ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico - Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
- Pouco havia a fazer ali. Os “turras” deviam estar radiantes. Aquela
acção tinha sido para eles um êxito completo, pleno: alguns mortos, muitos
feridos por balas e estilhaços, o aquartelamento praticamente arrasado! Ao
invés, as suas baixas, se as tiveram, deveriam ter sido ínfimas, a bem dizer,
insignificantes. A conclusão lógica a tirar de tudo isto seria a de que esta
pugna jamais poderia ser ganha de armas na mão. O inimigo não precisava de muita
soldadesca: poucos, bem treinados, conhecedores do terreno, moralizados,
chegavam e sobravam para um exército de cinquenta mil homens!
- Como iam longe as guerras clássicas –
comenta Henrique, lembrando-se dos filmes
que já vira acerca desse tema.
- Na mata eram impossíveis,
impraticáveis. Por outro lado, a ciência militar, o espantoso avanço
tecnológico, tornou obsoletas essas guerras. Agora, e sobretudo no futuro, com
a ajuda do computador, da robótica, as coisas já serão diferentes. Por este
andar, a sofisticação atingirá o seu auge dentro de poucas décadas. Prosseguindo:
Depois de, nesse sombrio local,
termos estado cerca de um dia, patrulhando a mata em redor, regressámos a Teixeira
Pinto na madrugada do dia seguinte. Escusado será dizer que durante a noite
ninguém conseguiu dormir. Horas longas, quase eternas. A vista doía de tanto
sono e tanto esforço para não lhe ceder, mas o medo, esse sentimento que corrói
a alma e nos torna pigmeus, pequeninos, era mais forte do que Morfeu.
Silêncios profundos, de vez em quando interrompidos pelos ruídos de
animais noctívagos, alimentavam ainda mais, se possível, a nossa ansiedade. Os
mosquitos, desprotegidos como estávamos, banqueteavam-se à vontade, sem
etiqueta, sem pedir licença, enchendo a pança, ao contrário de nós que tínhamos
uma lazeira dos diabos e nada para rilhar, nem uma migalha de alimento, nem uma
côdea de pão de milho sequer para enganar a fome!
- É o sofrimento na sua máxima
expressão! – diz o moço, com uma
expressão melancólica, comovido até às lágrimas.
- Bem o podes afirmar! Finalmente, a
aurora, radiante, surgiu no horizonte; e novos odores, fragrâncias primaveris
da floresta tropical, vieram desejar-nos os bons dias. Lembro-me de ter olhado,
olhos semi-cerrados, para aquele amanhecer e monologar: “que linda é a África e
como o ser humano a desrespeita, a conspurca!”
Em Teixeira Pinto toda a gente se pelava por saber o que se passara.
Nós, porém, fomos bastante lacónicos, parcos em pormenores; queríamos um banho,
comer e dormir. Pedimos a todos os santinhos que não nos maçassem durante umas
horas.
Banho… nem pensar! Não havia água nas torneiras. Podíamos ir ao rio
tomá-lo, mas estávamos demasiado fatigados para isso; por outro lado, corria-se
alguns riscos – quem sabe se na outra margem uma arma mortífera nos espreitava?
- Também já era azar a mais! – comentou Henrique, resfolegando.
- Já estávamos habituados. Assim,
comemos alguma coisa e em seguida fomos repousar o corpo e o espírito.
Acordei sobressaltado. Sonhara com aqueles horrores, com corpos
mutilados, com feras raivosas, da boca escorrendo-lhes sangue, a atacarem-nos
traiçoeiramente. Para me distrair um pouco peguei em algumas cartas e li-as.
- Por falar nisso, e aproveitando a
deixa: podia ler-me mais uma?
- Com certeza, terei todo o prazer
nisso:
Querido afilhado
A
continuação de boa saúde – esse é o meu desejo. Desculpe se há mais tempo não
lhe respondi, sei que isso é imperdoável, mas a causa desse atraso é o seguinte:
como queria que na próxima vez que escrevesse lhe mandasse a minha foto, estava
à espera que viessem cedo de Lisboa, foram lá para revelar, mas até à data ainda
não chegaram; portanto não se ponha a pensar coisas desnecessárias. Logo que
elas cheguem mando-lhe uma, mas vai reparar que não sou nenhuma beleza dessas
que aparecem nas revistas de modas.
