terça-feira, 17 de março de 2015

«O BURACO da SERPE»


     Quando começamos a ler um conto, uma novela, ou um romance, não sabemos se vamos levar essa leitura até ao fim. Se logo no início se tornam enfadonhos, fastidiosos, o mais certo é colocá-los de novo numa das prateleiras da estante, esquecê-los. Felizmente, com o autor desta novela, isso não acontece: livro escrito por José Alfredo Cerdeira que nos venha parar às mãos não mais o largamos até à última página. Lê-se com sofreguidão, saboreámo-lo… (a prova disso é a 1.ª edição do romance «O Tomaz das Quingostas» que se esgotou em seis meses).
     A explicação para este fenómeno é simples: os temas escolhidos, o enredo, o conflito, tudo se apresenta em harmonia, como se estivéssemos a escutar uma sinfonia de Mozart. Não pense o leitor que ele vai em busca de assuntos rebuscados, acontecimentos grandiosos, de catástrofes universais. Não: tudo aqui é singular, transparente, coisas de que já ouvimos falar, de certo modo vivemos, de uma ou de outra maneira, tudo nos é familiar. A serra, os rios, as gentes e seus costumes, a honra, a vingança, o trabalho, a resignação, o sonho, tudo perpassa pela nossa vista e pela nossa mente como estivéssemos a assistir a um filme interminável e belo.     
     Estamos, sem dúvida, perante um genuíno contador de histórias, um exímio criador de ambientes psicológicos, de dramas e tragédias humanas, que nos levam a pensar em nós próprios, na luta constante, e eterna, pela perfeição. O ser humano, como tal, já existe na Terra há milhares de anos, mas desde o seu princípio que procura encontrar o verdadeiro caminho da felicidade, recorrendo por vezes, quase sempre, a forças exteriores, a divindades por ele mesmo inventadas, que depois destrói, com a mesmíssima facilidade com que as construíra! É um fazer e desfazer ininterrupto, um caminhar sem rumo, aos ziguezagues, tentando sair do labirinto em que se meteu, do abismo em que caiu. Religiões, filosofias, crenças, costumes, tudo faz parte de um todo fragmentado. Uns, talvez a minoria, procuram o bem, a beleza, quer exterior quer interior; e outros tentam desesperadamente o contrário – viver regaladamente à custa do trabalho alheio. Por todos os meios ao seu alcance, os menos dignos, os mais perversos e sujos, conseguem um bem-estar que não merecem, nem justificam perante a sociedade.
     Nesta novela há de tudo um pouco: o ódio, a inveja, a intriga, a posse indevida de bens, as heranças, a morte; mas também há o trabalho honesto, o amor, a fidelidade, o sacrifício, tudo conjugado num quadro serrano, onde a distância dos meios ditos civilizados torna praticamente impossível a igualdade de oportunidades e o consumo de alguns bens, condicionando assim a vida daquela gente. Ali não há luz pública nem água canalizada, não há estradas nem hospitais; apenas caminhos ruins, bestas de carga, curandeiros de má fama, conflitos latentes. O homem confunde-se com a serra, com o rigor do inverno e o sol abrasador do verão. As almas do «outro mundo» comem à mesa com os vivos e exigem, por vezes, o cumprimento de promessas impraticáveis, feitas em circunstâncias dolorosas.
     Ficamos admirados, nós, os leitores, perante aquele universo de homens e mulheres, isolados na serra brava, tentando sobreviver à adversidade, conseguindo arrancar a custo todo o alimento necessário para não perecerem. Porém, por outro lado, quase os invejamos, nós, que vivemos na cidade, cheia de carros e de cães, de ruídos, de poluição, de incomodidades, de pessoas de costas voltadas e de semblantes irritados.
     A solidão na cidade, apesar de haver tanta gente, é notória e ingénita! É uma contradição, mas também realidade. Os seres humanos são complexos e tornam a convivência difícil, quando tudo seria fácil se pusessem de lado a imodéstia, os preconceitos e a mesquinhez. Mas não: refugiam-se nos seus apartamentos, nos seus automóveis, nos seus pequenos mundos. A saída deste «buraco da serpe» não se vislumbra. O monstro está atento e confiante: o medo, a incerteza, a preguiça, retêm a vítima no seu «oásis», ou no seu «inferno», conforme a perspetiva.
     Voltar à natureza seria o ideal, mas julgo que já é demasiado tarde para dar tal passo, pois por este andar qualquer dia nem natureza existe! Tudo se tornará artificial, até o ar que respiramos e a água que bebemos. O ser humano é um eterno insatisfeito, não moldável, desobediente, anarquista. Dão-lhe o paraíso e escolhe o caos! Quando tudo parece estar a correr bem, logo se muda de rumo, em busca do desconhecido!         
     O «Buraco da Serpe» é uma novela cuja leitura atenta nos colocará imensas questões: de relacionamento entre pessoas, de propriedade, de justiça, ausência de classes sociais, de poder, de conhecimento e ignorância, de sobrevivência em meios hostis, onde as feras espreitam a todo o momento a futura presa; a falta de segurança provoca receios, e estes dão origem a crenças; a religião serve como lenitivo para as almas atormentadas, mas recorre-se às mezinhas quando o corpo sofre.   
     Mas não pense o leitor que a leitura desta novela nos provoca somente sofrimento e inquietação. Não: nós, a pouco e pouco, vamos sentindo o prazer penetrar em nossos sentidos, como se fizéssemos parte da narrativa, como se caminhássemos lado a lado com aquelas personagens viris, sólidas, mas ao mesmo tempo frágeis e sensíveis, capazes de altos feitos e simultaneamente de atos abomináveis. É a vida na sua máxima expressão, onde nada se esconde, tudo se mostra. Não estamos, com certeza, perante um mundo cem por cento selvagem, no interior da Amazónia, ou na África profunda, sem quaisquer regras, mas ali, na serra impiedosa, entre a Peneda e Castro Laboreiro, onde a lei é a do mais forte, do mais sagaz, onde o crime se aceita por razões de segurança, e o enlace matrimonial se impõe por via da continuidade.    

     Sublinho que o mais importante neste pequeno romance é a “estória” em si, a lenda; com a sua leitura, alimentar-se-á o espírito, voaremos através do espaço e do tempo.   
                                                                                Joaquim Rocha

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