ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
14.º capítulo (continuação)...
- Como vocês sofreram! – diz Henrique, com voz plangente.
- É verdade. E na flor da idade, meu
amigo. Mas, para que não penses que quero calar tudo aquilo que vi e assisti,
dir-te-ei apenas que o combate do Cantanhez teve uma face dura, cruel, inumana.
Os piores instintos do homem vieram à tona. Não se encontravam ali humanos a
lutar, mas sim feras indomáveis, tigres rasgando as entranhas da presa
capturada! A raiva superou sempre a lucidez; o medo não conseguiu paralisar o
dedo colado ao gatilho; a fúria imperou sobre a prudência e o bom-senso!
- A mocidade, sangue na guelra!...
- Sem dúvida. E também interesses de
vária ordem estavam em jogo. As grandes potências capitalistas estavam com o
olho em África. Há ali muita riqueza para ser explorada. Portugal não se
aproveitava, nem deixava os outros fazê-lo! Daí os movimentos de libertação
terem apoios impensados há alguns anos atrás. Mas continuando a narrativa:
Embora se ouvissem ainda tiros e gritos aqui e ali, retirámos, já ao
entardecer, não sem cautelas, e lentamente aproximámo-nos do rio, a fim de
embarcarmos. Mal avistámos os barcos da marinha o nosso estado de espírito
melhorou um pouco, o nosso coração deixou de bater tão apressadamente.
- Era quase como sair do inferno!
- A viagem de retorno, como deves
calcular, não teve alegria, mas sim abatimento, tristeza. Os nossos camaradas
evacuados para o hospital e o quase esgotamento não o consentiam. Queríamos
dormir, mas as embarcações, demasiado exíguas para tanta farda, não o
permitiam. Encostados uns aos outros, suportando a custo aquele cheiro desagradável
a catinga, a bodum, de corpos sem higiene, semicerrávamos os olhos e logo imagens
terríficas, assustadoras, surgiam na nossa mente algo perturbada. O pânico
apoderava-se de nós. Só espíritos muito fortes, sãos, conseguiriam ultrapassar
este mau momento. E não seria o único! Outras escaramuças, acirradas pelejas, brigas
mil, já se desenhavam no horizonte próximo.
- Nem é bom pensar nisso! – exclama Henrique, como se ele próprio fosse
viver aqueles momentos aflitivos.
- Como eu gostaria que os portugueses
de Quatrocentos não tivessem pisado o funesto solo africano. Agora estávamos
nós ali, naquele bosque letal, sofrendo as consequências, os efeitos e
infortúnios, desse acto aventureiro e irracional. Por que é que D. João I e os
reis seguintes não procuraram desenvolver o Portugal ibérico, deixando a quente
África aos africanos? Quiseram dar ao mundo “novos mundos” e aos filhos da
nação, a partir daí, deram atroz sofrimento e a morte!
- Graças a essas aventuras, temos «Os Lusíadas», de Camões, e outras obras
importantes da literatura portuguesa – contrapõe
Henrique.
- Não sei se a “troca” compensa. A vida e a felicidade são os bens mais preciosos
que há. Ainda dizem que de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos! Eu
diria: «De África só desgraça e carraça!»
Quantos portugueses morreram por causa das designadas possessões ultramarinas?
Terão conta, ao longo destes séculos? E acredita: os que mais defenderam a sua
manutenção não puseram, jamais, lá os seus macios pés nem pegaram numa arma
para as defender. Limitaram-se a produzir verborreia sem sentido.
- Mas a História é a História, e reis e
chefes de Estado ambiciosos e tolos sempre houve, há e haverá – sentenciou
Henrique, depois de ter bebido duas imperiais e uma caneca. Não era hábito,
porém, naquele dia, precisava de mais álcool, aquela batalha do Cantanhez
mexera com ele, botara-o abaixo.
Mais
calmo, Cândido condescendeu:
- Talvez tenhas razão: hoje sabe-se que
os portugueses e castelhanos nada descobriram – esses lugares longínquos já
tinham sido descobertos há muito tempo! Contactar, seria o verbo correcto. Os
portugueses contactaram esses povos, não os acharam. Os asiáticos estavam no
continente americano (peles vermelhas e
esquimós), e o continente africano, todo ele, era conhecido e habitado.
- Até há quem afirme que foi em África
que apareceram os primeiros seres humanos – lembra
Henrique, já a bocejar.