Então,
afilhado, tem-se distraído alguma coisa? Aqui, nesta terra, é tudo muito
bonito, mas só que no verão foge toda a gente para as praias e ao domingo é uma
autêntica pasmaceira. Se calhar este ano também vou uns dias, estou a precisar
muito, a minha pele é demasiado branquinha. Que me diz disso?
No Minho litoral temos praias
lindíssimas, com muito iodo, a água no entanto é um nadinha fria, quase gelada;
anos há que é impossível tomar um bom banho! Conhece Ofir, Âncora ou Moledo?
Segundo me disseram, em África existem muitas praias e boas, mas estão cheias
de tubarões e de crocodilos – será verdade?! Não se arrisque.
Por
hoje nada mais, receba muitos abraços da madrinha muito amiga. E escreva-me
depressa, sim?!...
Fernanda
- Já lhe estava a pedir para a deixar
ir à praia – brinca Henrique, folgazão.
- Nem queiras saber como desabafei! Ora
essa! Só me faltava esta; a falar-me de divertimento, de praias, a mim que nem
sequer água tinha para tomar um duche! Achas isso agradável, decente?!
- Que quer o meu amigo? Que ela lhe
contasse desgraças, lhe falasse dos inúmeros desastres que ocorriam por esse
mundo fora, da fome que grassava em muitos países, das doenças sem cura?!
- Não queria isso, não; sofrimentos
tinha-os eu à porta, não precisava dos alheios, mas considero uma afronta
ter-me perguntado se me divertia. Onde raio ela imaginou que eu estava? No
Casino do Estoril, na Feira Popular, nas praias algarvias?
- Bem, bem! Parece que tomava o assunto
muito a peito…
- Nem sequer respondo a essa subtileza.
Adiante:
Quatro da manhã. O alferes Barrelas, esguio como uma árvore em
crescimento, verdadeiro trinca espinhas, um dos mais irrequietos oficiais da
Companhia, irrompe, em altos brados, pela nossa camarata e ordena: «A pé! Pensam
que isto é um hotel de cinco estrelas? Ou julgam que estão em férias? Dentro de
cinco minutos quero-os todos formados.»
Com o corpo ainda dorido, com os olhos teimosamente fechados, vesti-me,
peguei na metralhadora e juntamente com os outros apresento-me na parada. Não
me apetecia mesmo nadinha ir a essa operação. Não conhecia exactamente o meu
peso, mas sentia-me fraco, débil, tísico! Saí da minha terra com cerca de
sessenta quilos; se agora pesasse cinquenta já me podia dar por satisfeito!
Manifestei ao meu alferes o receio de estar doente e a resposta não se
fez esperar: «Isto aqui não é para medricas: um homem é um homem.»
- E o Cândido que lhe respondeu?
- Não adiantaria argumentar; no
regresso, se regressasse, iria falar com o médico e logo se veria. Devido
àquela dor intensa no peito, temia estar tuberculoso. Tanta gente morrera já
com essa terrífica doença!
Antes de partirmos para a nova aventura pelas matas o capitão Fontelas
falou-nos: «Esta acção de hoje é apenas de rotina, quase um passeio! Vamos nas
viaturas até um determinado sítio e depois seguimos a pé. Levem, de qualquer
modo, munições e rações de combate para dois dias. Dirijam-se agora ao
refeitório e tomem o pequeno-almoço. Dentro de meia hora quero-os todos prontos
para arrancar.»
Mais nada! Quem éramos nós, filhos de deuses mirrados, de campónios sem
eira nem beira, de operários de segunda, de trolhas analfabetos, para tomarmos
conhecimento prévio da operação? Simples peças de uma máquina mais ou menos bem
montada, limitávamo-nos a cumprir ordens, a obedecer cegamente. Eles sabiam o
que convinha fazer: quando e como. A nossa cabeça, a nossa inteligência, os
nossos neurónios, ali não tinham qualquer utilidade, eram lixo! Só a presença
física, resistência, capacidade de persuadir pelo número, pela força bruta, se
levavam em conta.
- Num regime autoritário queria certamente
uma democracia militar! – ataca Henrique,
com alguma ironia.
