domingo, 11 de outubro de 2015

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha




Cartas de um castrejo

10.ª - «Senhor Redactor: soa, ao longe, um clarim que tanto pode ser o da vitória como o da ruína, segundo o conto a seguir, e que prova que os homens ouvem conforme têm o coração e a inclinação. Um santo e um guerreiro ouviam o mesmo som. Aquele dizia: parece que oiço tocar a coros. Este respondia: será tumulto de guerra? Pois era o mesmo som e era a mesma distância – logo, ouviram “conforme tinham o coração e a inclinação”. Nós, que temos o máximo desejo de ver o equilíbrio económico desta querida terra, que nos foi berço e… quem sabe? nos será cobertura quando a morte nos paralise a energia, queríamos vê-la enfileirar na cruzada que encetou. “Um desconhecido”, no “Correio”, e que trata das mutuais bovinas – sociedades tendentes a indemnizar os sócios dos prejuízos a haver por morte ou desgraça do seu gado bovino. Leiam aqueles simples artiguelhos, onde transparece a boa vontade sã, à míngua de engenho, e verão os altos benefícios que uma freguesia como a nossa pode auferir da associação para garantia de gado bovino, por morte súbita ou outro acidente, quer sejam o santo ou o guerreiro, aquele toque deve soar-lhe ao ouvido, sem discrepância de ideais ou distâncias. Ouviram, meus queridos conterrâneos? // O digno encarregado do registo civil desta freguesia escreve-nos, com data de 30, p.p., justificando a sua abnegação, interesseira naquele lugar. Fala-nos da «falta de instrução» (isso conhecêmo-lo nós de mais e é um dos nossos mais graves males); diz-nos que a carência de selos produz, muitas vezes, demoras alheias à sua vontade; assevera-nos que a repartição é em sua casa e, por fim, que desempenha aquele lugar como castrejo amigo dos que lhe compartilham a sorte. Nem por um momento duvidamos das suas afirmativas e cremo-lo piamente. Se a sua carta de 30 chegara a horas já no número passado do “Correio” haveríamos pedido a publicação das suas razões, porém, permita-nos que lhe ponderemos: à distância do posto do Registo Civil, há lugares nesta freguesia de 5 a 10 kms – não é verdade? Pois vir do Ribeiro, por exemplo (lugar mais distante), ao posto e ter de continuar a Melgaço em busca de uma estampilha, para o registo ser lançado e o respectivo bilhete legal, isto é incrível e desumano…! Cinco léguas (25 km) para conseguir uma estampilha, por não a haver na repartição competente! Isso chega na Vila de Melgaço, onde o notário – para o mais pequeno reconhecimento nos manda, ali, à tesouraria, buscar uma estampilha, até de centavo! Mas as distâncias centuplicam-se e as ruas calçadas de Melgaço não se equiparam aos caminhos intransitáveis de Castro Laboreiro e, de mais a mais, vendo a cada passo um precipício! A neve que ainda enche as ravinas dos regatos caudalosos, os barrancos que buscam despenhar-se a cada momento, os buracos que nos convidam a esconder-nos nas suas guelas negras…, tudo isto deve lembrar ao bom amigo Rodrigues, ou melhor, ao Oficial do Registo Civil deste concelho. E mais: que este posto em Castro Laboreiro precisa ter: 1.º - casa própria para repartição, pois esta freguesia já foi um concelho e a sua população tem direito a muitas regalias que lhe são cerceadas. 2.º - selos, papel e instruções especiais, que são requeridas pelo meio em que vivemos e que em quadras do ano nos afasta da convivência universal. 3.º e último: a melhor boa vontade do encarregado, virtude que lhe não falta, sem dúvida, mas que é indispensável pôr à prova em todas as ocasiões e, muito mais, nas mais difíceis. Sabemos que não tem obrigação de ter selos, que não tem nem o mais ínfimo dever de emprestar casa para a repartição, etc., mas também sabemos que, com um pequenino esforço, pode ter selos; e casa já a dá, o esforço não falta e temos tudo regularizado. Não é verdade? E se alguma coisa faltar, agarre-se ao seu bispo, que é o nosso dilecto amigo Dr. José Joaquim Abreu (*), para este deixar o veículo e caminhar às mil maravilhas. Se nos queixarmos ambos, a ambos absolve e remedeia, aconselhando, pois sabe e não lhe falha a vontade de nos ser útil. // (…) // Mais uma proeza da Guarda-Fiscal desta freguesia é a partida pregada ao nosso bom amigo José Joaquim Alves (**), apreendendo-lhe – ilegal e inconcientemente – uma porção considerável de chocolate! Nós temos aconselhado à Guarda Fiscal, aqui onde, diga-se de passagem, uma ou outra vez aparecem empregados zelosos e cumpridores dos seus deveres, que não nos julgue país conquistado, para não nos incomodar seriamente. Nada. Julgam-se senhores absolutos e parece que refinam à medida que os aconselhamos – pelo que, aliás, lhes não levamos cheta! Vale-nos, porém, que o Chefe da Guarda Fiscal, neste concelho, alia a um carácter primoroso, uma rectidão inabalável, e fará entrar no cumprimento estrito do dever os que, não querendo ouvir-nos, falseiam a sua missão. Valeu, camaradinhas? E, se Deus me der forças, para o dia 9, irei expor a S. Ex.ª muitas coisinhas bonitas! // Castro Laboreiro, 6/4/1916.»                

(*) // Foi o primeiro Conservador da Conservatória do Registo Civil de Melgaço; era natural do lugar de São Gregório, freguesia de Cristóval.

(**) // Sócio de uma pequena fábrica de chocolate em Castro Laboreiro. Os guardas por vezes fechavam os olhos, mas as chefias exigiam-lhes serviço, por isso tinham que aplicar algumas multas.  

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