ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
O BOMBEIRO
É com mágoa, não
com raiva, que escrevo este artigo. Nunca quis imiscuir-me em assuntos que por
sua natureza são suscetíveis de melindrar pessoas e instituições. E sou
daqueles que pensa que apesar de Melgaço ser a nossa terra, logo que a deixamos
(não se discutem aqui as razões de tal ato) perdemos em relação a ela alguns
direitos, indo eventualmente adquiri-los no lugar para onde se vai habitar. De
acordo com esta filosofia, Melgaço é daqueles que lá residem: nós somos apenas
melgacenses dispersos pelo mundo, que gostamos imenso desse torrãozinho que nos
viu nascer, mas que só de fugida, uma vez por ano, o visitamos, o acarinhamos, como
se eternamente nos estivéssemos a despedir. O concelho tem instituições, como
todos os concelhos do país; umas são bem geridas, outras nem por isso. Podemos
nós exigir perfeições, nós que em nada contribuímos para isso? Não! Isto vem a
propósito de uma escultura feita pelo escultor melgacense Acácio Caetano Dias.
Levou muito, muito tempo, a elaborá-la, a dar-lhe forma, quase a dar-lhe vida.
Trata-se, obviamente, do bombeiro em tamanho natural que esteve exposto nas
Festas da Cultura deste ano. Eu presenciei, uma ou outra vez, a sua feitura.
Com que atenção, cuidado, ternura, o artista ia, pouco a pouco, trabalhando
aquele material informe! Os seus olhos brilhavam de alegria ao contemplá-la!
Desde o primeiro dia que a destinou aos Bombeiros Voluntários de Melgaço, sua
terra de nascimento. Não lhe passava sequer pela cabeça que essa obra fosse
parar a outro lado – nem que dessem rios de dinheiro! Pois bem: terminou-a em
fins de Julho, princípios de Agosto, e fez chegar, através de determinada
pessoa, essa informação à Associação dos BVM. Entretanto, a Câmara Municipal
pediu-lhe para ele expor algumas peças aquando das festas. Para esse efeito
teria um pavilhão com as dimensões adequadas. O Acácio não só aceitou, como
ficou radiante com tal pedido. Uns dias antes de começarem as referidas
festividades, o presidente da Câmara dá ordens para vir uma carrinha a casa do
escultor buscar as peças para exposição. Bombeiro e demais esculturas seguiram
assim para Melgaço, acompanhadas de seu autor. Primeira decepção: quiseram, a
comissão organizativa das festas, à rebelia de qualquer critério estético,
dividir o pavilhão com uma mostra equestre! O artista opôs-se, ameaçou retirar
as suas obras de arte, e as coisas recompuseram-se. Segunda decepção: a direção
dos bombeiros voluntários não se interessou minimamente pela escultura
designada «O Bombeiro»! O Acácio tinha decidido entregá-la pelo preço de quinhentos
contos (valor aproximado com as despesas em matéria-prima), mas depois, e a
pedido de uma pessoa ligada a essa Associação, baixou o preço para quatrocentos
e cinquenta contos. Em Lisboa já alguém lhe tinha oferecido mil e duzentos
contos por essa obra!
As festas
terminaram e nada ficou resolvido. A esposa do Acácio sugeriu-lhe que a
trouxesse de volta, pois parecia-lhe que brincavam com os seus sentimentos e
valor artístico. Ele não desejava de forma alguma fazer isso. Tinha investido
muito do seu tempo, da sua arte, do seu amor pela terra, para tudo acabar assim
abruptamente. E lembrou-se então de que um seu colega escultor, José Rodrigues,
tinha feito por encomenda a estátua de Inês Negra, tendo recebido por ela
milhares de contos de réis! Colocada na Alameda Inês Negra, foi inaugurada com
toda a pompa e circunstância pelas autoridades do concelho. Que diferença de
tratamento! Seria por ele ser melgacense? Eu julgo que sim; fosse o Acácio de
fora do concelho, fosse ele acarinhado pelas televisões e revistas da especialidade,
e ei-lo a colher os frutos dessa fama. Assim, e porque é da terra, tratam-no
como se ele fosse a Melgaço vender os seus trabalhos a fim de arranjar dinheiro
para se alimentar a si e aos seus! Pobres diabos sois, se dessa maneira
pensais. Ele, felizmente, não precisa desse dinheiro. Graças ao seu trabalho e
talento, vive desafogadamente.
Quero contudo felicitar o presidente da
Câmara Municipal pela atitude digna que tomou. Quando soube que a direção dos
bombeiros não tomava a iniciativa de adquirir a escultura, mesmo tendo a
possibilidade de arranjar essa verba através de uma coleta (soubemos que alguns
comerciantes disponibilizaram importâncias significativas para esse fim), foi
falar com o escultor e disse-lhe que a obra fica em Melgaço, nem que para esse
fim a Câmara tivesse de entrar com algum dinheiro.
O bombeiro ficou
e o Acácio regressou a casa desiludido, amargurado, doente. Sofria há muito do
coração e toda essa “novela” mexeu com ele. A família levou-o a um especialista
e este foi peremptório: tinha de ser operado. Na quarta-feira, 20 de Setembro,
no hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, o Acácio submeteu-se a essa melindrosa
operação. Para bem de nós todos, tudo correu «às mil maravilhas». O cirurgião
sentia-se satisfeito, dizia mesmo que fora um êxito. Agora o nosso amigo vai
recuperar, mas claro, dificilmente poderá executar obras de grande tamanho.
Dedicar-se-á certamente a criar obras mais pequenas, mas que nem por isso
deixarão de ter a marca de qualidade do mestre que ele é.
Não acuso
ninguém. Não personalizo. Só deixo um aviso aos artistas da nossa terra: não se
iludam, nem alimentem falsas expectativas. Em pequenas localidades o que vem de
fora é que é bom. Sempre assim foi! «Santos
da casa não fazem milagres». Não me refiro a inveja, espero bem que essa
terrível doença tenha desaparecido do nosso termo, pois ela era causada
sobretudo pela miséria e ignorância, males que agora parecem estar arredados
desses sítios.
O Acácio quis
oferecer à sua terra o produto do seu esforço, do seu talento, da sua
fidelidade. Algumas pessoas não o compreenderam assim. Pensaram, erradamente,
que ele ia aí para receber e não para dar! Enfim, resignemo-nos. Aos bombeiros
quero dizer-lhes que isto não é nada com eles, que os admiro, que louvo a sua
coragem e dedicação.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1038, de
15/10/1995.
Verdadeiro o seu artigo! Nós damos muito valor ao que vem de estrangeiros
ResponderEliminar