sexta-feira, 8 de maio de 2015

O SONHADOR DOS MONTES DA AGUIEIRA

romance
                                                                Por José Alfredo Cerdeira



Prefácio


     A rosa e o cravo, e demais flores, nascem no jardim, e depois de cortadas vão alegrar a sala ou o gabinete do ser humano, que as frui quando verdejantes e as bota ao lixo logo que murchas. O romance, tal como as flores, também nasce num jardim, mas de outra espécie: naquele circula a seiva, neste circula a imaginação. Ao cheiro das flores dá-se o nome de perfume; ao do romance, fragrância. Os odores daquelas é levado ao cérebro pelas correntes de ar, isto é, vêm de fora; no romance, o odor, é conduzido ao cérebro por um circuito interno, cujo fio, de tão fino, se torna invisível e incolor.
     O romance do meu amigo José Cerdeira provocou em mim todas as sensações: o sonho, a ilusão, a incerteza, a arrogância, a humildade, a descrença e até a dor! Porque o sonhador está em todos nós: na criança, no adolescente, no adulto, no poeta e no materialista. Quem não se imaginou noutro planeta, onde o bem-estar, a justiça, a beleza, a camaradagem leal e franca, predominassem? Quem?! Quem não gostaria de ser rico, poderoso, ter tudo: palácios sumptuosos, tesouros, barcos de recreio, bons carros, criadagem, exércitos, tudo aquilo que nos torna alguém aos olhos dos outros? Aquilo que nos transforma em seres superiores, quase deuses do Olimpo. Um dia, já não sei quando, sonhei ser uma enorme águia, com gigantescas asas, com olhos que tudo viam, voando sem fim, por céus jamais trilhados; mas o maldito, que no início era belo, enveredou pelo trágico: sem forças, quase cego, tombei estrondosamente sobre montanhas e serras, cujas rochas, afiadas, perfuraram meu frágil corpo. Fora um sonho, e durara pouco tempo!   
      A personagem principal do romance, Morgado, sonhou e viu realizados alguns dos seus belos e extravagantes sonhos: falou com extra-terrestres, embora não lhes tenha visto o rosto, como não vimos nós os rostos dos antigos atores gregos quando pisaram o palco, viu as maravilhas da sua ciência e tecnologia, o seu avanço de milénios em relação aos terráqueos, extasiou-se com as jóias, paramentos, e os quadros dos antigos monges, escorraçados do seu convento pelos moiros no século X, tirou partido do tesouro por eles deixado, comandou exércitos de funcionários, criou inúmeras empresas, e com poucas habilitações literárias deu cartas no mundo da alta finança, casou com a moça mais bonita da sua freguesia e teve lindos filhos. E se não fossem os raios dos trovões terem-lhe interrompido outro dos seus homéricos devaneios, ter-se-ia guindado às esferas do poder político e económico universal, e certamente americanos, russos e chineses, ajoelhar-se-iam à sua passagem! Esse sonho não vingou, mas o aparente fracasso espevitou-o sobremaneira para voos mais realizáveis e frutíferos. A sua vida foi curta, é certo, mas a sua obra é copiosa! O tempo não se mede pela duração, dizia o filósofo, mas pela intensidade.
     A personagem feminina, Isabel, parece estar esquecida, mas não: a sua presença é constante, apesar do silêncio. É o anjo da guarda do rapaz, a sua retaguarda fortificada, a mãe dos seus filhos, enfim, o elo entre o passado e o futuro, a continuação. Apaga-se para ele brilhar; mas brilha quando ele se apaga!
     O autor deste romance está de parabéns: não só pelo livro, mas sobretudo pela sua excelente qualidade. Não é todos os dias que surge nos escaparates das livrarias um romance tão completo. Terá falhas certamente, mas também as têm qualquer outra obra de arte – nada é perfeito, de acordo com aquilo que nos ensinaram os nossos avoengos e mestres. A perfeição é desígnio dos deuses, dos entes supremos, que pairam em espaços inacessíveis ao simples mortal.                
    A fragilidade humana convive ali, no enredo, na trama romanesca, lado a lado com a vontade, com a força, com o querer. O autor soube magistralmente aproveitar as lendas antigas, as superstições, o ambiente mesquinho, e simultaneamente grandioso, da aldeia portuguesa, do caráter ambivalente do camponês. O mundo rural é caraterizado em toda a sua amplitude: o trabalho árduo e mal remunerado, a resignação, a inveja e a maledicência, a crendice e a religiosidade, a suspeita e o despeito, a honradez, tudo se misturando numa amálgama de contradições e coerências.
     Não se pode ler este livro e ficar indiferente – mexe connosco! Fere e rasga a nossa sensibilidade, retrata-nos na nossa essência mais profunda. A ganância, a luta por objetivos quase impossíveis de alcançar, a curiosidade, a morte, tudo está ali, tudo contém!     
                                                               

                                                                                                           Joaquim Rocha

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