LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes
... (continuação)
III
O amor é como a
fruta: quando amadurece cedo de mais começa a apodrecer.
Agora, pé ante pé, vamos
escutar uma das minhas conversas com a Bera ali nos subúrbios da Vila. Este
idílico namoro começou quando eu abri a oficina e a mocinha acompanhava uma tia
que vinha trazer calçado para consertar. Era uma jovenzinha tímida, teria
dezasseis anos de idade, bonita como poucas. Os nossos olhares cruzaram-se, no
rosto de ambos apareceu aquela cor rosada, denunciadora de futuros arroubos.
Ouçamos então o diálogo:
- Boa tarde, Cândido, bons olhos te vejam. Até que por fim me fazes
uma visita; sou eu sempre que o faço.
- Já sabes que não posso assim do pé para a mão largar a oficina
para me encontrar contigo; ainda se morasses perto, mas são quase dois
quilómetros! Por outro lado, tu vais lá todos os dias, hoje é que não apareceste!
- Hoje não pude, tenho a minha mãe doente de cama; tive de fazer o
comer e tratar da casa. O médico já cá veio e diz que não é nada grave, dentro
de dois dias já se levanta, se calhar está grávida outra vez, que ela não é
nenhuma moça, mas às vezes!
- Sabes uma coisa? Falei com um emigrante e pedi-lhe uma opinião
sobre a minha hipotética ida para França. Diz que eu iria ter imensas
dificuldades, quer para lá chegar, quer depois quando lá estivesse, posso não
aguentar aquele trabalho duro, mas também pode ser que arranje trabalho numa
fábrica, aí já era mais leve. Que achas?
- Tu é que sabes. Tens a tua oficina, ganhas pouco mas é certinho,
se nos casarmos eu também ajudo, ando a aprender costura, tens a tua casa, está
velha mas arranja-se, umas telhas novas, uma caiadela e pronto, fica como nova,
não sei se farás bem, olha que aquilo é muito custoso, os que têm ido são
pessoas do campo ou das obras, habituadas a esses trabalhos pesados, só
estranham o sítio, os costumes e a língua; coitados, o francês para eles é um
bicho-de-sete-cabeças, mas para além disso não lhes custa nada.
- Talvez tenhas razão, por outro lado existe a questão do dinheiro,
como é que vou arranjar dez contos de réis, eu que não possuo um tostão, só vou
tendo o suficiente para pagar aos fornecedores, que a esses pago sempre, olha
que não lhes devo um centavo, contas são contas, até metia a cabeça num buraco
se lhes devesse alguma coisa, logo que eles chegam para receber pago-lhes, tu
até viste há dias, não reparaste como depressa fui buscar o dinheirinho à
gaveta? E não era assim tão pouco como isso!
- Depois também a tua mãe ficava sozinha, desamparada, coitada, já
está com um par de anos em cima dela, tu foste o último a nascer, vai ter um
grande desgosto.
- Desgosto grande irá ela ter quando eu assentar praça, já não
falta muito, e a maldita guerra até lá não acaba, não, que está para durar
segundo dizem, os negros querem matar todos os brancos, pô-los de lá para fora,
gritam que a África é deles. Eu preferia ir para a França, vale mais trabalhar
do que lutar na guerra, posso ficar ferido ou até morrer, que vale andar aqui
um tipo a trabalhar que nem um roceiro e depois deixar a pele em África, então
valia mais não ter nascido, não achas?
- Também não podes ser tão pessimista, mas que as coisas não são
fáceis, isso não são; ainda bem que eu sou mulher, não tenho esses problemas,
que qualquer dia até elas vão para as batalhas, os homens estão a emigrar e
depois não os há para a tropa, está tudo com medo da malvada, também não é para
menos, e então dizem que os pretos não são para brincadeiras, olha: até mataram
mulheres e crianças, uma tragédia; o jornalista na televisão falou em
carnificina, deve ser qualquer coisa muito grave, não sei, e os brancos estão a
fugir todos, só nas cidades é que ainda os há, segundo me disseram.
- E tu, se eu morrer casas com outro?!
- Cruzes, canhoto! Não comeces com essas coisas. Sabes bem que só
gosto de ti, desejo casar contigo, nem é bom falar disso, até dá azar; se
começas a pensar assim o melhor é ires para a França, ou para outro qualquer
país, o dinheiro hás-de arranjá-lo se Deus quiser, todos o conseguem, a minha
família, coitada, é toda sem vintém, só se o meu primo que já lá labuta há uns
anos emprestasse algum, mas são uns unhas-de-fome, só pensam neles, não ajudam
ninguém, olha que a nós nunca mandou um franco sequer, e o meu pai ajudou-o
muito quando ele era rapaz, deu-lhe muita malga de caldo, mas esquecem-se
depressa, são uns ingratos, uns egoístas. Sabes que o meu pai também está a
pensar ir? Coitado, é como tu, viveu sempre na oficina, não tem força nenhuma,
não desenvolveu os músculos, não sei se aguentará, mas que se há-de fazer, vê
os outros meter pé ao caminho e não lhes quer ficar atrás, esse não tem problemas
de tropa, no tempo dele não havia guerra, deram-no logo desobrigado, nem chegou
a vestir a farda, e diz ele que teve pena, pois a tropa é para os homens,
aqueles que se livram são como as donzelas, esse complexo ninguém lho tira,
agora ir para a França é como compensar esse ato, quer armar em forte, vamos é
ver se aguenta, eu não acredito muito, e a vida até está a melhorar um
bocadinho, tem os filhos quase criados, eu já ajudo, o meu irmão é que ainda
anda na escola, mas qualquer dia já tem a 4.ª classe.
- Só se eu fosse com o teu pai, pode ser que o teu primo nos
auxilie lá, nos arranje um trabalhinho leve, porque eu se vou para as obras
rebento, estouro como uma castanha na brasa, mas olha que os rapazes como eu
por lá andam, quem sabe? O ser humano adapta-se. // (continua)...
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