quarta-feira, 7 de outubro de 2015

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



O NOSSO RIO


     No livro de Geografia para a terceira e quarta classes, de 1950, pode ler-se: «o rio Minho nasce nos Montes Cantábricos, em Espanha, e tem a sua foz em Caminha. Passa pelas vilas de Melgaço, Monção e Valença, servindo de fronteira entre Portugal e Espanha desde Melgaço a Caminha. Pela margem esquerda tem como afluente o Coura
     Para os rapazes do meu tempo o rio foi um amigo, um confidente – a nossa Bracalândia. Nele nadávamos, pescávamos, atravessávamo-lo para irmos às festas que se realizavam nas aldeias galegas vizinhas. Foi talvez pelos inícios dos anos quarenta que o senhor Mário Trancoso teve de o atravessar rapidamente devido a uma briga entre galegos e portugueses. A frase «adiós Cresciente, nunca mais verás a Mário Tenente» ficou famosa. Foi sobre o seu leito que o senhor Alfredo Lourenço, por essa mesma altura, repousou da gorda refeição comida à borla e com direito a troco! A história é curta e vou contá-la sem grandes floreados. O senhor Alfredo foi, talvez num sábado à tarde, a uma dessas festas galegas com os seus amigos melgacenses. Depois de passearem, de dançarem, os seus estômagos começaram a exigir-lhes o respetivo alimento. O amigo Alfredo, líder do grupo, virou-se para os seus companheiros de farra e disse-lhes: «vamos comer à taberna do Pablo; quanto ao pagamento, não se preocupem, eu pago tudo!» Os amigos entreolharam-se, interrogando-se com o olhar. Não queriam crer que ele tivesse assim tanto dinheiro, e fosse tão magnânimo, para lhes pagar a ceia. No entanto, a fome era tanta que não dava para ficarem ali parados a especular sobre essa súbita riqueza onassiana. Correram para a conhecida tasca, comeram e beberam até ficarem satisfeitos. Agora é que iriam ser elas. E se o Alfredo, às vezes tão fanfarrão, não tivesse dinheiro? Diz um deles ao ouvido do que lhe estava mais próximo: «reza». O Alfredo, impávido e sereno, no seu jeito de grande senhor, grita para o dono da taberna: «Eh, Pablo! O meu troco?» O homem, não tendo braços, nem pernas, para atender a todos os clientes, responde-lhe: - «Quanto me deste, hombre?» O Alfredo, sem hesitar, arrisca: - «quinhentas pesetas». O taberneiro pergunta-lhe: - «E quanto pagas?». «Trezentas pesetas.» O galego dá-lhe de troco duzentas pesetas! Comeu, bebeu, ele e os amigos, e ainda meteu dinheiro ao bolso! Coisas do Alfredo. Há quem diga que o tal senhor, logo que soube da marosca, lhe chegou a roupa ao pêlo. Não acredito, mas é possível.
     Foi também por ter ido ao rio, sem autorização, que o Valdemar ouviu de sua mãe, a senhora Nunes, a seguinte admoestação: «Vai, vai, mas olha que se afogas levas uma tareia que recordarás para o resto da tua vida!» Felizmente, para ele e para todos nós, não lhe aconteceu nada de grave. O Joaquim Augusto de Magalhães Fernandes (Angola,1937-Vila de Melgaço,1977) ia tendo menos sorte. No Peso o rio tem correntes traiçoeiras e o Joaquim esteve quase, quase, a afogar-se. Salvaram-no in extremis. Outros, sucumbiram mesmo: por ousadia, por excesso de confiança, por ignorância ou azar, ou por qualquer outra coisa, deixando assim todo o nosso concelho de luto. O rio é um amigo, mas temos de respeitar a sua força, a sua magia, o seu abraço mortal.
     Um dia, há uns bons trinta anos atrás, assisti a um acontecimento inesperado. Estava no monte de Prado, a olhar embevecido essa paisagem deslumbrante e única, quando ouço tiros de espingarda. Um jovem corria pela margem espanhola e, de repente, atira-se ao rio para o atravessar. Este levava pouca água, mas as correntes aí são perigosas. Atrás dele corriam dois carabineiros, disparando para o ar. O rapaz, qual campeão de natação, atravessa o rio com uma rapidez incrível. Penetra no monte do senhor António “Lareiro”, perdendo-se, assim, de vista. Que teria feito para se expor desse modo às balas da autoridade? Contrabando? Roubo? Nunca o soube. Nesse tempo a curiosidade não era aconselhável – a ignorância protegia-nos! A notícia, muito deturpada, apareceu no jornal «Notícias de Melgaço». O informador, ou informadores, fantasiaram, tendo chegado ao ridículo de atribuírem nome ao rapaz! Isso só seria possível se o tivessem visto de perto, o que não aconteceu.
     Outra lembrança do rio tem a ver com os namoricos. As raparigas galegas, mais ousadas, menos tímidas, do que as portuguesas, deslocavam-se todos os domingos para a margem e nós, os que sabiam nadar (aqueles que não sabiam muito, era o meu caso, nadavam com a ajuda de uma boia) íamos ter com elas e conversávamos, num galego-português medievo, sobre assuntos diversos. Antes de ir para a tropa despedi-me delas e de seus olhos rolou uma esquiva lágrima. Para o rio escrevi o soneto:   


Lindo rio, quantas boas lembranças
Eu tenho de ti, meu bom rio Minho;
Trataste-me com amor, com carinho,
Embalaste ténues, vãs esp’ranças.

Naquelas nunca esquecidas andanças,
Subindo e descendo por mau caminho,
Sussurrei-te ao ouvido, tão baixinho!
Palavras doces, chorosas e mansas.

Sei que continuas à minha espera…
Aí, nesse lugar belo e deleitoso;
E eu aqui, nesta suja atmosfera!...

Lembrando ainda aquele antigo gozo,
Aquele fetiche feito quimera…
Quem roubou a esta alma seu esposo?


              

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 975, de 1/12/1992.

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