LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes |
XXVI
Entre o
óbvio e o obscuro cresce a quimera
Este encontro era inevitável; mais tarde
ou mais cedo ele teria de se verificar. Eu era um jovem honesto, incapaz de uma
traição. Eu sei que a minha escapadela com a Celina poderá ter induzido muita
gente em erro; não devem contudo precipitar o vosso julgamento. Estamos perante
um costume do Alto Minho, nenhum homem perdia uma boa oportunidade, revela
apenas o meu caráter pouco maduro, mas como viram eu fui sincero, nada prometi
à rapariga. O meu amor para com a Bera era do tamanho da montanha mais alta, do
Evereste, firme e duradouro. Escutem então a minha conversa com o emigrante.
- Ó Artur, Artur!...
- Que queres? Estou com
pressa.
- Chega aqui, por
favor.
- Não tenho tempo para
falar contigo, nem quero falar.
- Pelo menos ouve o que
eu tenho para te dizer.
- Está bem, mas sê
rápido.
- Por que é que me
roubaste a namorada? Não podias ter procurado outra, que estivesse livre?
- Eu não roubei nada a
ninguém. Não te devo explicações nem sequer tenho a dar-te qualquer satisfação.
- Dizias-te tu amigo do
meu irmão Olavo, e também meu, afinal de contas…
- Uma coisa não tem
nada a ver com a outra.
- Não tem?! A Bera
pertencia-me, como eu pertencia a ela, íamos à igreja quando eu regressasse da
vida militar. Sabes porventura quantos anos de idade ela tem? Dezassete; faz
para o próximo mês dezoito, tu deves ter vinte e seis ou vinte e sete…
- E a diferença de
idades impede-nos de casar?
- Não, de modo algum,
mas devia impedir-vos a inexistência de afeto, devias ter tido mais respeito
para com ela e para comigo, eu não teria tido coragem de fazer o que tu
fizeste, foi uma ação muito feia, indigna de um ser humano, de ti.
- Não me chateies. Não
passas de um pelintra, um tamanqueiro; nem sequer sabes fazer uns sapatos novos!
E querias que ela casasse contigo!
- Posso ser pelintra,
tu também já o foste, mas não ando a desviar a namorada dos outros, a
comprá-las…
- Ouve: põe-te mas é a
andar, senão ainda levas dois bofetões bem dados.
- A razão da força
contra a força da razão.
- Palavras! Pede à tua
mãe que te arranje uma dessas piolhosas da aldeia, uma borrachona como ela, não
mereces mais, também as arranja para o Atílio…
- Depressa te
esqueceste de quem és, quem é a tua família, de onde vens!... Também tens
telhados de vidro.
- Não quero mais
conversa contigo, e desde já te aviso: não te aproximes de mim ou da Bera, se
não desfaço-te, escacho-te, dependuro-te no cimo da torre do castelo.
- Diz-lhe a ela que
Deus não dorme e que faço votos para que não sofram o que me têm feito sofrer a
mim, diz-lho; mas o castigo divino vem sempre quando menos se espera.
- Não me assustas, nem
me impressionas, com essa lengalenga.
- Eu sei; vocês em
França deixaram de ser tementes a Deus, não frequentam a igreja, só o dinheiro
vos interessa.
- E tu com inveja, nem
um conto de réis tens para comprar um fato, andas sempre com a mesma roupa
nojenta!
- Vai, e casa com ela;
não vos desejo felicidades, isso não, espero nunca mais vos ver, nunca mais!
Sem comentários:
Enviar um comentário