segunda-feira, 9 de maio de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha


// continuação (ver em 5/4/2016).

- Quem foi o pai, desta vez?!
- O Rodolfo de Tronços, filho do dono da mercearia, era todo atiradiço, enganou uma data de raparigas, espero que não lhe façam o mesmo às filhas, não respeitava ninguém.
- Não me diga que ele a forçou?!
- Não, de maneira nenhuma, mas prometeu-me casamento, fartou-se de dizer mal do outro, e eu fui no engodo; desejava arrumar a minha vida, mas dava sempre com estes garotos, engravidavam-me e depois já não queriam nada comigo, até parece que eu tinha lepra.
- Seis anos depois nasceu o Olavo.
- Nessa altura já eu deixara Tronços, fui servir para Cendre, para casa de uma velhota, isto por volta de 1939. Ali perto trabalhavam como caseiros de uma quinta os pais do teu pai, o Agostinho Meliças e a sua mulher, Mariana. Só tinham um filho, o Olavo Augusto, que depois veio a ser o vosso pai. Eu não lhe ligava nenhuma, porque ele era uma criança à minha beira, tinha menos doze anos do que eu, nascera em 1920. Andava atrás de mim como o gato anda atrás da gata na época do cio, não me largava, dizia-me que a diferença de idades não interessava, que casava comigo, podíamos viver ali em Cendre, ele ganhava algum dinheiro no contrabando e eu trataria da casa.
- Mais uma vez caiu na esparrela!
- Dizem que gato escaldado até do frio tem medo, mas eu não aprendia, cabeça oca, pensava que devia haver no mundo alguém, um homem bom e sincero que gostasse verdadeiramente de mim, que não me enganaria, que me respeitaria como mulher, apesar de já ter tido quatro filhos de quatro homens diferentes; enganei-me mais uma vez, fiquei grávida do teu irmão; em Setembro de 1941 ele nasceu e eu continuava solteira como antes. Eu chorava, mas ele não se comovia. Arrendámos uma velha casa, muita pequeninha, perto do posto da Guarda-Fiscal, e passámos a viver ali, embora ele poucas vezes lá ficasse, dizia que tinha de dormir em casa dos pais, ajudá-los na lavoura, porque estavam a ficar velhos. Conversa, ele tinha era outra, uma da idade dele, eu já devia calcular.
- Passou então a haver cenas de ciúmes.
- Bueno, bueno! Quase todos os dias; o estroina aparecia, vinha encher a mula, andava sempre esfomeado, e depois dizia que tinha de ir aqui ou ali, só para não me ouvir. Eu enchia-me de esgaravatar: a vender peixe, a contrabandear, e ele não me ajudava nada, ao invés, vinha comer o suor do meu rosto.
- Acabou por ficar grávida de mim!
- Tu foste o último filho que eu tive, um meia-leca, e era para não teres nascido, ainda pensei em abortar, as vizinhas aconselharam-mo: «ó mulher, não sejas doida, mais um filho arruína-te, desgraça-te; o melhor será abortares, ali a Dolores tem mão para isso.» O teu pai já estava zangado comigo, a bem dizer já nem nos víamos, ele passava muito tempo com a namorada galega, ela já devia estar grávida também, até parece que o embruxou, ele nunca mais foi o mesmo para mim depois de a conhecer.
- Por que é que ele não perfilhou o vosso primeiro filho, o Olavo?
- Bem, nós estávamos a muita distância, quase a dez quilómetros da sede do concelho, onde se encontrava o Registo Civil, e ele era muito comodista, não queria lá ir, prometia sempre, nunca disse que não ia, mas quando chegava a altura, dava sempre uma desculpa, eu também não insistia muito porque toda a gente sabia que o teu irmão era filho dele.
- Quando eu nasci…
- Quando tu nasceste fui falar com ele e implorei-lhe que vos perfilhasse, não figurardes com nome de pai podia ter implicações no vosso futuro, mas ele fez uma cena dos diabos, disse-me que o primeiro ainda vá lá, podia ser filho dele, ora o segundo, nem pensar, sabia lá ele quem era o pai! Eu fiquei cega de raiva, o filho da púcara, que a mãe não o era, pois olha que enquanto andei com ele não tive outro homem, sacana, era um cachorro, o que ele queria era arranjar um pretexto, uma desculpa tola, para se separar, desvincular definitivamente de mim. Chamei-lhe todos os nomes, e ainda foram poucos, quis bater-me, mas eu gritei por socorro e logo veio gente defender-me; o teu padrinho, o Flávio Ferreira, ainda tentou dar-lhe umas arrochadas, mas eu não deixei, impedi-o, apesar de tudo ainda gostava dele!            
- Eu nunca o vi!
- Pois não, depois de tu nasceres, terias uns três meses de vida, ele foi-se embora para Espanha com a outra, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima.
- E assim ficámos os dois, eu e o Olavo, como sendo filhos de pai incógnito!
- Infelizmente assim é; todos ficaram sendo de pais incógnitos, mas olha que eu não tive culpa, é o destino, eu nem queria nada com o teu pai, nem sei como isso aconteceu, eu era uma mulher só, já não era nova, queria tentar pelo menos constituir o meu lar, mas quem nasce malfadado tarde ou nunca encontrará uma migalha de felicidade; coitada de mim, nunca tive sorte com os homens, fizeram pouco de mim, aproveitaram-se da minha fragilidade, e o azar sempre me acompanhou na vida. Nasci pobre; e quem nasce pobre acabará quase sempre por morrer da mesma maneira. A minha única riqueza é a liberdade e os filhos. Sobretudo tu que és o mais novo e tens estado sempre ao meu lado, a aturar os meus infortúnios, as minhas infelicidades.
- Os dois meus irmãos mais velhos só são seus filhos de nome, deu-os à luz mas não os criou, não viveu com eles; o Olavo foi para Lisboa aos trezes anos de idade. Restei eu, mas você não me tem dado grandes alegrias, podia emendar-se.    
- É tarde para isso, demasiado tarde. Passei muita desgraça, sofri muito, nunca compreendi o mundo e as suas gentes, hoje sou um farrapo humano; não me peças impossíveis. // continua...

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