me peças impossíveis. // continua...
Sem comentários:
Enviar um comentário