MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
OS CONJURADOS
Por Augusto César Esteves
OS CONJURADOS
A notícia da tentativa insurreccional do Porto espalhou-se
pelo país e chegou a Melgaço dois dias depois, trazida por um fidalgo galego. Na
Vila vivia há muito uma senhora espanhola, fidalga e distinta. Era D. Maria
Teresa Mosqueira de Lira, filha de D. Jacinto Mosqueira Tavares Soto Mayor e de
sua esposa D. Teresa Antónia Lira e Pereira, da Casa de Paravedra, em São Cristóvão
de Mourentão, Galiza; neta, pelo lado paterno, de Dom José Mosqueira e Trancoso
e esposa D. Beatriz Tavares de Soto Mayor e, pelo materno, de Dom Bazílio Lira
Pereira e esposa D. Joana Mosqueira e Baamonde, porque casara com Caetano José
de Abreu Soares, em cujo acervo de bens se enumerava uma boa quinta junto do
castelo de Lapela e morador na casa armoriada da rua Direita, ao lado da
Matriz, herança do pai, que nela tinha mandado enquadrar as suas armas:
«Um escudo esquartelado. No primeiro
quartel as armas dos Soares, que são, em campo sanguinho um castelo de prata.
No segundo as dos Nóboas, que são, escudo em mantel, no primeiro em campo
sanguinho uma águia de ouro; no segundo em campo de prata um leão de púrpura,
rompante, e no terceiro em campo de ouro um castelo sanguinho. No terceiro
quartel as dos Abreu, que são, em campo sanguinho cinco asas de ouro postas em
sautor. No quarto, as dos Novais, que são, em campo azul cinco novelos de
prata, em sautor. / Elmo de prata, aberto, guarnecido de ouro. / Paquife dos
metais, e cores das armas. / Timbre o dos Soares, que é o mesmo: castelo das
armas, e por diferença uma brica de ouro, com um trifólio verde.»
Aquela senhora tinha um irmão:
António Maria Mosqueira de Lira. Patriota como aqueles que o são, cedo se
arregimentou no número dos galegos lutadores pela independência da sua pátria. Quando
soube terem as tropas espanholas do comando de Ballestá abandonado a ocupação
de Portugal em som de guerra contra Napoleão, passou na velha barca da
travessia do rio Minho no sítio de Mourentão e veio participar o feito ao seu
cunhado. // Caetano José, então de sessenta e três anos, era das figuras mais
representativas do meio melgacense. Como militar, tinha sido cadete no regimento
de Valença e, como civil, nesta vila e seu termo fora várias vezes o vereador mais velho e Juiz pela ordenação, Almotacé ([1]), Monteiro-mor, Provedor da Santa Casa da Misericórdia, irmão da Confraria do
Senhor erecta nesta vila e, desde 1799, cavaleiro da Ordem de Santiago da
Espada. A capela da Senhora das Dores, no Convento de Nossa Senhora da Conceição,
ostentava nas aduelas do arco as suas armas de nobreza. Era o seu padroeiro e
tinha ali o seu jazigo.
Custara a consegui-lo,
porque demoradas foram as conversações; mas vencera, como se verá. Seus pais
Caetano de Abreu Soares e esposa, por devoção ao Padre São Francisco
e a seus filhos, dois desejos por eles bem acalentados publicamente manifestaram
em 1769: foi o primeiro, ter para si e seus descendentes um jazigo na Capela de Nossa Senhora das Dores, do lado do
Evangelho, naquele Convento de Nossa Senhora
da Conceição, extramuros da vila e, o outro, deixar na sua descendência a
administração inteira da referida capela. Para tanto conseguirem, como aquela
capelinha lateral, erguida fora da igreja, mas anexa ao seu corpo central,
precisava de reforma e carecia de obras de reedificação, apareceram à
comunidade levando nas mãos a esmola precisa para tudo isso fazerem.
