sexta-feira, 9 de novembro de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes



XXVI

 

Entre o óbvio e o obscuro cresce a quimera

 

     Este encontro era inevitável; mais tarde ou mais cedo ele teria de se verificar. Eu era um jovem honesto, incapaz de uma traição. Eu sei que a minha escapadela com a Celina poderá ter induzido muita gente em erro; não devem contudo precipitar o vosso julgamento. Estamos perante um costume do Alto Minho, nenhum homem perdia uma boa oportunidade, revela apenas o meu caráter pouco maduro, mas como viram eu fui sincero, nada prometi à rapariga. O meu amor para com a Bera era do tamanho da montanha mais alta, do Evereste, firme e duradouro. Escutem então a minha conversa com o emigrante.

 

- Ó Artur, Artur!...

- Que queres? Estou com pressa.

- Chega aqui, por favor.

- Não tenho tempo para falar contigo, nem quero falar.

- Pelo menos ouve o que eu tenho para te dizer.

- Está bem, mas sê rápido.

- Por que é que me roubaste a namorada? Não podias ter procurado outra, que estivesse livre?

- Eu não roubei nada a ninguém. Não te devo explicações nem sequer tenho a dar-te qualquer satisfação.

- Dizias-te tu amigo do meu irmão Olavo, e também meu, afinal de contas…

- Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

- Não tem?! A Bera pertencia-me, como eu pertencia a ela, íamos à igreja quando eu regressasse da vida militar. Sabes porventura quantos anos de idade ela tem? Dezassete; faz para o próximo mês dezoito, tu deves ter vinte e seis ou vinte e sete…

- E a diferença de idades impede-nos de casar?

- Não, de modo algum, mas devia impedir-vos a inexistência de afeto, devias ter tido mais respeito para com ela e para comigo, eu não teria tido coragem de fazer o que tu fizeste, foi uma ação muito feia, indigna de um ser humano, de ti.

- Não me chateies. Não passas de um pelintra, um tamanqueiro; nem sequer sabes fazer uns sapatos novos! E querias que ela casasse contigo!

- Posso ser pelintra, tu também já o foste, mas não ando a desviar a namorada dos outros, a comprá-las…

- Ouve: põe-te mas é a andar, senão ainda levas dois bofetões bem dados.     

- A razão da força contra a força da razão.

- Palavras! Pede à tua mãe que te arranje uma dessas piolhosas da aldeia, uma borrachona como ela, não mereces mais, também as arranja para o Atílio…

- Depressa te esqueceste de quem és, quem é a tua família, de onde vens!... Também tens telhados de vidro.

- Não quero mais conversa contigo, e desde já te aviso: não te aproximes de mim ou da Bera, se não desfaço-te, escacho-te, dependuro-te no cimo da torre do castelo.

- Diz-lhe a ela que Deus não dorme e que faço votos para que não sofram o que me têm feito sofrer a mim, diz-lho; mas o castigo divino vem sempre quando menos se espera.

- Não me assustas, nem me impressionas, com essa lengalenga.

- Eu sei; vocês em França deixaram de ser tementes a Deus, não frequentam a igreja, só o dinheiro vos interessa.

- E tu com inveja, nem um conto de réis tens para comprar um fato, andas sempre com a mesma roupa nojenta!

- Vai, e casa com ela; não vos desejo felicidades, isso não, espero nunca mais vos ver, nunca mais!

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