quinta-feira, 15 de outubro de 2015

     LINA, FILHA DE PÃ

romance


Por Joaquim A. Rocha


... (continuação)

     Leopoldo voltou para dentro. Aqueles rostos já se vislumbravam mais calmos. A catraia já chorara, bom sinal, e agora ali estava a mamar tranquilamente nas grandes tetas da progenitora.

- O Senhor Doutor não nos cobrou um vintém! É um santo homem. Que Deus o ajude sempre, para ele nos poder também ajudar.
- Ó homem! Não o convidaste para beber?
- Ainda o pensei, mas o vinho não está grande coisa. A trovoada deu cabo dele. Broa ainda temos alguma, embora a masseira esteja à espera que a encham de novo, mas presunto e salpicão já se foram. O que lhe ia oferecer, mulher?!
- Pois é! Casa de gente humilde está sempre com carências – quase tudo falta. Esperemos melhores tempos. Lá diz o povo: «a esperança é a última a morrer.»                      
- Daqui a uns dias já se mata o porco, o capador anda por perto; nessa altura leva-se-lhe um pratinho de fêveras a casa.
- Bem merece, esse médico santo. Que Deus o abençoe.

     A conversa prolongou-se por mais uns minutos e depois todos se dirigiram para a mesa, a fim de comerem uma malga de caldo de couves e farinha, com umas batatas e uns quantos feijões lá dentro. A senhora Clotilde costumava botar na panela de ferro um grande pedaço de toucinho, mas agora até esse estava a rarear, por isso punha lá dentro apenas um pedacito, mais uns couratos, que era divido por todos. Contudo, eles já se resignavam com essa escassez, e iam dizendo: «Não há mal que sempre dure….» E a seguir atiravam-se sofregamente às couves e às batatas, que essas duravam todo o ano.

- Temos que pensar no nome da cachopa – disse a avó paterna, Ambrósia, antes de se retirar para sua casa, ali perto; vivia com uma filha solteira, pois o marido já tinha morrido.
- Eu por mim punha-lhe Lina, em homenagem à bisavó – aventou Gertrudes, sempre pronta a meter a colherada nos assuntos alheios.
- Não está mal pensado – observou Clotilde.
- Será a Lininha – corroboraram os tios.

     E assim aconteceu. Batizaram-na primeiro em casa, sem quaisquer rituais, por ser frágil, por correr risco de vida, e passados uns dias levaram a criaturazinha à igreja, a fim de receber a água benta, tornar-se cristã, e ficar registada no livro dos assentos de batismo; além disso, da boca do velho pároco ouvir-se-ia pronunciar o nome «Lina», que acompanharia aquele ser até ao seu último suspiro.
     O acto religioso, na igreja da freguesia, foi muito simples. Os padrinhos da miúda foram os avós maternos, gente da lavoura, que para a cerimónia vestiram a sua roupinha domingueira. Ainda pensaram pedir a alguém importante, talvez da Casa e Quinta da Formosa, para assumir essa responsabilidade, mas desistiram, pois não estavam em condições financeiras de fazerem uma festa, por mais modesta que fosse.       
     No dia seguinte dirigiram-se à Conservatória do Registo Civil a fim de registarem a neófita. A lei assim o impunha, e eles eram pessoas cumpridoras.   

**

    A criança, por mais incrível que isso nos pareça, vingou! Nas redondezas quase todas as bocas sussurravam que ali tinha havido um milagre. A minoria, gente menos crente, malévola, pensava que fora o demo a protegê-la. Diziam:

- Não! Não pode ser! Aquela criança não tinha o mínimo de hipóteses para hoje estar viva. Nasceu com pouco mais de um quilo, se tanto, com cara de esfomeada, com pêlo por todo o lado, e ei-la aí a saltar como uma cabrita! Uma verdadeira traquina; uma Maria Rapaz! Ali anda mão de Belzebu! – vociferou o Pinelo.
- Lá estás tu com as tuas coisas! – lamentou-se o Tónio Vesgo, cheio de compaixão pela rapariga. Por que não dizes que foi um santo, ou uma santa, que lhe valeu?  
- Ó meu amigo! Eu não acredito em milagres, mas sei que o demónio se apodera dos seres fracos, para mais tarde os usar contra as almas puras.
- Isso são blasfémias, insultos à divindade – atreveu-se a dizer o Zé dos Pipos, apesar de temer o grandalhão do Pinelo.
- Só faltavas cá tu! Qualquer dia corto-te a língua, para deixares de dizeres tantas asneiras. Vai limpar as botas ao presbítero, que as sujou na lama, quando saiu da casa da Francisca. Andas sempre a bajulá-lo, a ajudar à missa, mas ele não te liga nenhuma.
- Veja lá como fala! Eu ajudo o senhor abade porque quero, ninguém me obriga. Acredito em Deus, na Santíssima Trindade, na Mãe do Céu e nos Santos e Arcanjos. Vossemecê não acredita em nada! É um descrente, um ímpio. Quando morrer vai para o inferno, para a fogueira. Vai-se transformar numa alma penada.
- Tu já és uma alma penada, desgraçado. És um beato, um patamaz, nem as raparigas da aldeia se interessam por ti. És um papa-hóstias.

     Os presentes riram com agrado. As gargalhadas ouviam-se a muitos metros de distância. Zé dos Pipos retirou-se, humilhado. Era a sua sina. Tentava defender os fracos, mas a ele todos o atacavam. A sua bondade natural transformara-se no seu calcanhar de Aquiles: por ser bom, todos abusavam dele. Até o reitor: «vai aqui; vai acolá», sempre a dar ordens, e ele sempre pronto a obedecer. As moças não lhe ligavam patavina: achavam-no ridículo e riam-se na sua cara. E ele estava apaixonado pela Rita, aquela pastora formosa, mas ela afastava-se dele ou então dizia-lhe: «Zé dos Pipos, achas-me com cara de tola? Vai namorar com uma beata, das que andam sempre na igreja, talvez uma delas te queira.» Ele retirava-se, cabisbaixo, quase a chorar, e lamentava-se: «eu, que lhe quero tanto, sou tratado assim; o Manuel das Várzeas, que mal a olha, é tudo para ela!» // (continua)...


Sem comentários:

Enviar um comentário