«O BURACO da SERPE»
Quando começamos a ler um conto, uma
novela, ou um romance, não sabemos se vamos levar essa leitura até ao fim. Se
logo no início se tornam enfadonhos, fastidiosos, o mais certo é colocá-los de
novo numa das prateleiras da estante, esquecê-los. Felizmente, com o autor
desta novela, isso não acontece: livro escrito por José Alfredo Cerdeira que
nos venha parar às mãos não mais o largamos até à última página. Lê-se com
sofreguidão, saboreámo-lo… (a prova disso é a 1.ª edição do romance «O Tomaz
das Quingostas» que se esgotou em seis meses).
A
explicação para este fenómeno é simples: os temas escolhidos, o enredo, o
conflito, tudo se apresenta em harmonia, como se estivéssemos a escutar uma
sinfonia de Mozart. Não pense o leitor que ele vai em busca de assuntos
rebuscados, acontecimentos grandiosos, de catástrofes universais. Não: tudo
aqui é singular, transparente, coisas de que já ouvimos falar, de certo modo
vivemos, de uma ou de outra maneira, tudo nos é familiar. A serra, os rios, as
gentes e seus costumes, a honra, a vingança, o trabalho, a resignação, o sonho,
tudo perpassa pela nossa vista e pela nossa mente como estivéssemos a assistir
a um filme interminável e belo.
Estamos,
sem dúvida, perante um genuíno contador de histórias, um exímio criador de
ambientes psicológicos, de dramas e tragédias humanas, que nos levam a pensar
em nós próprios, na luta constante, e eterna, pela perfeição. O ser humano,
como tal, já existe na Terra há milhares de anos, mas desde o seu princípio que
procura encontrar o verdadeiro caminho da felicidade, recorrendo por vezes,
quase sempre, a forças exteriores, a divindades por ele mesmo inventadas, que
depois destrói, com a mesmíssima facilidade com que as construíra! É um fazer e
desfazer ininterrupto, um caminhar sem rumo, aos ziguezagues, tentando sair do
labirinto em que se meteu, do abismo em que caiu. Religiões, filosofias,
crenças, costumes, tudo faz parte de um todo fragmentado. Uns, talvez a
minoria, procuram o bem, a beleza, quer exterior quer interior; e outros tentam
desesperadamente o contrário – viver regaladamente à custa do trabalho alheio.
Por todos os meios ao seu alcance, os menos dignos, os mais perversos e sujos,
conseguem um bem-estar que não merecem, nem justificam perante a sociedade.
Nesta novela há de tudo um pouco: o ódio,
a inveja, a intriga, a posse indevida de bens, as heranças, a morte; mas também
há o trabalho honesto, o amor, a fidelidade, o sacrifício, tudo conjugado num
quadro serrano, onde a distância dos meios ditos civilizados torna praticamente
impossível a igualdade de oportunidades e o consumo de alguns bens,
condicionando assim a vida daquela gente. Ali não há luz pública nem água
canalizada, não há estradas nem hospitais; apenas caminhos ruins, bestas de
carga, curandeiros de má fama, conflitos latentes. O homem confunde-se com a
serra, com o rigor do inverno e o sol abrasador do verão. As almas do «outro
mundo» comem à mesa com os vivos e exigem, por vezes, o cumprimento de promessas
impraticáveis, feitas em circunstâncias dolorosas.
Ficamos admirados, nós, os leitores,
perante aquele universo de homens e mulheres, isolados na serra brava, tentando
sobreviver à adversidade, conseguindo arrancar a custo todo o alimento necessário
para não perecerem. Porém, por outro lado, quase os invejamos, nós, que vivemos
na cidade, cheia de carros e de cães, de ruídos, de poluição, de incomodidades,
de pessoas de costas voltadas e de semblantes irritados.
A solidão na cidade, apesar de haver tanta
gente, é notória e ingénita! É uma contradição, mas também realidade. Os seres
humanos são complexos e tornam a convivência difícil, quando tudo seria fácil
se pusessem de lado a imodéstia, os preconceitos e a mesquinhez. Mas não:
refugiam-se nos seus apartamentos, nos seus automóveis, nos seus pequenos
mundos. A saída deste «buraco da serpe» não se vislumbra. O monstro está atento
e confiante: o medo, a incerteza, a preguiça, retêm a vítima no seu «oásis», ou
no seu «inferno», conforme a perspetiva.
Voltar à natureza seria o ideal, mas julgo
que já é demasiado tarde para dar tal passo, pois por este andar qualquer dia nem
natureza existe! Tudo se tornará artificial, até o ar que respiramos e a água
que bebemos. O ser humano é um eterno insatisfeito, não moldável, desobediente,
anarquista. Dão-lhe o paraíso e escolhe o caos! Quando tudo parece estar a
correr bem, logo se muda de rumo, em busca do desconhecido!
O «Buraco da Serpe» é uma novela cuja
leitura atenta nos colocará imensas questões: de relacionamento entre pessoas,
de propriedade, de justiça, ausência de classes sociais, de poder, de
conhecimento e ignorância, de sobrevivência em meios hostis, onde as feras
espreitam a todo o momento a futura presa; a falta de segurança provoca receios,
e estes dão origem a crenças; a religião serve como lenitivo para as almas
atormentadas, mas recorre-se às mezinhas quando o corpo sofre.
Mas não pense o leitor que a leitura desta
novela nos provoca somente sofrimento e inquietação. Não: nós, a pouco e pouco,
vamos sentindo o prazer penetrar em nossos sentidos, como se fizéssemos parte
da narrativa, como se caminhássemos lado a lado com aquelas personagens viris,
sólidas, mas ao mesmo tempo frágeis e sensíveis, capazes de altos feitos e
simultaneamente de atos abomináveis. É a vida na sua máxima expressão, onde
nada se esconde, tudo se mostra. Não estamos, com certeza, perante um mundo cem
por cento selvagem, no interior da Amazónia, ou na África profunda, sem
quaisquer regras, mas ali, na serra impiedosa, entre a Peneda e Castro
Laboreiro, onde a lei é a do mais forte, do mais sagaz, onde o crime se aceita
por razões de segurança, e o enlace matrimonial se impõe por via da
continuidade.
Sublinho que o mais importante neste
pequeno romance é a “estória” em si, a lenda; com a sua leitura, alimentar-se-á
o espírito, voaremos através do espaço e do tempo.
Joaquim Rocha
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