domingo, 18 de março de 2018

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha







O BOMBEIRO

 

     É com mágoa, não com raiva, que escrevo este artigo. Nunca quis imiscuir-me em assuntos que por sua natureza são suscetíveis de melindrar pessoas e instituições. E sou daqueles que pensa que apesar de Melgaço ser a nossa terra, logo que a deixamos (não se discutem aqui as razões de tal ato) perdemos em relação a ela alguns direitos, indo eventualmente adquiri-los no lugar para onde se vai habitar. De acordo com esta filosofia, Melgaço é daqueles que lá residem: nós somos apenas melgacenses dispersos pelo mundo, que gostamos imenso desse torrãozinho que nos viu nascer, mas que só de fugida, uma vez por ano, o visitamos, o acarinhamos, como se eternamente nos estivéssemos a despedir. O concelho tem instituições, como todos os concelhos do país; umas são bem geridas, outras nem por isso. Podemos nós exigir perfeições, nós que em nada contribuímos para isso? Não! Isto vem a propósito de uma escultura feita pelo escultor melgacense Acácio Caetano Dias. Levou muito, muito tempo, a elaborá-la, a dar-lhe forma, quase a dar-lhe vida. Trata-se, obviamente, do bombeiro em tamanho natural que esteve exposto nas Festas da Cultura deste ano. Eu presenciei, uma ou outra vez, a sua feitura. Com que atenção, cuidado, ternura, o artista ia, pouco a pouco, trabalhando aquele material informe! Os seus olhos brilhavam de alegria ao contemplá-la! Desde o primeiro dia que a destinou aos Bombeiros Voluntários de Melgaço, sua terra de nascimento. Não lhe passava sequer pela cabeça que essa obra fosse parar a outro lado – nem que dessem rios de dinheiro! Pois bem: terminou-a em fins de Julho, princípios de Agosto, e fez chegar, através de determinada pessoa, essa informação à Associação dos BVM. Entretanto, a Câmara Municipal pediu-lhe para ele expor algumas peças aquando das festas. Para esse efeito teria um pavilhão com as dimensões adequadas. O Acácio não só aceitou, como ficou radiante com tal pedido. Uns dias antes de começarem as referidas festividades, o presidente da Câmara dá ordens para vir uma carrinha a casa do escultor buscar as peças para exposição. Bombeiro e demais esculturas seguiram assim para Melgaço, acompanhadas de seu autor. Primeira decepção: quiseram, a comissão organizativa das festas, à rebelia de qualquer critério estético, dividir o pavilhão com uma mostra equestre! O artista opôs-se, ameaçou retirar as suas obras de arte, e as coisas recompuseram-se. Segunda decepção: a direção dos bombeiros voluntários não se interessou minimamente pela escultura designada «O Bombeiro»! O Acácio tinha decidido entregá-la pelo preço de quinhentos contos (valor aproximado com as despesas em matéria-prima), mas depois, e a pedido de uma pessoa ligada a essa Associação, baixou o preço para quatrocentos e cinquenta contos. Em Lisboa já alguém lhe tinha oferecido mil e duzentos contos por essa obra!

     As festas terminaram e nada ficou resolvido. A esposa do Acácio sugeriu-lhe que a trouxesse de volta, pois parecia-lhe que brincavam com os seus sentimentos e valor artístico. Ele não desejava de forma alguma fazer isso. Tinha investido muito do seu tempo, da sua arte, do seu amor pela terra, para tudo acabar assim abruptamente. E lembrou-se então de que um seu colega escultor, José Rodrigues, tinha feito por encomenda a estátua de Inês Negra, tendo recebido por ela milhares de contos de réis! Colocada na Alameda Inês Negra, foi inaugurada com toda a pompa e circunstância pelas autoridades do concelho. Que diferença de tratamento! Seria por ele ser melgacense? Eu julgo que sim; fosse o Acácio de fora do concelho, fosse ele acarinhado pelas televisões e revistas da especialidade, e ei-lo a colher os frutos dessa fama. Assim, e porque é da terra, tratam-no como se ele fosse a Melgaço vender os seus trabalhos a fim de arranjar dinheiro para se alimentar a si e aos seus! Pobres diabos sois, se dessa maneira pensais. Ele, felizmente, não precisa desse dinheiro. Graças ao seu trabalho e talento, vive desafogadamente.

     Quero contudo felicitar o presidente da Câmara Municipal pela atitude digna que tomou. Quando soube que a direção dos bombeiros não tomava a iniciativa de adquirir a escultura, mesmo tendo a possibilidade de arranjar essa verba através de uma coleta (soubemos que alguns comerciantes disponibilizaram importâncias significativas para esse fim), foi falar com o escultor e disse-lhe que a obra fica em Melgaço, nem que para esse fim a Câmara tivesse de entrar com algum dinheiro.

     O bombeiro ficou e o Acácio regressou a casa desiludido, amargurado, doente. Sofria há muito do coração e toda essa “novela” mexeu com ele. A família levou-o a um especialista e este foi peremptório: tinha de ser operado. Na quarta-feira, 20 de Setembro, no hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, o Acácio submeteu-se a essa melindrosa operação. Para bem de nós todos, tudo correu «às mil maravilhas». O cirurgião sentia-se satisfeito, dizia mesmo que fora um êxito. Agora o nosso amigo vai recuperar, mas claro, dificilmente poderá executar obras de grande tamanho. Dedicar-se-á certamente a criar obras mais pequenas, mas que nem por isso deixarão de ter a marca de qualidade do mestre que ele é.         

     Não acuso ninguém. Não personalizo. Só deixo um aviso aos artistas da nossa terra: não se iludam, nem alimentem falsas expectativas. Em pequenas localidades o que vem de fora é que é bom. Sempre assim foi! «Santos da casa não fazem milagres». Não me refiro a inveja, espero bem que essa terrível doença tenha desaparecido do nosso termo, pois ela era causada sobretudo pela miséria e ignorância, males que agora parecem estar arredados desses sítios.

     O Acácio quis oferecer à sua terra o produto do seu esforço, do seu talento, da sua fidelidade. Algumas pessoas não o compreenderam assim. Pensaram, erradamente, que ele ia aí para receber e não para dar! Enfim, resignemo-nos. Aos bombeiros quero dizer-lhes que isto não é nada com eles, que os admiro, que louvo a sua coragem e dedicação.

 
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1038, de 15/10/1995.

1 comentário:

  1. Verdadeiro o seu artigo! Nós damos muito valor ao que vem de estrangeiros

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