- É uma força de expressão – eu sei que
não era possível. Continuando: entrámos nas camionetas e rolou-se cerca de uma
hora na estrada Teixeira Pinto a Cacheu. Parámos. Os carros voltaram para trás
e nós, depois de descermos, dirigimo-nos a pé ao posto de vigilância, Bachile,
que se encontrava a uns cinquenta metros da estrada. Nesse posto permaneciam
quinze homens, pertencentes a um batalhão mais antigo do que nós na Guiné, cujo
comando estava em Teixeira Pinto como o nosso. Um desses homens, o cozinheiro,
acabaria por morrer da maneira mais estúpida que se possa conceber. Como a sua
especialidade o retinha entre muros, um dia, possivelmente bem bebido (o vinho que nós bebíamos era misturado com
água para sobrar para eles), ofereceu-se para acompanhar os colegas numa
operação.
O comandante disse-lhe que não, ele era necessário no posto para
confeccionar a comida aos seus camaradas, pois quando regressassem viriam
esfomeados, não estava habituado àqueles caminhos, àqueles esforços, arrepender-se-ia
se fosse.
- Resultou, a sugestão, o conselho?
- Qual quê! Nada o demoveu. Quis ir à
viva força. «Só uma vez!» - implorou ele ao oficial.
- Até parece que a velha loba esfaimada
o chamava!
- Não voltou vivo, não! As balas de “Satã” trespassaram o seu voluntarioso
coração e o seu corpo agigantado. «O destino: ninguém lhe pode escapar!» Epitáfio
derradeiro sobre uma alma a caminho do além, da estrela mãe, ou da lousa fria.
- Soube, porventura, quais eram os
objetivos dessa saída?
- Um dos objetivos principais da nossa
ida seria, pelos vistos, rendê-los. Outro objetivo, fazer uma breve batida
pelos arredores, a fim de verificar se os “turras”
não andavam por perto.
A zona resplandecia de beleza. Algumas habitações, embora modestas,
indicavam-nos que ali não havia problemas de maior. O que mais me chamou a
atenção foi a existência de uma árvore gigantesca que, sem quaisquer exageros,
nem vinte homens juntos a conseguiriam abraçar. A sua sombra cobria uma vastíssima
área.
- Sabe o seu nome?
- Infelizmente não tenho a certeza; não
possuo quaisquer conhecimentos de botânica. Apenas distingo o carvalho, o castanheiro,
pinheiro bravo e manso, eucalipto, e pouco mais: árvores que crescem no Alto
Minho. No entanto, disseram-me tratar-se do poilão, ou poilão-forro; os seus
frutos dão uma espécie de lã, chamada sumaúma, a qual utilizam para encher almofadas
e colchões.
- Interessante – comenta Henrique.
- A população residente começava o seu
dia de trabalho pastando o gado, cultivando o arroz, colhendo a mancarra, ou
amendoim, fabricando o óleo de palma. Não falavam a língua de Camões! Como
noutro local te disse, a maioria dos habitantes da Guiné-Bissau não dominava a
nossa língua no ano de 1966; a excepção ia para os negros que viviam na capital
da província e para alguns chefes locais que a aprendiam, embora bastante mal,
para assim poderem ser elos de ligação entre o seu povo e a administração
portuguesa.
- Quer dizer que não havia escolas do
ensino elementar espalhadas pelo mato! – surpreende-se
o jovem.
- O governo português nunca se importou
muito com isso; as escolas primárias – poucas – estavam localizadas nas vilas
mais importantes e nas cidades. Escola secundária só havia uma na capital! Ensino
superior nem o cheiro!
- E era assim que os lusos queriam
conquistar a simpatia dos africanos! – espicaçou
Henrique, admirado, e com alguma dificuldade em crer em tudo aquilo que escutava.
- Até posso estar errado, mas duvido
que a população em geral soubesse que a Guiné pertencia a um país europeu, de
seu nome Portugal. Para eles isso não fazia sentido; nós estávamos a ocupar
militarmente o seu território. Ali tinham nascido, ali cresciam e morriam.
Aquele era o seu chão e não viesse este ou aquele dizer-lhes o contrário.
Língua, possuíam a sua, secular, e não precisavam de nenhuma outra. Não lhes
fossem também dizer como se criava o gado, como se plantava o arroz nos
terrenos alagadiços, como se fazia óleo, vinho de palma e aguardente. Amavam a sua cultura, a sua religião, os seus
mitos e tradições; a sua arte, as suas cerimónias fúnebres, seus rituais, e
quiçá a cor da pele! Não, ali não era mesmo poiso de branco; este só na cidade,
longe da selva, longe da natureza imaculada.
// continua...
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