LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
...(continuação)...
- Você é uma anarquista, viveu sempre sem regras, sem lei e sem
grei, e ainda por cima acredita em bruxos.
- Agora não quero saber de nada, mas nesse tempo tinha ilusões.
Este daqui prometeu-me mundos e fundos e eu, toca de ceder! Nasceu-me a
criança, um robusto rapaz, e ele pôs-se a andar para as Américas, para a Venezuela,
ou lá como se chama. Nem viu o filho que nasceu. E olha que é a cara dele – tal
e qual. Os meus pais, zangadíssimos, ficaram com ele. Agora eram dois. Eu não
podia deixar de trabalhar – era disso que eu vivia. Mas a minha mãe também teve
culpas: escreveu ao de Lisboa a pedir-lhe que me deixasse em paz, ele era de
gente fina e nós não passávamos de gente pobre e analfabetos, sem nenhumas
letras. Coitada, estava convencida de que ele me queria fazer outro trambolho e
abandonar-me depois. Mas eu julgo que ele gostava mesmo de mim. Mas não podia
casar comigo, os pais dele não consentiriam, só me desejava para amásia. Depois
teve uma doença, a maldita tuberculose, e morreu solteiro. Que a sua alma
descanse em paz, lá onde estiver.
- Nunca mais o viu?
- Nunca mais! Tinha a Susana quase dezoito anos quando ele morreu.
Foi uma irmã dele, a mais nova, a menina Mafalda, que nos deu a notícia, ainda
se deve encontrar por aí a carta.
- E a Susana, encontrou-se alguma vez com o pai?
- Não, mas foi porque ela não quis. Nunca a proibi de ir para
Lisboa, para junto dele. Só que ela estava muito pegada aos avós, até lhes
chamava pais, foram eles que a criaram. Só quando eles morreram é que ela foi
para Lisboa. Nessa altura já o pai dela tinha morrido. Olha que se parece com
eles, não é do nosso lado. Devia ter ido, estudavam-na e depois casava com um
homem de posição, assim é pobre como Job, e só ficou com a 3.ª classe da
instrução primária. Mas é o destino, é o que tem de ser.
- Coitada, também não teve muita sorte, aconteceu-lhe o mesmo que
lhe aconteceu a si, só que desta vez saiu na rifa um marçano.
- Sim, mas segundo ela afirma não casou com ele porque não quis,
ele foi para o estrangeiro e mandou-a ir, só que ela já o tinha esquecido, já
tinha outro namorado.
- As duas tiveram caminhos paralelos, só que ela casou e você não.
- Não casei porque não quis, homens nunca me faltaram para casar.
Mas eu sou livre, não quero cangas nem peias. Canté! E criei-vos sozinha. E
dei-vos a escola, que naquele tempo nem todos a tinham, mas a vós dei-vo-la. E
um ofício. O teu irmão Olavo preferiu ir para Lisboa, para junto do outro
irmão, o Ambrósio, para a terra grande, isto aqui não lhe servia, bem o quis
meter na lavoura, mas fugiu-lhe a sete pés, olha que é uma vida saudável e
tem-se sempre o pãozinho para a boca; ofício também não quis, meti-o de
funileiro, mas achou que era sujo; é delicado, o rapaz. Que trabalhe em Lisboa,
que lá vai ver o que é bom; os marçanos andam todo o dia com cabazes às costas,
a subir escadas, carregados que nem bestas. É para saber o que custa, o pão não
aparece na mesa, é preciso ganhá-lo, tem bom corpo. Tu, coitadinho, és um
enfezado, saíste-me fraquinho, cinco réis de gente, mas arguto que nem um rato;
se estivesses na cidade até podias estudar. Aqui, olha, tens o teu ofício, não
é limpo, não, mas sempre ganhas alguma coisa para comer, que agora o tempo não
está para luxos, nunca os tivemos, só quando estive com a minha madrinha, aí
sim vestia bem e andava com a barriguinha cheia, mas aquilo também não podia
durar a vida inteira, qualquer dia teria de acabar, era bom de mais para mim. «Quem pobre nasce, pobre morre», lá diz o
ditado. (continua)...
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