ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
O NOSSO RIO
No livro de
Geografia para a terceira e quarta classes, de 1950, pode ler-se: «o rio Minho nasce nos Montes Cantábricos, em
Espanha, e tem a sua foz em Caminha. Passa pelas vilas de Melgaço, Monção e
Valença, servindo de fronteira entre Portugal e Espanha desde Melgaço a
Caminha. Pela margem esquerda tem como afluente o Coura.»
Para os rapazes
do meu tempo o rio foi um amigo, um confidente – a nossa Bracalândia. Nele
nadávamos, pescávamos, atravessávamo-lo para irmos às festas que se realizavam
nas aldeias galegas vizinhas. Foi talvez pelos inícios dos anos quarenta que o
senhor Mário Trancoso teve de o atravessar rapidamente devido a uma briga entre
galegos e portugueses. A frase «adiós
Cresciente, nunca mais verás a Mário Tenente» ficou famosa. Foi sobre o seu
leito que o senhor Alfredo Lourenço, por essa mesma altura, repousou da gorda
refeição comida à borla e com direito a troco! A história é curta e vou
contá-la sem grandes floreados. O senhor Alfredo foi, talvez num sábado à
tarde, a uma dessas festas galegas com os seus amigos melgacenses. Depois de
passearem, de dançarem, os seus estômagos começaram a exigir-lhes o respetivo
alimento. O amigo Alfredo, líder do grupo, virou-se para os seus companheiros
de farra e disse-lhes: «vamos comer à
taberna do Pablo; quanto ao pagamento, não se preocupem, eu pago tudo!» Os
amigos entreolharam-se, interrogando-se com o olhar. Não queriam crer que ele tivesse
assim tanto dinheiro, e fosse tão magnânimo, para lhes pagar a ceia. No
entanto, a fome era tanta que não dava para ficarem ali parados a especular
sobre essa súbita riqueza onassiana. Correram para a conhecida tasca, comeram e
beberam até ficarem satisfeitos. Agora é que iriam ser elas. E se o Alfredo, às
vezes tão fanfarrão, não tivesse dinheiro? Diz um deles ao ouvido do que lhe
estava mais próximo: «reza». O
Alfredo, impávido e sereno, no seu jeito de grande senhor, grita para o dono da
taberna: «Eh, Pablo! O meu troco?» O
homem, não tendo braços, nem pernas, para atender a todos os clientes,
responde-lhe: - «Quanto me deste, hombre?»
O Alfredo, sem hesitar, arrisca: - «quinhentas
pesetas». O taberneiro pergunta-lhe: - «E
quanto pagas?». «Trezentas pesetas.»
O galego dá-lhe de troco duzentas pesetas! Comeu, bebeu, ele e os amigos, e
ainda meteu dinheiro ao bolso! Coisas do Alfredo. Há quem diga que o tal
senhor, logo que soube da marosca, lhe chegou a roupa ao pêlo. Não acredito,
mas é possível.
Foi também por
ter ido ao rio, sem autorização, que o Valdemar ouviu de sua mãe, a senhora
Nunes, a seguinte admoestação: «Vai, vai,
mas olha que se afogas levas uma tareia que recordarás para o resto da tua vida!»
Felizmente, para ele e para todos nós, não lhe aconteceu nada de grave. O Joaquim
Augusto de Magalhães Fernandes (Angola,1937-Vila
de Melgaço,1977) ia
tendo menos sorte. No Peso o rio tem correntes traiçoeiras e o Joaquim esteve
quase, quase, a afogar-se. Salvaram-no in extremis. Outros, sucumbiram mesmo:
por ousadia, por excesso de confiança, por ignorância ou azar, ou por qualquer
outra coisa, deixando assim todo o nosso concelho de luto. O rio é um amigo,
mas temos de respeitar a sua força, a sua magia, o seu abraço mortal.
Um dia, há uns
bons trinta anos atrás, assisti a um acontecimento inesperado. Estava no monte
de Prado, a olhar embevecido essa paisagem deslumbrante e única, quando ouço
tiros de espingarda. Um jovem corria pela margem espanhola e, de repente,
atira-se ao rio para o atravessar. Este levava pouca água, mas as correntes aí
são perigosas. Atrás dele corriam dois carabineiros, disparando para o ar. O
rapaz, qual campeão de natação, atravessa o rio com uma rapidez incrível.
Penetra no monte do senhor António “Lareiro”, perdendo-se, assim, de vista. Que
teria feito para se expor desse modo às balas da autoridade? Contrabando?
Roubo? Nunca o soube. Nesse tempo a curiosidade não era aconselhável – a
ignorância protegia-nos! A notícia, muito deturpada, apareceu no jornal
«Notícias de Melgaço». O informador, ou informadores, fantasiaram, tendo
chegado ao ridículo de atribuírem nome ao rapaz! Isso só seria possível se o
tivessem visto de perto, o que não aconteceu.
Outra lembrança
do rio tem a ver com os namoricos. As raparigas galegas, mais ousadas, menos
tímidas, do que as portuguesas, deslocavam-se todos os domingos para a margem e
nós, os que sabiam nadar (aqueles que não sabiam muito, era o meu caso, nadavam
com a ajuda de uma boia) íamos ter com elas e conversávamos, num
galego-português medievo, sobre assuntos diversos. Antes de ir para a tropa
despedi-me delas e de seus olhos rolou uma esquiva lágrima. Para o rio escrevi
o soneto:
Lindo rio, quantas boas lembranças
Eu tenho de ti, meu bom rio Minho;
Trataste-me com amor, com carinho,
Embalaste ténues, vãs esp’ranças.
Naquelas nunca esquecidas andanças,
Subindo e descendo por mau caminho,
Sussurrei-te ao ouvido, tão baixinho!
Palavras doces, chorosas e mansas.
Sei que continuas à minha espera…
Aí, nesse lugar belo e deleitoso;
E eu aqui, nesta suja atmosfera!...
Lembrando ainda aquele antigo gozo,
Aquele fetiche feito quimera…
Quem roubou a esta alma seu esposo?
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 975, de 1/12/1992.
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