O SONHADOR DOS MONTES DA AGUIEIRA
romance
Por José Alfredo Cerdeira
Prefácio
A rosa e o cravo, e demais flores, nascem
no jardim, e depois de cortadas vão alegrar a sala ou o gabinete do ser humano,
que as frui quando verdejantes e as bota ao lixo logo que murchas. O romance,
tal como as flores, também nasce num jardim, mas de outra espécie: naquele
circula a seiva, neste circula a imaginação. Ao cheiro das flores dá-se o nome
de perfume; ao do romance, fragrância. Os odores daquelas é levado ao cérebro
pelas correntes de ar, isto é, vêm de fora; no romance, o odor, é conduzido ao
cérebro por um circuito interno, cujo fio, de tão fino, se torna invisível e
incolor.
O romance do meu amigo José Cerdeira
provocou em mim todas as sensações: o sonho, a ilusão, a incerteza, a
arrogância, a humildade, a descrença e até a dor! Porque o sonhador está em
todos nós: na criança, no adolescente, no adulto, no poeta e no materialista.
Quem não se imaginou noutro planeta, onde o bem-estar, a justiça, a beleza, a
camaradagem leal e franca, predominassem? Quem?! Quem não gostaria de ser rico,
poderoso, ter tudo: palácios sumptuosos, tesouros, barcos de recreio, bons
carros, criadagem, exércitos, tudo aquilo que nos torna alguém aos olhos dos
outros? Aquilo que nos transforma em seres superiores, quase deuses do Olimpo.
Um dia, já não sei quando, sonhei ser uma enorme águia, com gigantescas asas,
com olhos que tudo viam, voando sem fim, por céus jamais trilhados; mas o
maldito, que no início era belo, enveredou pelo trágico: sem forças, quase
cego, tombei estrondosamente sobre montanhas e serras, cujas rochas, afiadas,
perfuraram meu frágil corpo. Fora um sonho, e durara pouco tempo!
A personagem principal do romance,
Morgado, sonhou e viu realizados alguns dos seus belos e extravagantes sonhos:
falou com extra-terrestres, embora não lhes tenha visto o rosto, como não vimos
nós os rostos dos antigos atores gregos quando pisaram o palco, viu as
maravilhas da sua ciência e tecnologia, o seu avanço de milénios em relação aos
terráqueos, extasiou-se com as jóias, paramentos, e os quadros dos antigos
monges, escorraçados do seu convento pelos moiros no século X, tirou partido do
tesouro por eles deixado, comandou exércitos de funcionários, criou inúmeras
empresas, e com poucas habilitações literárias deu cartas no mundo da alta
finança, casou com a moça mais bonita da sua freguesia e teve lindos filhos. E
se não fossem os raios dos trovões terem-lhe interrompido outro dos seus
homéricos devaneios, ter-se-ia guindado às esferas do poder político e
económico universal, e certamente americanos, russos e chineses,
ajoelhar-se-iam à sua passagem! Esse sonho não vingou, mas o aparente fracasso
espevitou-o sobremaneira para voos mais realizáveis e frutíferos. A sua vida
foi curta, é certo, mas a sua obra é copiosa! O tempo não se mede pela duração,
dizia o filósofo, mas pela intensidade.
A personagem feminina, Isabel, parece
estar esquecida, mas não: a sua presença é constante, apesar do silêncio. É o
anjo da guarda do rapaz, a sua retaguarda fortificada, a mãe dos seus filhos,
enfim, o elo entre o passado e o futuro, a continuação. Apaga-se para ele
brilhar; mas brilha quando ele se apaga!
O autor deste romance está de parabéns: não
só pelo livro, mas sobretudo pela sua excelente qualidade. Não é todos os dias
que surge nos escaparates das livrarias um romance tão completo. Terá falhas certamente,
mas também as têm qualquer outra obra de arte – nada é perfeito, de acordo com
aquilo que nos ensinaram os nossos avoengos e mestres. A perfeição é desígnio
dos deuses, dos entes supremos, que pairam em espaços inacessíveis ao simples mortal.
A fragilidade humana convive ali, no
enredo, na trama romanesca, lado a lado com a vontade, com a força, com o
querer. O autor soube magistralmente aproveitar as lendas antigas, as
superstições, o ambiente mesquinho, e simultaneamente grandioso, da aldeia
portuguesa, do caráter ambivalente do camponês. O mundo rural é caraterizado em
toda a sua amplitude: o trabalho árduo e mal remunerado, a resignação, a inveja
e a maledicência, a crendice e a religiosidade, a suspeita e o despeito, a
honradez, tudo se misturando numa amálgama de contradições e coerências.
Não se pode ler este livro e ficar
indiferente – mexe connosco! Fere e rasga a nossa sensibilidade, retrata-nos na
nossa essência mais profunda. A ganância, a luta por objetivos quase
impossíveis de alcançar, a curiosidade, a morte, tudo está ali, tudo contém!
Joaquim
Rocha
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