LINA, FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação)
Leopoldo voltou para dentro. Aqueles rostos já se
vislumbravam mais calmos. A catraia já chorara, bom sinal, e agora ali estava a
mamar tranquilamente nas grandes tetas da progenitora.
- O Senhor Doutor não nos cobrou um vintém! É um santo
homem. Que Deus o ajude sempre, para ele nos poder também ajudar.
- Ó
homem! Não o convidaste para beber?
- Ainda o pensei, mas o vinho não está grande coisa. A
trovoada deu cabo dele. Broa ainda temos alguma, embora a masseira esteja à
espera que a encham de novo, mas presunto e salpicão já se foram. O que lhe ia
oferecer, mulher?!
- Pois é! Casa de gente humilde está sempre com carências –
quase tudo falta. Esperemos melhores tempos. Lá diz o povo: «a esperança é a última a morrer.»
- Daqui a uns dias já se mata o porco, o capador anda por
perto; nessa altura leva-se-lhe um pratinho de fêveras a casa.
- Bem merece, esse médico santo. Que Deus o abençoe.
A conversa
prolongou-se por mais uns minutos e depois todos se dirigiram para a mesa, a
fim de comerem uma malga de caldo de couves e farinha, com umas batatas e uns
quantos feijões lá dentro. A senhora Clotilde costumava botar na panela de ferro
um grande pedaço de toucinho, mas agora até esse estava a rarear, por isso
punha lá dentro apenas um pedacito, mais uns couratos, que era divido por
todos. Contudo, eles já se resignavam com essa escassez, e iam dizendo: «Não há mal que sempre dure….» E a seguir
atiravam-se sofregamente às couves e às batatas, que essas duravam todo o ano.
- Temos que pensar no nome da cachopa – disse a avó paterna, Ambrósia, antes de se retirar para sua casa, ali
perto; vivia com uma filha solteira, pois o marido já tinha morrido.
- Eu por mim punha-lhe Lina, em homenagem à bisavó – aventou Gertrudes, sempre pronta a meter a
colherada nos assuntos alheios.
- Não está mal pensado – observou
Clotilde.
- Será a Lininha – corroboraram
os tios.
E assim aconteceu.
Batizaram-na primeiro em casa, sem quaisquer rituais, por ser frágil, por
correr risco de vida, e passados uns dias levaram a criaturazinha à igreja, a
fim de receber a água benta, tornar-se cristã, e ficar registada no livro dos
assentos de batismo; além disso, da boca do velho pároco ouvir-se-ia pronunciar
o nome «Lina», que acompanharia aquele ser até ao seu último suspiro.
O acto religioso,
na igreja da freguesia, foi muito simples. Os padrinhos da miúda foram os avós maternos,
gente da lavoura, que para a cerimónia vestiram a sua roupinha domingueira. Ainda
pensaram pedir a alguém importante, talvez da Casa e Quinta da Formosa, para assumir
essa responsabilidade, mas desistiram, pois não estavam em condições
financeiras de fazerem uma festa, por mais modesta que fosse.
No dia seguinte dirigiram-se
à Conservatória do Registo Civil a fim de registarem a neófita. A lei assim o
impunha, e eles eram pessoas cumpridoras.
**
A criança, por
mais incrível que isso nos pareça, vingou! Nas redondezas quase todas as bocas
sussurravam que ali tinha havido um milagre. A minoria, gente menos crente, malévola,
pensava que fora o demo a protegê-la. Diziam:
- Não! Não pode ser! Aquela criança não tinha o mínimo de hipóteses
para hoje estar viva. Nasceu com pouco mais de um quilo, se tanto, com cara de esfomeada,
com pêlo por todo o lado, e ei-la aí a saltar como uma cabrita! Uma verdadeira
traquina; uma Maria Rapaz! Ali anda mão de Belzebu! – vociferou o Pinelo.
- Lá estás tu com as tuas coisas! – lamentou-se o Tónio Vesgo, cheio de compaixão pela rapariga. Por que
não dizes que foi um santo, ou uma santa, que lhe valeu?
- Ó meu amigo! Eu não acredito em milagres, mas sei que o
demónio se apodera dos seres fracos, para mais tarde os usar contra as almas puras.
- Isso são blasfémias, insultos à divindade – atreveu-se a dizer o Zé dos Pipos, apesar de
temer o grandalhão do Pinelo.
- Só faltavas cá tu! Qualquer dia corto-te a língua, para
deixares de dizeres tantas asneiras. Vai limpar as botas ao presbítero, que as
sujou na lama, quando saiu da casa da Francisca. Andas sempre a bajulá-lo, a
ajudar à missa, mas ele não te liga nenhuma.
- Veja lá como fala! Eu ajudo o senhor abade porque quero,
ninguém me obriga. Acredito em Deus, na Santíssima Trindade, na Mãe do Céu e
nos Santos e Arcanjos. Vossemecê não acredita em nada! É um descrente, um ímpio.
Quando morrer vai para o inferno, para a fogueira. Vai-se transformar numa alma
penada.
- Tu já és uma alma penada, desgraçado. És um beato, um patamaz,
nem as raparigas da aldeia se interessam por ti. És um papa-hóstias.
Os presentes
riram com agrado. As gargalhadas ouviam-se a muitos metros de distância. Zé dos
Pipos retirou-se, humilhado. Era a sua sina. Tentava defender os fracos, mas a
ele todos o atacavam. A sua bondade natural transformara-se no seu calcanhar de
Aquiles: por ser bom, todos abusavam dele. Até o reitor: «vai aqui; vai acolá», sempre a dar ordens, e ele sempre pronto a
obedecer. As moças não lhe ligavam patavina: achavam-no ridículo e riam-se na
sua cara. E ele estava apaixonado pela Rita, aquela pastora formosa, mas ela
afastava-se dele ou então dizia-lhe: «Zé
dos Pipos, achas-me com cara de tola? Vai namorar com uma beata, das que andam
sempre na igreja, talvez uma delas te queira.» Ele retirava-se, cabisbaixo,
quase a chorar, e lamentava-se: «eu, que
lhe quero tanto, sou tratado assim; o Manuel das Várzeas, que mal a olha, é
tudo para ela!» // (continua)...
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