MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
...(continuação)
O Dr. António de Castro Sousa e Meneses, depois de uma estadia de mais de seis anos na Ilha Terceira, regressou à pátria e acolheu-se à terra natal, entretendo-se a feitorizar os bens da Casa e a conversar com os letrados e os amigos. Solteirão e amante da sua terra, não perdia oportunidade para realçar as belezas de Melgaço, nem para profligar os tratantes e os canalhas. Culto e lido, não era poeta, mas fazia versos. Escrevia-se com muitos colegas e com muitos dos licenciados frequentadores de Coimbra no seu tempo de estudante. // Andam na mão de poucos melgacenses a cópia de uma sua carta, a desfazer nos melgaçofobos e só nas mãos de alguns rapazes inconscientes e de moral relaxada, cedo caídos no monturo da lascívia e da obscenidade, a cópia de um soneto atribuído ao seu estro. A carta mostra o seu bairrismo, mas o soneto era bem dispensável, porque o frade reles, ordinário e torpe, que o provocou, nunca esteve em Melgaço, por ter nascido e vivido sempre no alcouce ([1]) da mãe que o gerou.
O Dr. António de Castro,
que faleceu no dia 10/2/1828, deixando testamento apenas com disposições
temporais, era homem de honra e brio e tinha fervoroso culto pela pátria e pelo
torrão natal; como queria ser livre num país livre, abraçou, e só por isso, a
causa da revolta e deu-lhe desde sempre todo o seu entusiasmo. Ao entrar
naquela Sala do Conselho atingiu logo o fim da convocação feita pelo seu amigo
e ouvindo também as confidências do fidalgo galego, tomou parte activa na
conferência e, vivamente impressionado, viu-a decorrer numa atmosfera quente de
patriotismo e de elevação moral. Entre aqueles quatro homens não houve uma
única discrepância; nem mesmo surgiu uma sombra fugaz a empanar o brilho da
conversa ou o entusiasmo da causa. Como todos quatro eram excelsos patriotas,
espíritos compreensivos e inteligentes, os dois fidalgos nascidos e criados em
Melgaço assumiram desde a primeira hora a direcção do movimento. O espanhol já
assentara com o cunhado sobre a actuação da sua gente e o Corregedor, como
homem de fora parte, havia de emprestar-lhe apenas o prestígio do seu cargo e
dar-lhe todo o calor de português. Norteados por estes princípios, o fidalgo
espanhol saiu logo da casa do cunhado e foi buscar a sua gente espalhada
algures pelas casas dos amigos e o Corregedor despediu-se em seguida para ir em
demanda dos vereadores e preparar a sessão – e solene havia de ser, pelo
assunto a versar, a sessão daquela memorável tarde.
Ao transpor os humbrais
daquela casa acolhedora o Juiz de Fora ia radiante e sorria; sorria
prazenteiramente ao pensar no cabeçalho dos mandados e das cartas de sentença.
No resto do seu triénio nunca mais os escrivães haviam de escarrapachar nos
autos: - o Dr. Filipe Osório, etc., Corregedor com exercício de Juiz de Fora
nesta Vila de Melgaço, etc. «pelo Imperador dos Franceses, rei de Itália, Protector da Confederação
do Reno, ed-cétera.» Naquela manhãzinha de Junho, ao
regressar a sua casa, o distinto magistrado foi deixando atrás de si uma onda
de pasmo e de cochichos, porque pela primeira vez o iam vendo, a ele venerando
Juiz de Fora, andar pelas ruas de Melgaço sem empunhar a vara branca da
justiça. Tinha-lhe esquecido; tinha-a deixado ficar na casa do fidalgo Caetano
José de Abreu Soares.
Naquela sala continuaram a
conversar os dois fidalgos naturais de Melgaço, debatendo a melhor forma de alcançarem
a vitória do movimento, sem contudo lhe traçarem qualquer plano. Os criados
foram os elementos de ligação e, graças aos seus serviços, não tardaram a
chegar ali outras pessoas. Naquela casa compareceu e se inteirou do movimento o
escrivão Tomás. Tomás José Gomes de Abreu, por seu pai Leão José Gomes de
Abreu, depositário das sisas nesta Vila já em 1782 e falecido em 15/4/1829 –
sexta-feira santa – a dormir o sono infindo debaixo dos lajedos da capela de
Nossa Senhora do Amparo, anexa à Matriz, ia entroncar, por bastardia, em Frei
Domingos Gomes de Abreu Coelho de Novaes, o melgacense que combatera e rezara. Devia
seguir a carreira eclesiástica, como seu irmão Bernardo, que professou na Ordem
de Frades Menores, no Convento de São Francisco, da cidade do Porto, tomando o
nome de Frei Bernardo de Nossa Senhora da Orada, e faleceu na Calçada em 1824.
