DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Cartas de um castrejo
9.ª -
«Senhor Redactor: já posso, enfim,
após um mês e tal de impossibilidade involuntária – salvo quando fui pagar a
décima – sair do meu tugúrio. Com caminhos encharcados, o frio ainda
imprimaveril, com o medo que, a um doente, imprime o haver sofrido, farto de um
ar irrespirável, que me pode agravar
os padecimentos crónicos, causados, por último, deste viver inactivo, resolvi
expor-me e caminhar até à branda. Logo, ao abandonar o páteo, fitei-a e não me
iludi ao pensar que as mouras do castelo haviam assoalhado por ali o seu
bragal. A caminho, pois, por um sol que a tonalidade doirada das montanhas
juntava um calor… As velhas mouras do castelo cumprimentaram-me da porta falsa,
com os seus lencinhos alvos e desejaram-me boa viagem, com recomendação
especial de lhes olhar pelo soalheiro. Como extasiado, ou educado à inverneira,
o meu gorro de pêlo de raposa, que cacei quando rapaz (e que bons ovos ela me
rendeu), cortejou as damas velhas mas de cabelos de oiro…! Passo, num pulo, à
vila (…). Visito o digno professor, que dos altos varandins me convida a subir,
o que faço com presteza, apesar dos meus sessenta! Trocamos impressões de todos
os matizes e feitios. Impressionou-me com a sua fina verve e conhecimento
claro, puro, perfeitíssimo do estado da sociedade actual: - «um descalabro», (…), «um descalabro!» Repetia-me ele, com a convicção plena do que afirmava. Uns
conselhos profiláticos (o professor também conhece os mais recônditos fundos da
medicina) e … adeus! A caminho do estendal, que as boas velhas mouras do
castelo me recomendaram e a caminho do meu outro lar. Aqui e acolá um amigo me espreita e convida à palestra. Nada, nada, a
caminho; e, na volta, vos direi o que vos apraz. Atravesso a ponte que
sobrepõe, ainda, o regato caudaloso. Na frente, o cemitério, juncado de cruzes
negras, negras!... Lá, no alto, alveja a neve, a convidar-me a guardar o
soalheiro. Calçada a riba. As chocas das vacas, a caminho do eido, dão-me
ânimo. Subo, subo; e, guardando o estendal, busco o meu querido lar, onde
depois duma frugal refeição, adormeço… De manhã a neve é plana. As velhas do
castelo haviam estendido de novo os seus fragais. Castro Laboreiro,
26/3/1916.»
Nota: esta carta fala-nos da ida da inverneira para a branda; todos os anos isso acontecia. Falar-vos-ei um dia sobre este interessante assunto.
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