sábado, 19 de setembro de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha


desenho de Rui Nunes

... (continuação)

III

     O amor é como a fruta: quando amadurece cedo de mais começa a apodrecer.


     Agora, pé ante pé, vamos escutar uma das minhas conversas com a Bera ali nos subúrbios da Vila. Este idílico namoro começou quando eu abri a oficina e a mocinha acompanhava uma tia que vinha trazer calçado para consertar. Era uma jovenzinha tímida, teria dezasseis anos de idade, bonita como poucas. Os nossos olhares cruzaram-se, no rosto de ambos apareceu aquela cor rosada, denunciadora de futuros arroubos. Ouçamos então o diálogo:

- Boa tarde, Cândido, bons olhos te vejam. Até que por fim me fazes uma visita; sou eu sempre que o faço.
- Já sabes que não posso assim do pé para a mão largar a oficina para me encontrar contigo; ainda se morasses perto, mas são quase dois quilómetros! Por outro lado, tu vais lá todos os dias, hoje é que não apareceste!
- Hoje não pude, tenho a minha mãe doente de cama; tive de fazer o comer e tratar da casa. O médico já cá veio e diz que não é nada grave, dentro de dois dias já se levanta, se calhar está grávida outra vez, que ela não é nenhuma moça, mas às vezes!
- Sabes uma coisa? Falei com um emigrante e pedi-lhe uma opinião sobre a minha hipotética ida para França. Diz que eu iria ter imensas dificuldades, quer para lá chegar, quer depois quando lá estivesse, posso não aguentar aquele trabalho duro, mas também pode ser que arranje trabalho numa fábrica, aí já era mais leve. Que achas?      
- Tu é que sabes. Tens a tua oficina, ganhas pouco mas é certinho, se nos casarmos eu também ajudo, ando a aprender costura, tens a tua casa, está velha mas arranja-se, umas telhas novas, uma caiadela e pronto, fica como nova, não sei se farás bem, olha que aquilo é muito custoso, os que têm ido são pessoas do campo ou das obras, habituadas a esses trabalhos pesados, só estranham o sítio, os costumes e a língua; coitados, o francês para eles é um bicho-de-sete-cabeças, mas para além disso não lhes custa nada.
- Talvez tenhas razão, por outro lado existe a questão do dinheiro, como é que vou arranjar dez contos de réis, eu que não possuo um tostão, só vou tendo o suficiente para pagar aos fornecedores, que a esses pago sempre, olha que não lhes devo um centavo, contas são contas, até metia a cabeça num buraco se lhes devesse alguma coisa, logo que eles chegam para receber pago-lhes, tu até viste há dias, não reparaste como depressa fui buscar o dinheirinho à gaveta? E não era assim tão pouco como isso!
- Depois também a tua mãe ficava sozinha, desamparada, coitada, já está com um par de anos em cima dela, tu foste o último a nascer, vai ter um grande desgosto.
- Desgosto grande irá ela ter quando eu assentar praça, já não falta muito, e a maldita guerra até lá não acaba, não, que está para durar segundo dizem, os negros querem matar todos os brancos, pô-los de lá para fora, gritam que a África é deles. Eu preferia ir para a França, vale mais trabalhar do que lutar na guerra, posso ficar ferido ou até morrer, que vale andar aqui um tipo a trabalhar que nem um roceiro e depois deixar a pele em África, então valia mais não ter nascido, não achas?
- Também não podes ser tão pessimista, mas que as coisas não são fáceis, isso não são; ainda bem que eu sou mulher, não tenho esses problemas, que qualquer dia até elas vão para as batalhas, os homens estão a emigrar e depois não os há para a tropa, está tudo com medo da malvada, também não é para menos, e então dizem que os pretos não são para brincadeiras, olha: até mataram mulheres e crianças, uma tragédia; o jornalista na televisão falou em carnificina, deve ser qualquer coisa muito grave, não sei, e os brancos estão a fugir todos, só nas cidades é que ainda os há, segundo me disseram. 
- E tu, se eu morrer casas com outro?!
- Cruzes, canhoto! Não comeces com essas coisas. Sabes bem que só gosto de ti, desejo casar contigo, nem é bom falar disso, até dá azar; se começas a pensar assim o melhor é ires para a França, ou para outro qualquer país, o dinheiro hás-de arranjá-lo se Deus quiser, todos o conseguem, a minha família, coitada, é toda sem vintém, só se o meu primo que já lá labuta há uns anos emprestasse algum, mas são uns unhas-de-fome, só pensam neles, não ajudam ninguém, olha que a nós nunca mandou um franco sequer, e o meu pai ajudou-o muito quando ele era rapaz, deu-lhe muita malga de caldo, mas esquecem-se depressa, são uns ingratos, uns egoístas. Sabes que o meu pai também está a pensar ir? Coitado, é como tu, viveu sempre na oficina, não tem força nenhuma, não desenvolveu os músculos, não sei se aguentará, mas que se há-de fazer, vê os outros meter pé ao caminho e não lhes quer ficar atrás, esse não tem problemas de tropa, no tempo dele não havia guerra, deram-no logo desobrigado, nem chegou a vestir a farda, e diz ele que teve pena, pois a tropa é para os homens, aqueles que se livram são como as donzelas, esse complexo ninguém lho tira, agora ir para a França é como compensar esse ato, quer armar em forte, vamos é ver se aguenta, eu não acredito muito, e a vida até está a melhorar um bocadinho, tem os filhos quase criados, eu já ajudo, o meu irmão é que ainda anda na escola, mas qualquer dia já tem a 4.ª classe.

- Só se eu fosse com o teu pai, pode ser que o teu primo nos auxilie lá, nos arranje um trabalhinho leve, porque eu se vou para as obras rebento, estouro como uma castanha na brasa, mas olha que os rapazes como eu por lá andam, quem sabe? O ser humano adapta-se. // (continua)...    


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