- É bem possível, mas nessa área do
conhecimento ainda há muito a investigar. Darwin não sugeria, no século passado,
que o Homem descende do macaco?! Mas olha que não sei: penso que o ser humano
veio de um planeta distante, aqui teve de descer por motivos que ora desconhecemos
e por aqui foi ficando. Como eram só machos, procriaram com macacas, e daí
alguns de nós parecermos símios! Doutro modo não se compreenderia a diferença
existente entre nós e os restantes animais.
- Acha que há assim uma tão acentuada
diferença?!
- Haver, há – salta à vista! Nós
falamos, lemos, escrevemos, fundamos cidades, museus, bibliotecas; criámos a
História e outras ciências; temos infinita curiosidade; vamos por esse espaço à
procura de outros seres… Enfim, somos mesmo diferentes. Mas com tudo isto já
perdi o fio à meada.
- Estava a dizer-me…
- Ah! Já sei:
… e porque os meios de
transporte tornavam as viagens prenhes de inesperados perigos, onerosas e demoradas,
aí sim, os nautas lusos tiveram um papel de certa monta, de relevo, na
aproximação dos povos. Por outro lado, o intercâmbio de conhecimentos, de
ideias, de culturas, torna-se sempre vantajoso para ambas as partes. Porém, os
portugueses jamais deveriam passar disso. Comércio, amizade, deveria ter sido o
bastante, o suficiente. Ter-se-iam poupado vidas e haveres, e o nosso Portugal
teria crescido economicamente, como outros territórios se desenvolveram por
essa Europa fora. Nós, que fomos uma potência mundial, somos hoje um país pobre
e atrasado!
- Está a pôr em causa todo o pensamento
de uma época!... – observa Henrique,
preocupado.
- Sem dúvida, meu caro amigo. E por que
não? Relativamente à posse da terra, à escravatura (batem palmas ao infante D. Henrique), à conquista pelas armas, à
imposição de ideias, ideologias, religião, costumes, língua, cometeu-se, quanto
a mim, um erro crasso que nos custou, e está a custar, muito caro.
- Não aos poderosos, Cândido; nem aos
ambiciosos. E a Igreja Católica expandiu-se… - contra ataca o jovem.
- Nos nossos dias já nada resta desse
antigo império…
- A língua portuguesa, essa ficou…
- À custa de muita seiva humana, muito
sofrimento, sangue derramado. Teria valido a pena? É certo que o poeta Fernando
Pessoa escreveu: «tudo vale a pena quando
a alma não é pequena…»
Seria a alma dos portugueses assim tão grande que um minúsculo rincão
não lhes bastava, só o mundo os satisfazia? Que me interessa a mim que se fale
português no Brasil? Que ganho eu com isso? Que ganha Portugal com isso?
Vendemos-lhes dicionários de língua portuguesa? Não! Vendemos-lhes livros dos
nossos escritores? Meia dúzia! Vendemos-lhes telenovelas? Pelo contrário, são
eles que nos invadem com as suas. Vêem o nosso cinema? Duvido.
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, têm
como língua oficial o português. O nosso país ganhará com isso?
- Acho que sim – diz Henrique, num tom calmo, imparcial, para não magoar o amigo – mas
só o futuro o dirá.
- Amigo Rique: se ganhássemos algo com
isso não estaríamos tão atrasados e não pediríamos tanto aos demais países
europeus. Que nos deu o Brasil a partir da sua independência? Que nos vai dar
Angola, São Tomé…? Nada! Os seus governos, à excepção do brasileiro, verdade
seja dita, estão constantemente a estender a mão a Portugal. A nós, que não
temos onde cair depois de mortos!
Aqui Henrique empertigou-se:
- O meu amigo é impiedoso! Essa ajuda,
ou solidariedade, melhor dito, cooperação, como a queira designar, é temporária,
só enquanto não se modernizam, não criam as suas próprias infra-estruturas.
Depois pagarão com juros as suas dívidas. Esquece-se, porventura, que Angola
tem imensas riquezas: petróleo, diamantes, madeiras de grande qualidade, um
terreno agrícola extraordinário, pesca abundante… tudo! Moçambique, se for bem
administrado, também se tornará num dos países mais ricos de África.
Cândido, num tom mais moderado,
responde-lhe:
- Quando já não precisarem de nós,
viram-nos as costas. A língua inglesa espalha-se pelo planeta pela via erudita,
não pelas armas. Não deve haver nenhum estudante por esse mundo fora que não a
estude, tornando-se um potencial consumidor dos produtos ingleses e americanos.
Mas nós, que temos nós para exportar? Só se for malandrice, a lusa manha! A
nossa indústria, e a nossa agricultura, são o que são. E depois de termos
perdido tudo, herdamos obrigações – morais e materiais – que perduram e
perdurarão por muitos e muitos séculos. // continua...
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