Os frades, em 1770,
concederam-lhes não só a sepultura pedida para eles e seus descendentes, mas
ainda o uso e padroado da falada Capela, contando que os suplicantes a
reedificassem, paramentando-a de todo o necessário e ficando com a obrigação de
a fabricar sempre, segundo as determinações dos prelados quando visitassem o
Convento. Esta concessão, porém, não se efectivou na vida dos fidalgos.
Anos volvidos, Caetano
José, como primogénito e sucessor no vínculo de Morgado e nos prazos nomeados
por seus pais, insistiu no pedido, focando novamente a obrigação de reedificar
a capela de Nossa Senhora das Dores e, para evitar mais vagares e incómodos
futuros, desde logo ofereceu aos frades a casa, a horta e o monte contíguo à
cerca, do convento. Não deixaram os frades fugir a ocasião, mas impuseram ainda
ao suplicante a obrigação de dourar o retábulo do altar. Em compensação, o
fidalgo podia fazer a ostentação das suas armas na capelinha e o síndico do convento,
em lugar da fábrica perpétua, apenas aceitaria em nome da Sé Apostólica a terra
oferecida.
Corria o ano de 1779 quando
se ultimaram estes ajustes, pois foi em 21 de Agosto que Caetano José tomou
posse do padroado da Capela de Nossa Senhora das Dores. Ali, naquele sítio,
porém, pouco tempo perdurou a prestação de homenagens à Mãe de Deus, porque os
frades logo no ano seguinte, aliás sem prejuízo das outras regalias do fidalgo,
mudaram a sua invocação para a de São Pedro de Alcântara e transferiram a linda
e então dolorida imagem da Senhora das Dores para outro altar lateral, no corpo
da igreja.
Caetano José Soares gozava
de verdadeiro prestígio em Melgaço. Não tinha alma de escravo, nem água chilra
nas veias. Era um homem. De seu pai herdara a decisão, a coragem, a bravura e a
prudência, tantas vezes demonstradas nas províncias do Minho, Estremadura,
Douro e Beiras, quer em praça de soldado, cabo de esquadra, e sargento, quer
durante dezoito anos nos postos de alferes e de tenente de infantaria, sempre a
servir a Coroa e a defender a Pátria nos reinados de D. João V e de D. José I. À
mãe, Dona Caetana Maria Gomes de Abreu, devia ele primores de educação. Entre
as mimalhices de criança dera-lhe a beber a crença dos velhos fidalgos e, na
juventude, os lábios maternos só lhe contaram a verdade da vida.
Senhora sensata, apreciava o
bem-estar e os regalos da fortuna, mas às riquezas materiais dava apenas um
relativo valor. Por isso, raras vezes falava nos seus bens, alguns no casal por
virem do avô paterno de seu filho, o Sr. António Soares da Nóboa, que por ter «fazendas em partes
remotas aonde andam bichos e corria risco a sua vida»
conseguiu de D. Pedro II, em 7/6/1694, um interessante alvará para usar espingarda
ou clavina de pederneira. Em compensação os valores morais dos antepassados
eram servidos com frequência à sua prole.
Mãe extremosa e senhora inteligente, ela
soube assim guiar o filho pelo único caminho direito, o da honra, ensinando-o a
sentir e a viver os feitos do avô e do pai dela. O avô da fidalga, Domingos
Gomes de Abreu, fora um militar brioso e valente, que numa das companhias de
ordenanças da vila de Melgaço serviu mais de trinta e seis anos. Nela exercitou
o posto de alferes, desde 1675 e faleceu em 22/9/1697, tendo sido pouco antes
promovido a capitão da sua companhia. A folha de serviços militares atesta coragem
e patriotismo e constitui uma bonita página da história da nossa terra, bem
digna de soletrar-se.
[1] Funcionário municipal encarregado de
fiscalizar os pesos e medidas e de taxar os preços dos géneros. Competia-lhe
ainda a distribuição dos mantimentos em época de escassez.
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