quinta-feira, 14 de maio de 2015

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

                                                              Por Joaquim A. Rocha



        ...(continuação)...

- Você é uma anarquista, viveu sempre sem regras, sem lei e sem grei, e ainda por cima acredita em bruxos.
- Agora não quero saber de nada, mas nesse tempo tinha ilusões. Este daqui prometeu-me mundos e fundos e eu, toca de ceder! Nasceu-me a criança, um robusto rapaz, e ele pôs-se a andar para as Américas, para a Venezuela, ou lá como se chama. Nem viu o filho que nasceu. E olha que é a cara dele – tal e qual. Os meus pais, zangadíssimos, ficaram com ele. Agora eram dois. Eu não podia deixar de trabalhar – era disso que eu vivia. Mas a minha mãe também teve culpas: escreveu ao de Lisboa a pedir-lhe que me deixasse em paz, ele era de gente fina e nós não passávamos de gente pobre e analfabetos, sem nenhumas letras. Coitada, estava convencida de que ele me queria fazer outro trambolho e abandonar-me depois. Mas eu julgo que ele gostava mesmo de mim. Mas não podia casar comigo, os pais dele não consentiriam, só me desejava para amásia. Depois teve uma doença, a maldita tuberculose, e morreu solteiro. Que a sua alma descanse em paz, lá onde estiver.
- Nunca mais o viu?
- Nunca mais! Tinha a Susana quase dezoito anos quando ele morreu. Foi uma irmã dele, a mais nova, a menina Mafalda, que nos deu a notícia, ainda se deve encontrar por aí a carta.
- E a Susana, encontrou-se alguma vez com o pai?
- Não, mas foi porque ela não quis. Nunca a proibi de ir para Lisboa, para junto dele. Só que ela estava muito pegada aos avós, até lhes chamava pais, foram eles que a criaram. Só quando eles morreram é que ela foi para Lisboa. Nessa altura já o pai dela tinha morrido. Olha que se parece com eles, não é do nosso lado. Devia ter ido, estudavam-na e depois casava com um homem de posição, assim é pobre como Job, e só ficou com a 3.ª classe da instrução primária. Mas é o destino, é o que tem de ser.
- Coitada, também não teve muita sorte, aconteceu-lhe o mesmo que lhe aconteceu a si, só que desta vez saiu na rifa um marçano.    
- Sim, mas segundo ela afirma não casou com ele porque não quis, ele foi para o estrangeiro e mandou-a ir, só que ela já o tinha esquecido, já tinha outro namorado.
- As duas tiveram caminhos paralelos, só que ela casou e você não.
- Não casei porque não quis, homens nunca me faltaram para casar. Mas eu sou livre, não quero cangas nem peias. Canté! E criei-vos sozinha. E dei-vos a escola, que naquele tempo nem todos a tinham, mas a vós dei-vo-la. E um ofício. O teu irmão Olavo preferiu ir para Lisboa, para junto do outro irmão, o Ambrósio, para a terra grande, isto aqui não lhe servia, bem o quis meter na lavoura, mas fugiu-lhe a sete pés, olha que é uma vida saudável e tem-se sempre o pãozinho para a boca; ofício também não quis, meti-o de funileiro, mas achou que era sujo; é delicado, o rapaz. Que trabalhe em Lisboa, que lá vai ver o que é bom; os marçanos andam todo o dia com cabazes às costas, a subir escadas, carregados que nem bestas. É para saber o que custa, o pão não aparece na mesa, é preciso ganhá-lo, tem bom corpo. Tu, coitadinho, és um enfezado, saíste-me fraquinho, cinco réis de gente, mas arguto que nem um rato; se estivesses na cidade até podias estudar. Aqui, olha, tens o teu ofício, não é limpo, não, mas sempre ganhas alguma coisa para comer, que agora o tempo não está para luxos, nunca os tivemos, só quando estive com a minha madrinha, aí sim vestia bem e andava com a barriguinha cheia, mas aquilo também não podia durar a vida inteira, qualquer dia teria de acabar, era bom de mais para mim. «Quem pobre nasce, pobre morre», lá diz o ditado. (continua)...

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