domingo, 13 de setembro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




Cartas de um castrejo

9.ª - «Senhor Redactor: já posso, enfim, após um mês e tal de impossibilidade involuntária – salvo quando fui pagar a décima – sair do meu tugúrio. Com caminhos encharcados, o frio ainda imprimaveril, com o medo que, a um doente, imprime o haver sofrido, farto de um ar irrespirável, que me pode agravar os padecimentos crónicos, causados, por último, deste viver inactivo, resolvi expor-me e caminhar até à branda. Logo, ao abandonar o páteo, fitei-a e não me iludi ao pensar que as mouras do castelo haviam assoalhado por ali o seu bragal. A caminho, pois, por um sol que a tonalidade doirada das montanhas juntava um calor… As velhas mouras do castelo cumprimentaram-me da porta falsa, com os seus lencinhos alvos e desejaram-me boa viagem, com recomendação especial de lhes olhar pelo soalheiro. Como extasiado, ou educado à inverneira, o meu gorro de pêlo de raposa, que cacei quando rapaz (e que bons ovos ela me rendeu), cortejou as damas velhas mas de cabelos de oiro…! Passo, num pulo, à vila (…). Visito o digno professor, que dos altos varandins me convida a subir, o que faço com presteza, apesar dos meus sessenta! Trocamos impressões de todos os matizes e feitios. Impressionou-me com a sua fina verve e conhecimento claro, puro, perfeitíssimo do estado da sociedade actual: - «um descalabro», (…), «um descalabro!» Repetia-me ele, com a convicção plena do que afirmava. Uns conselhos profiláticos (o professor também conhece os mais recônditos fundos da medicina) e … adeus! A caminho do estendal, que as boas velhas mouras do castelo me recomendaram e a caminho do meu outro lar. Aqui e acolá um amigo me espreita e convida à palestra. Nada, nada, a caminho; e, na volta, vos direi o que vos apraz. Atravesso a ponte que sobrepõe, ainda, o regato caudaloso. Na frente, o cemitério, juncado de cruzes negras, negras!... Lá, no alto, alveja a neve, a convidar-me a guardar o soalheiro. Calçada a riba. As chocas das vacas, a caminho do eido, dão-me ânimo. Subo, subo; e, guardando o estendal, busco o meu querido lar, onde depois duma frugal refeição, adormeço… De manhã a neve é plana. As velhas do castelo haviam estendido de novo os seus fragais. Castro Laboreiro, 26/3/1916.»   

     Nota: esta carta fala-nos da ida da inverneira para a branda; todos os anos isso acontecia. Falar-vos-ei um dia sobre este interessante assunto.

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