Seus pais, em 22/12/1787,
declararam ter autorizado o filho Tomás a tomar ordens menores até completar as
de missa, por ser a profissão a gosto deles e a mais apetecida pelo moço e, em
consequência, fizeram-lhe o património: uma casa no Rio do Porto, uma horta no
Caneiro, um circundado nos Chãos e a Coutada da Travessa, em Rouças; mas ele
abandonou pouco depois os estudos eclesiásticos e apareceu-nos mais tarde
tabelião do público judicial e notas e casado com D. Constança Teresa de Araújo
Lima, cujos pais moravam na Rua Direita, desfazendo apenas aquela escritura de
património, quando o irmão saiu do Porto e passou a viver na diocese de Braga,
facilitando assim ao seu velho pai estabelecer nova côngrua para a sustentação
de Frei Bernardo, na modalidade exigida pelo prelado. // Convivendo com os
progenitores na Calçada, na casa hoje derruída, de São Benedito, por morte deles
e do irmão ficou senhor e possuidor da casa e de dois belos campos de rega e
lima, faceados por caminhos a circundá-la; da «propriedade chamada Orada, cerrada e
circundada sobre si que se compõe de terras de pão e vinho com uma nascente de
água dentro que parte do nascente com terras de António de Abreu Magalhães e do
poente com a feira do gado desta vila em preço e quantia de duzentos mil réis»,
uma pequena parte, afinal, do reguengo dado por D. Afonso Henriques ao D. Abade
de Fiães, João e a seus frades no nono dia das Calendas da era de 1211, ou seja
em 24/10/1173; dum cerrado nos Chãos; das Pedreiras de Baixo e de alguns outros
rústicos e urbanos.
Não era rico de bens ao
luar; mas tinha a subsistência da família assegurada pelos magros rendimentos
do lugar público de que era serventuário, e pelas ajudas do cunhado Francisco
José Pereira, comerciante do Campo da Feira de Fora. Espírito religioso, frequentou
as igrejas e fez-se inscrever irmão das várias confrarias. Em 6/11/1786 tomou o
hábito da Ordem Terceira de São Francisco, aqui estabelecida desde Maio de 1746,
pagando de entrada 120 réis e dois meses depois do levantamento melgacense
contra os franceses, na festa de São Roque, feita no Convento de Nossa Senhora
da Conceição, noticiava-se ao público que Tomás José Gomes de Abreu era o novo
secretário da mesa daquela Ordem Terceira.
A sua vida decorreu no
meio das surpresas dos pleitos do tribunal, no constante cuidado de fazer e
assegurar os contratos dos outros e na placidez da vida caseira educando o
rancho de filhos, que Deus lhe deu, futuros herdeiros não daquele comerciante,
mas de sua mulher D. Ana Maria de Araújo e, como tal e por má sorte, vítimas do
Tomás das Quingostas, como convence o articulado pelo distinto e hábil
causídico deles nuns autos cíveis de libelo móvel contra Maria Teresa de
Castro, mãe e herdeira do famigerado melgacense:
«P. Que no ano de mil e oitocentos e vinte
e seis o A[utor] Francisco José Pereira, e sua mulher, ainda viva, Ana Maria de
Araújo, temendo-se das guerrilhas que naquela época ameaçavam esta Vila, aonde
chegaram a entrar por vezes, deram a guardar ao Reverendo Manuel José Esteves,
do lugar da Cela, do concelho de Valadares, toda a mobília e trastes preciosos,
que possuíam.
P. - Que tendo, o dito
Padre Manuel José Esteves os ditos trastes e mobília do A[utor] em sua casa
Tomás Joaquim Codeço, filho da Ré, associado com uns facinorosos ladrões e
destemidos, de propósito e caso pensado se foram na noite de 17 para 18 do mês
de Fevereiro do ano de 1827 a casa do dito Padre Manuel José Esteves, e sem que
este pudesse resistir a tanta força armada lhe roubou o dito Tomás toda a
mobília e trastes constantes da relação junta, que requerem se leia às
testemunhas; e para que o mesmo Tomás não acabasse de roubar o mais que ali
existia pertencente aos A[utores] teve o mencionado Padre de dar ao mesmo Tomás
em moeda corrente a quantia de 34$080 réis que o A[utor] desembolsou para
indemnizar o Padre.
P. - Que além disso a
12/5/1828 veio o dito Tomás a casa do A[utor] e o constrangeu a que lhe desse
da sua loja as fazendas e dinheiro constante da mesma relação; tornando-lhe a
pedir em 25/2/1836 cinco côvados de baeta que o A[utor] teve de comprar, e lha
remeteu pelo mesmo portador que a veio pedir e buscar; importando tudo na
quantia de 280$100 réis, preço em que os A[utores] o estimam, ou por aquilo que
se liquidarem respeito a mobília e trastes.» // (continua)...
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