ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
UM ADEUS À GUARDA-FISCAL DE MELGAÇO
Presumo que haja
gente na nossa terra a ter motivos fortes para não gostar da Guarda-Fiscal;
respeito esse sentimento. Eu gosto! Não só por ser afilhado de Agostinho
Teixeira, 1.º cabo dessa guarda, recentemente falecido, como pelo apreço que
sempre tive por essa corporação. A Guarda-Fiscal vai desaparecer como corpo
autónomo, vai ser integrada na Guarda Nacional Republicana! Nós, melgacenses,
nesta hora de despedida não poderíamos deixar de dizer adeus a esses homens
abnegados que, durante tantos anos, percorreram «montes e vales» a fim de obrigarem os prevaricadores a cumprirem a
lei das fronteiras. É provável que algumas vezes tenham fechado os olhos ao
grande contrabandista, mas também o fizeram certamente ao pequeno; é quase
certo que nem sempre foram isentos, mas ao longo de toda a sua existência merecem,
sem favor, uma nota elevada. Melgaço vai ficar mais pobre com a sua ausência,
embora a partir de agora as fronteiras passem a ser espaços de liberdade,
através dos quais galegos e minhotos poderão manter um contacto mais assíduo e
sem qualquer receio de serem olhados com desconfiança por parte daqueles a quem
incumbia zelar pelos interesses das Finanças do Estado português. Algumas
freguesias do concelho de Melgaço vão-se ressentir com a extinção da
Guarda-Fiscal: quer pela segurança que davam às populações, quer pelo estatuto
que imprimiam aos lugares aonde se instalavam. Cevide, por exemplo, quase
desapareceu com a sua saída! São Gregório foi-se tornando cada vez mais importante
graças à sua presença. Antes da guerra colonial, e por conseguinte antes dos
jovens procurarem terras dessa Europa rica, o contrabando era uma das fontes de
receita para muitas famílias melgacenses. À noite, os homens eram recrutados
nos cafés e tabernas para transportarem às costas, monte abaixo, tabaco, sabão
e pedras de isqueiro, bem assim como outros produtos, para uma embarcação que
os aguardava junto ao rio Minho ou, então, atravessando o Trancoso, cujas águas
nunca assustaram ninguém, a fim de irem entregar as mercadorias a determinada
pessoa que na outra banda os esperava. De um lado a guarda-fiscal e do outro
lado os carabineiros, tentavam suster essa azáfama noturna, mas tendo sempre em
conta que dessa atividade dependia o pão nosso de cada dia de inúmeras pessoas,
e o seu próprio emprego. Por outro lado, a guerra civil de Espanha (1936-1939)
depauperara o país e a sua indústria estava, toda ela, ao serviço da guerra,
pelo que precisavam de tudo que viesse do país irmão, mormente artigos que em
Espanha não havia, ou existindo eram vendidos a preços proibitivos. Assim,
através deste processo, os comerciantes compravam mais barato e não pagavam
quaisquer direitos alfandegários. A fuga ao fisco é tão antiga como o próprio
comércio! Seria ótimo que alguém se abalançasse a escrever a história do
contrabando e contrabandistas em Melgaço nos últimos sessenta anos. Trata-se de
um assunto interessante mas tabu, isto é, toda a gente tinha conhecimento desse
negócio ilícito mas ninguém queria falar acerca dele! Com o desaparecimento de
fronteiras controladas no seio da Comunidade Económica Europeia poder-se-á
falar, sem qualquer espécie de medo, desse período rocambolesco e perigoso. Era
eu pequeno e já ouvia contar algumas aventuras passadas com o lendário Artur
Lascas, o Abílio Costa, o Armando Furão, e tantos, tantos outros, que
preenchiam o nosso imaginário. Víamo-los fugir do senhor Zeca Carteiro e de
outros guardas “mauzões”! O Artur a saltar muros de quinze metros de altura como
se tratasse de um simples obstáculo sem importância; a atravessar o rio num
pequeno barquinho, chamado batela, como se estivesse a bordo de um poderoso
navio de guerra; a deitar-se na linha férrea galega esperando calmamente que o
comboio, na sua lentidão carbónea, se dignasse passar. Tal como um super-homem,
sobrevivia a todas as aventuras, ressurgindo cada vez mais forte e espetacular!
Nós, os garotos de então, desejávamos um dia ser assim destemidos, ousados,
vencedores. Mas a sombra negra também pairava por vezes sobre esse oásis de
aventuras. A morte, por afogamento, de um jovem, filho do senhor Inocêncio
Pereira (Caixa), morador nas Carvalhiças, aquando da travessia do rio Minho na
pequena embarcação, morte misteriosa e jamais satisfatoriamente esclarecida,
deixou toda a população estarrecida e desconfiada. Que se teria passado
concretamente? O Fernando, como se chamava a vítima, nadava muito bem e tinha
força suficiente e lucidez para resistir às correntes. Por outro lado,
conhecia, como ninguém, o leito do rio: os sítios largos e mansos, e os
estreitos, com impetuosas águas apressadas. Lembro-me de terem explicado na altura
que a batela transportava carga a mais e por essa razão virou-se. O pequeno barco
foi na corrente e os seus ocupantes tentaram atravessar o rio a nado. O moço,
que teria na altura dezassete, dezoito anos de idade, não o conseguiu. Nunca se
mencionou, que me lembre, a Guarda-Fiscal. É somente uma história do
contrabando. Outras há. Esperemos que alguém as conte. A História de Melgaço
não é apenas a tomada do castelo por D. João I e a incrível luta entre duas
bravas mulheres: é, também, o dia-a-dia de uma comunidade que trabalha, que ama
e sofre; é a luta pela vida, pela sobrevivência; é a emigração que tornou Melgaço
materialmente rico e populacinalmente pobre; é a sua cultura, a sua índole
lutadora e de fé inquebrantável.
A Guarda-Fiscal,
talvez por não ser uma força policial, tornou-se simpática às gentes do
concelho, sabendo sempre misturar-se, sem beliscar suscetibilidades e costumes
locais. Bem ao contrário: muitas vezes via-se o soldado sem farda, enxada na
mão, trabalhando a sua horta, a sua courela, ajudando à vindima. Devemos louvar
o progresso, a livre circulação de pessoas e bens, a abolição de fronteiras
reais ou artificiais, porém, deixem-nos ter saudades do passado, daquilo que
tivemos e já não temos. Somos melgacenses, somos europeus, mas somos também
portugueses. E o português, como bem o frisou Teixeira de Pascoaes, é um
saudosista, um amador do pretérito.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 977, de 1 e
15/1/1993.
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